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CONSTRUÇÕES ARGUMENTATIVAS SOBRE RISCOS NA GESTAÇÃO: JUSTIFICATIVAS MÉDICAS PARA INDICAÇÃO TERAPEUTICA DO ABORTO DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Flávia Regina Guedes Ribeiro

CONSTRUÇÕES ARGUMENTATIVAS SOBRE

RISCOS

NA

GESTAÇÃO: JUSTIFICATIVAS MÉDICAS PARA INDICAÇÃO

TERAPEUTICA DO ABORTO

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

(2)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Flávia Regina Guedes Ribeiro

CONSTRUÇÕES ARGUMENTATIVAS SOBRE

RISCOS

NA

GESTAÇÃO: JUSTIFICATIVAS MÉDICAS PARA INDICAÇÃO

TERAPEUTICA DO ABORTO

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção do título

de Doutor em Psicologia Social, sob a

orientação da Profª Drª Mary Jane Paris Spink.

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Banca examinadora

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__________________________________________

__________________________________________

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Dedicatória

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Agradecimentos

Agradeço, primeiramente, à pessoa sem a qual esse projeto não seria concretizado: minha querida orientadora Mary Jane que, ao longo desses quase seis anos de convivência, mais que orientadora se tornou orientadora-mãe, amiga, companheira, conselheira... obrigada Mary Jane, por ensinar e estar sempre presente. Com meu carinho e admiração.

À Maria Auxiliadora... as palavras de agradecimentos por sua participação na minha vida acadêmica já ficaram redundantes, nesta folha só me resta reafirmar o orgulho de ter sido sua aluna e de lhe ter por perto nessa longa caminhada.

Ao professor José Ricardo Ayres, pelas importantes contribuições no exame de qualificação e pela simpatia e gentileza com que acolheu este trabalho.

À professora Maria José Rosado-Nunes, por ter emprestado seu empenho aguerrido na luta pela legalização do aborto para ajudar na elaboração desta pesquisa, não só no exame de qualificação, mas principalmente pelo exemplo de dedicação e compromisso com a emancipação e empoderamento das mulheres.

Aos professores e professoras do Programa de Estudos Pós-Graduado em Psicologia Social da PUCSP, em especial, à Cristina Vincentin e à Fúlvia Rosemberg.

Aos amigos no Núcleo Práticas Discursivas e Produção de Sentidos, especialmente à Milena, Jacque, Vanda e Serginho.

À Marlene, pelo carinho e presteza com que sempre nos ajuda com os procedimentos administrativos do programa e pela torcida, expressa em seus gestos, de que “tudo dará certo”!

Às ativistas das Católicas pelo Direito de Decidir: Dulce Xavier e Rosângela Talib, pelas conversas esclarecedoras e pela troca de material.

Ao meu pai e à minha irmã, por tudo...

Ao Jeferson, pelo presente do amor cotidiano e pelo presente da vida: a espera de Francisco, nosso filho.

Às minhas queridas amigas de labuta: Augusta, Cássia, Carol e Fernanda, por compartilhar o dia-a-dia do trabalho docente e torná-lo divertido e alegre.

À Carla e à Regimeire, por me receberem sempre, por serem minhas amigas e por serem mulheres guerreiras, admiráveis em suas conquistas e sonhos.

Às amigas de sempre Nida e Déia, pela alegria de nossos encontros e pela energia fraterna de nossas ausências.

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Resumo

Esta tese tem como objetivo entender como as noções de risco são usadas por médicos/as obstetras para referendar a prática do aborto por risco de vida da gestante. Argumentamos que, na impossibilidade de precisão matemática da avaliação e cálculo do risco na gestação, aspectos subjetivos, como as crenças morais e religiosas, os valores culturais e as experiências de vida, entram em cena para formular a noção de risco. Para tanto, procuramos analisar os argumentos presentificados no discurso médico para a construção da noção de risco e das concepções de aborto associado ao diagnóstico de risco. Os caminhos teóricos percorrido fundam-se na noção foucaultiana de biopolítica para articular a compreensão do aborto como um objeto de controle governamental e a linguagem dos riscos como estratégia de efetivação desse controle. Como procedimento metodológico, adotamos a perspectiva do campo tema para orientar a utilização de entrevistas como conversas, baseada na abordagem das Práticas Discursivas, o que norteou a realização de

cinco entrevistas semi-estruturadas com médicos/as do serviço de aborto legal da cidade de São Paulo. A análise das entrevistas se debruçou sobre os argumentos apresentados pelos/as médicos/as, que realizam abortos por risco de vida da gestante, acerca de como o risco é concebido nas gestações em que o aborto é uma possibilidade de manter/salvar a vida ou a saúde da gestante. Para ir da discussão teórica até a consecução da análise do material empírico seguimos o seguinte percurso: apresentamos inicialmente os aportes teóricos que fundam a racionalidade política baseada na biologia dos corpos e a concepção do aborto como objeto de controle governamental; em seguida, buscamos a apreensão do conceito de risco no campo da Saúde e na Clínica Obstétrica; o passo seguinte foi fazermos uma descrição dos procedimentos metodológicos assumidos para organização das informações a serem analisadas e interpretadas a partir da Abordagem Argumentativa e, por fim, apresentamos a análise das construções argumentativas sobre risco na gestação e aborto por risco de vida da gestante. A identificação e descrição dos elementos que constituem a organização argumentativa dos discursos médicos apontaram que: o conceito de risco indica a relação entre fenômenos individuais e coletivos, expresso na linguagem matemática das probabilidades; a análise do risco é determinada pelas biografias pessoais e profissionais de cada médico; as desordens emocionais e os sofrimentos psíquicos decorrentes de uma gestação com diagnóstico de risco constituem-se em fatores de risco para a gestante; a definição e a avaliação do risco na gestação são determinadas pelo exercício do poder disciplinar médico; a crença moral do médico acerca da legalidade do aborto nem sempre condiz com a sua prática clínica e esta é determinada pelo seu posicionamento frente à moralidade do aborto; a experiência pessoal, relacionada com a vivência do aborto por alguém próximo ao médico, ou profissional, relacionada com o cotidiano dos serviços que propiciam o contato com mulheres que desejam abortar, sensibilizam os médicos para a compreensão do aborto como uma escolha autônoma da gestante.

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Abstract

This thesis aims to understand how notions of risk are used by obstetricians to endorse the practice of abortion on risk of mother's life. We argue that the impossibility of mathematical precision of the assessment and calculation of risk during pregnancy, subjective aspects such as moral and religious beliefs, cultural values and life experiences come into play in formulating the notion of risk. To this end, we analyze the arguments made present in medical discourse to construct the notion of risk and concepts associated with the diagnosis of miscarriage risk. The theoretical path traveled is based on the Foucauldian notion of biopolitics to articulate an understanding of abortion as an object of government control and the language of risk as a strategy for achieve this control. As a methodological procedure, we adopt the perspective of the subject field to guide the use of interviews and conversations, based on the approach of discursive practices, which guided the completion of five semi-structured interviews with doctors in the legal abortion of São Paulo. The analysis of interviews has focused on the arguments presented by doctors who perform abortions on pregnant woman's risk of life, about how risk is conceived in pregnancies where abortion is a possibility to keep or save the life or health of pregnant women. To go from the theoretical discussion to the achievement of the empirical analysis we follow the following route: first we present the theoretical contributions that underlie political rationality based on the biology of conception and abortion bodies as objects of government control, then seek the arrest of concept of risk in the field of Health and Obstetric Clinic, the next step was to make a description of methodological procedures undertaken to organize the information to be analyzed and interpreted from the Argumentative Approach and finally present an analysis of the argumentative construction of risk during pregnancy and risk of abortion for pregnant woman's life. The identification and description of the elements that constitute the organization of argumentative medical discourse noted that: the concept of risk indicates the relationship between individual and collective phenomena, expressed in mathematical language of probability, risk analysis is determined by personal and professional biographies of each medical, emotional disorders and mental suffering resulting from a pregnancy with a diagnosis of risk is in risk factors for pregnant women, the definition and assessment of risk during pregnancy are determined by the exercise of disciplinary doctor, the doctor's moral belief about the legality of abortion is not always consistent with his clinical practice and this is determined by its positioning to the morality of abortion, personal experience, related to the experience of someone close to abortion on medical or professional related to the daily lives of services that provide contact with women who want abortions, bring the doctors to the

understanding of abortion as a pregnant woman's autonomous choice. . .

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SUMÁRIO

Introdução 02

Capítulo 1 - A analítica foucaultiana sobre o governo da vida: contribuições conceituais para a formulação do objeto de pesquisa 08 1.1. A bipolítica de Michel Foucault 08 1.2. Releitura da biopolítica foucaultiana: uma reflexão sobre aborto

como objeto de governo 15

Capítulo 2 - Risco na sociedade contemporânea: o contexto da Saúde 21

2.1. Linguagens dos riscos 21

2.1.1. Abordagens técnico-científicas sobre risco 22 2.1.2. Abordagens socioculturais sobre risco 24 2.1.3. Enredamento entre linguagens dos riscos e linguagens sociais 26 2.2. Gestão dos riscos na sociedade contemporânea 31 2.3. A formalização do risco pela epidemiologia 34

2.4. A “molecularização” dos riscos 42

2.5. Risco no discurso técnico da Clínica 46 Capítulo 3 - Risco na clínica obstétrica: entendendo risco na gestação 55 3.1. Abordagem de risco na obstetrícia 55 3.2. Aborto por risco de vida da gestante 58 Capítulo 4 – Considerações metodológicas: os passos da pesquisa 69

4.1. Para entender campo-tema 69

4.2. Procedimentos para inserção no território do campo-tema: preparação e realização das entrevistas 71 4.3. Procedimentos para elaboração dos tópicos das entrevistas 78 4.4. A definição do método de análise: estudo da argumentação 80 4.5. Procedimentos para análise das entrevistas 84 Capítulo 5 - Construções argumentativas sobre risco na gestação 86 Capítulo 6 - Construções argumentativas sobre aborto por risco de vida da gestante 118

Capítulo 7 - Últimas reflexões 146

Referências 158

Anexo CD

Anexo A - Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa

Apêndices CD

Apêndice A - Carta de Apresentação da Pesquisa

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INTRODUÇÃO

Esta tese resulta de um interesse particular pelo tema do aborto1 induzido ou voluntário. Durante o Mestrado, realizamos uma pesquisa sobre as controvérsias morais acerca do tema (RIBEIRO, 2008), o que suscitou o desejo de continuarmos investigando essa temática, agora norteada por questões que ficaram em aberto. O desenvolvimento da pesquisa que será apresentada é marcado por uma posição política de defesa do livre direito de escolha da mulher pelo aborto e, conseqüentemente, da legalização/descriminalização dessa prática. O estudo está fundado em uma visão de sociedade que entende que os processos governamentais coercitivos, aqui traduzidos na noção foucaultiana de governamentalidade (Cf FOUCAULT, 1988), geradores de desigualdade e injustiças sociais, constituem o principal meio de produção e manutenção das relações opressoras entre ricos e pobres e especialmente, entre homens e mulheres, estabelecendo e mantendo relações desiguais de gênero2.

O Código Penal brasileiro, promulgado em 1940, no artigo 128, exclui a punição para o aborto pós-estupro realizado por médico/a quando há consentimento da gestante. Segundo a lei, não se pune aborto praticado por médico/a3: a) se não há outro meio de salvar a vida da gestante; b) se a gravidez resultar de estupro e o aborto for precedido do consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (HUNGRIA, 1955).

A despeito dos referidos permissivos terem sido incorporados à legislação desde 1940, apenas na década de 1980 foram realizados, oficialmente, os primeiros atendimentos no serviço público de saúde brasileiro. Os casos de anomalia fetal incompatível com a vida, apesar de não estarem contemplados nos permissivos da lei, também têm sido atendidos nos serviços de saúde, por meio de autorização judicial.

O serviço pioneiro de atendimento ao abortamento previsto em lei foi implantado no Hospital Municipal Dr. Arthur Saboya, de São Paulo, em 1989. Na etapa inicial de implantação, os serviços se centraram na interrupção da gravidez. Entretanto, com o

1

A palavra aborto origina-se do latim aboriri e significa “separação do sítio adequado” (SALOMÃO, 1994). Esse

termo refere-se ao produto da concepção eliminado da cavidade uterina ou abortado, enquanto o termo abortamento, mais amplamente aceito na área médica, diz respeito ao processo de ameaça à gravidez que pode culminar ou não na perda gestacional. Apesar desse esforço de distinção entre aborto e abortamento, a palavra ‘aborto’ é usada freqüentemente como sinônimo de abortamento. Dado o caráter generalizado do uso desses dois termos como sinônimos não faremos aqui uso diferenciado dos mesmos. Utilizaremos tanto aborto como abortamento para nos referir à interrupção da gravidez.

2

Gênero é entendido aqui como a relação da dominação do masculino sobre o feminino, no privilegiamento da produção e administração de riquezas sobre a produção da vida (IZQUIERDO, 1991, 1998; ROSEMBERG, 2001).

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cotidiano da assistência, o foco do atendimento foi deslocado para a atenção à violência sexual, ampliando e diversificando a abrangência das ações de saúde (SOARES, 2003).

O surgimento desse tipo de assistência médica no Brasil foi impulsionado por alguns fatores. O primeiro deles foi a atuação do movimento feminista que durante anos tem discutido o abortamento no contexto dos Direitos Reprodutivos (CORRÊA, 1999), reivindicando o direito da mulher de decidir sobre a interrupção da gravidez e que o Estado se responsabilizasse pela assistência aos casos de abortamento permitidos na lei. Outro fator, incluído na argumentação feminista, foi a realização da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), no Cairo, em 1994, e da Conferência Mundial sobre a Mulher (CMM), em Pequim, 1995, que consolidaram os conceitos de direitos reprodutivos e direitos sexuais. O parágrafo 8.25 do relatório da CIPD diz que “nos casos em que o aborto não é contrário a lei, sua prática deve ser realizada em condições adequadas” (ARAÚJO, 1999, p. 57). Os países signatários desta Conferência se comprometeram a garantir a assistência ao abortamento nos casos previstos em lei e em melhorar a qualidade da assistência ao abortamento em geral.

A Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) também teve importante papel na formulação e implantação dos serviços de assistência ao aborto legal. Ela se comprometeu com a garantia do direito à interrupção da gestação dentro do marco legal e vem desenvolvendo, dentre outras ações, o Fórum Inter-profissional sobre o Atendimento Integral à Mulher Vítima de Violência Sexual, cuja primeira versão aconteceu em parceria com o Centro de Pesquisa e Controle das Doenças Materno-Infantis de Campinas (CEMICAMP, 1997). O envolvimento da FEBRASGO tem contribuído, principalmente, para a sensibilização e adesão dos médicos obstetras.

Por fim, a iniciativa do Ministério da Saúde (BRASIL, 1999), em adotar a Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes foi fundamental para legitimar o atendimento ao aborto legal. A

Norma Técnica além de orientar sobre os procedimentos favoreceu a aceitação e garantia da segurança dos profissionais de saúde na prática do abortamento previsto em lei.

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No que tange ao permissivo referente aos casos de gravidez resultante de estupro4, a assistência às mulheres, como uma ação de saúde, trouxe para o cotidiano dos serviços temas como o abortamento, a violência sexual e doméstica e as relações de gênero, que se configuram como de difícil compreensão para os profissionais. Dentre outros motivos, o despreparo para lidar com estas questões está relacionado com a falta de capacitação e do conseqüente domínio de instrumental teórico e prático para tratar dos agravos resultantes da violência sexual, uma vez que este tema não faz parte da formação acadêmica dos profissionais de saúde, junto à concepção de que esta não é uma problemática pertinente ao setor saúde (SCHRAIBER; D’OLIVEIRA, 1999).

Em seu estudo sobre o discurso dos profissionais de saúde acerca dos cuidados às mulheres que sofrem violência, Pedrosa (2003) constatou que as práticas de assistência à saúde dessas mulheres circunscrevem a ausência, na formação profissional, de discussões sobre saúde e violência e outros aspectos a elas associados, como gênero, raça/etnia e o contexto psicossocial das usuárias. Tal ausência se ratifica nas dificuldades encontradas na prática profissional e é somente por meio da experiência que estes profissionais vão criando estratégias para lidar com a violência no dia-a-dia das instituições de saúde. Por outro lado, quando a notificação do cuidado está mais atrelada às tecnologias e às materialidades que norteiam as práticas, ela obscurece a percepção das necessidades individuais das mulheres em situação de violência e não gera ações propositivas voltadas para a autonomia das mulheres e transformação das relações (PEDROSA, 2010).

Segundo Soares (2003), ao inverso do que acontece com a violência sexual, o tema do abortamento faz parte do repertório de assuntos relacionados à vivência reprodutiva e está contemplado na formação acadêmica dos profissionais da área médica e de enfermagem. Todavia, a abordagem é influenciada por aspectos morais e religiosos que trazem dificuldades para a compreensão do tema. De uma forma geral, a assistência é norteada pela concepção de que o abortamento é um crime, sem referência aos direitos reprodutivos ou às questões sociais que derivam da problemática da clandestinidade.

A interrupção da gravidez por risco de vida no primeiro trimestre da gravidez encontra mais aceitação entre os médicos (AGUIRRE; URBINA, 1997). O mesmo não acontece quando a interrupção é decorrente de estupro. De acordo com Faúndes et al (2004), na prática diária, o aborto por risco de vida da gestante, foco desta Tese, é uma raridade. Alguns especialistas defendem que não há mais condições prévias à gestação que justifiquem o aborto. Tal afirmação pode ser contestada pela verificação de que uma

4Estamos usando

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importante proporção das mortes maternas é indireta5 e, portanto, resulta de condições diagnosticáveis no início da gravidez. O fato é que o médico é o único juiz que decide quanto acima do “normal” é o risco que a mulher deve correr para que se autorize a interrupção da gravidez, e, em geral, supõe-se que esse risco deve ser muitíssimo elevado para justificar o aborto. Ou seja, o poder médico interdita ou referenda a prática do abortamento, facilitando ou criando impedimentos de acordo com o caso apresentado. Conforme afirmações dos autores, a própria mulher não é consultada sobre quanto maior risco ela está disposta a correr para ter esse filho.

Ao consultar a literatura que trata da gestação de risco, observamos que os estudos brasileiros sobre o assunto têm uma abordagem específica associada a um tipo de risco, não havendo uniformidade no tratamento do problema. O conceito de risco gravídico surge

para identificar graus de vulnerabilidade nos períodos de gestação, parto, puerpério e vida da criança em seu primeiro ano (CESAR, 1998). Na assistência pré-natal, a gestação de alto-risco diz respeito às alterações relacionadas tanto à mãe como ao feto (RESENDE, 1998).

Para o Ministério da Saúde (1995), a avaliação de risco não é tarefa fácil, uma vez que o conceito de risco associa-se a possibilidades e ao encadeamento entre um fator de risco e um dano nem sempre explicitado. O risco gravídico vem sendo objeto de discussão

no âmbito das políticas públicas em saúde e no campo das recomendações de procedimentos técnicos. Segundo o Ministério da Saúde:

O conceito de risco é fundamentalmente probabilístico e o encadeamento que associa um fator de risco a um dano nem sempre está explicado. Em alguns [casos], por exemplo, o dano "morte fetal" deriva claramente de um fator, porém em outros, a relação é muito mais difícil de estabelecer por desconhecimento do fator ou fatores intervenientes ou pela dificuldade em definir o peso individual de cada um deles, quando o problema é multifatorial. Os primeiros sistemas de avaliação do risco foram elaborados com base na observação e experiência dos seus autores, e só recentemente tem sido submetidos a avaliações, persistindo ainda dúvidas sobre sua qualidade como discriminador (BRASIL, 1998, pág. 21, grifos do autor).

Gomes et al (2001) realizaram uma análise dos artigos científicos da área da Ginecologia/Obstetrícia buscando os sentidos que envolvem a expressão gravidez de alto risco. Ao investigar os fatores de risco gestacional, os autores constaram que, do conjunto

5

Mortes obstétricas indiretas são aquelas resultantes de doenças existentes antes da gravidez ou de doenças

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dos artigos selecionados, foram encontrados um total de 68 fatores de risco, sendo os mais freqüentes: hipertensão arterial crônica, diabetes mellitus, cardiopatia, obesidade e crescimento intra-interino retardado. Os resultados analisados pelos autores, predominantemente voltados à intercorrências clínicas, indicam a ausência de estudos qualitativos, o que pode corroborar a idéia reducionista no trato dos fatores de risco de caráter social, que são de ordem mais complexa e menos precisa do que os fenômenos propriamente clínicos.

Os autores também observaram que, em geral, os artigos analisados não trabalham o conceito de gravidez de alto-risco, mas apresentam fatores que podem indicar um

desfecho que compromete a gravidez, caracterizados como marcadores que visam à

predição de morbi-mortalidade futura. Dessa forma, durante a gestação, a mulher está sujeita a condições especiais consideradas inerentes ao estado gravídico que acarretam mudanças nos processos metabólicos, que, se medidas, podem determinar o estado fetal. Seguindo essa lógica, toda gestação traz em si mesmarisco para a gestante ou para o feto.

Gomes et al (2001) assinalam que a idéia de probabilidade, associada à noção de risco, permite diferentes leituras e coexistem sentidos que vão desde o pólo objetivo, racional, preciso e mensurável, até o pólo intuitivo, subjetivo, vago e não mensurável. Todavia, nesse vasto espectro, nota-se a presença da incerteza. Ao se analisar os fatores de risco, pode-se, de uma forma indireta, chegar ao conceito de gravidez de alto-risco. Entretanto, é possível perceber uma redução do conceito, uma vez que a idéia de fator de risco se associa mais a aspectos fisio-patológico, não abrangendo, necessariamente, outras dimensões do conceito de gravidez de alto risco.

O Ministério da Saúde também vem conceituando os fatores geradores de risco numa amplitude maior do que a concebida pelos artigos estudados por Gomes et al (2001), classificando tais fatores em quatro grandes grupos: características individuais e condições sócio-demográficas desfavoráveis; história reprodutiva anterior à gestação atual; doenças obstétricas na gestação atual; e as intercorrências clínicas. A ausência de assistência pré-natal, por si mesma, é um fator de risco para a gestante e o recém-nascido (BRASIL, 2000). Na análise feita por Gomes et al (2001) nos artigos que abordam fatores de risco, foram identificados cinco sentidos atribuídos à gravidez de alto-risco: complicação, alteração, anormal, evolução desfavorável, pejorativo. Sentidos estes que, segundo os

autores, podem ser traduzidos por situações que se afastam de um padrão previsível do processo gravídico, que fisiologicamente é considerado como uma etapa habitual. A diversidade dos sentidos atribuídos à gravidez de alto-risco pode estar relacionada com a variedade de significados da palavra risco, que assume diferentes acepções e, em

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Em um estudo sobre conhecimento, opinião e conduta de ginecologistas e obstetras brasileiros sobre o aborto induzido, Faúndes et al (2004) constataram que 90% dos médicos são favoráveis ao aborto nos casos de gestação de risco, e 60% o justificam como um risco cinco vezes, ou menos, que o “normal”, e 80% quando esse risco é 20 vezes, ou menos, que o “normal”. O argumento dos autores é, que se considerarmos que a mortalidade materna em grandes áreas do Brasil está em torno de 60 por 100.000 nascidos vivos, um risco 20 vezes maior corresponde a uma letalidade de (0,6 x 20) 12/1000 ou 1,2%. Isto contrasta com a opinião de alguns especialistas que julgam que esse seria um risco muito pequeno para justificar a interrupção da gravidez. Parafraseando os autores, resta saber se a mulher grávida está disposta a correr esse risco ou se, considerando as diversas situações de sua vida, julga que seria melhor evitá-lo.

Nosso interesse sobre o tema do aborto em casos de gestação de risco gira em torno da seguinte questão: que noções de risco são usadas por médicos obstetras para referendar a prática do aborto por risco de vida da gestante? Essa pergunta se desdobra nos seguintes objetivos específicos: identificar as noções de risco presentificadas nos argumentos médicos sobre gestação de risco; interpretar os argumentos usados para fundamentar a decisão pelo aborto ou manutenção da gestação; e analisar a construção discursiva da justificativa médica para o diagnóstico de gestação de risco com indicação terapêutica de aborto.

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Capítulo 1

A analítica foucaultiana sobre o governo da vida: contribuições conceituais

para a formulação do objeto de pesquisa

Contemporaneamente, a vida, a saúde e a luta política pelos direitos a elas relacionados, incluindo a legalização do aborto no Brasil, emergem na maior parte dos debates sobre proteção da cidadania em diversas áreas multidisciplinares de investigação em ciências sociais e humanas, assumindo uma relevância visivelmente crescente (ANGÊLA FILIPE, 2010). Este campo de produção de conhecimento pode atravessar os debates internos e externos aos domínios do saber sobre biomedicina e sociedade, ciência e democracia, conhecimento e poder, e cruza uma diversidade de contribuições disciplinares, teóricas, metodológicas e temáticas que convergem nos estudos sobre o domínio da saúde nas ciências sociais e humanas.

Inserindo-se nesta perspectiva, propomos discutir o conceito foucaultiano de biopoder/biopolítica e sua aplicabilidade na empreitada proposta nesta tese: entender como as estratégias argumentativas pautadas no poder médico que referendam o aborto em casos de gestação de risco são configuradas a partir das linguagens dos riscos (M. J. SPINK; MENEGON, 2004; ADAM; VAN LOON, 2000). Para tanto, organizamos o capítulo em duas partes: a primeira discute a noção de biopolítica em sua gênese foucaultiana e a segunda apresenta uma releitura deste conceito na perspectiva dos estudos contemporâneos sobre governo da vida.

1.1. A bipolítica de Michel Foucault

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conceito foucaultiano de bioplítica e este será usado para discutir as estratégias de poder6 sobre o governo da vida e da morte. Não é nossa intenção fazer uso exaustivo das complexas definições sobre poder que Foucault desenvolve ao longo de suas obras, por isso nos deteremos, mais especificamente, em alguns aspectos que circunscrevem o direito de viver e de morrer em seus livros “Historia da Sexualidade I” (1988) e “Em defesa da Sociedade” (1999).

Arán e Peixoto Júnior (2007) afirmam que o conceito de biopolítica foi enunciado pela primeira vez por Foucault numa conferência que ele ministrou em 1974 na Universidade Estadual de Rio de Janeiro. A palestra foi publicada em 1977 com o nome de “O nascimento da medicina social” (FOUCAULT, 1979). Segundo os autores, nesse texto Foucault aponta um deslocamento significativo nas estratégias de poder, apresentando a idéia de que o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista (FOUCAULT, 1979). Contudo, é no quinto capítulo da “Vontade de saber” que Foucault esclarece e aborda detidamente o conceito de biopoder por oposição ao direito de morte que caracterizaria o poder do soberano. Essa temática foi retomada no curso do Collège de France dos anos 1975 e

1976, “Em defesa da Sociedade”, dedicado à problemática da guerra de raças e das suas relações com o biopoder; no curso dos anos 1977-1978, “Segurança, território e população” e no curso dos anos 1978-1979, dedicado ao nascimento da biopolítica.

Segundo Foucault (1988), as noções de poder soberano e biopoder foram usadas

durante séculos para legitimar uma determinada posição frente a um sujeito ou população, posição esta que sempre implicava vida e morte. O autor usa o termo poder soberano para

referir-se ao direito de vida e de morte, o que significa, na teoria clássica da soberania, que o soberano pode fazer morrer e deixar viver. Em “Vigiar e Punir”, Foucault abordou o tema em termos de economia da punição no suplício: “Nos ‘excessos’ dos suplícios, se investe toda a economia do poder” (FOUCAULT, 1987, p. 35). O direito de punir com a morte se colocava como fundamental para o exercício da soberania clássica. Mas o que seria ter o poder de vida e de morte? Em suas palavras: “a vida e a morte dos súditos só se tornam direitos pelo efeito da vontade soberana” (1999, p. 286). A legitimação do poder soberano é

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Foucault compreende poder: “primeiro, como a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio

onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de forças encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais” (História da Sexualidade I: a vontade de saber. 2001. 14 ed., Rio de

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justificada pelo direito de morte; é por poder matar que o soberano domina seus súditos e exerce direito sobre suas vidas.

O autor afirma que, na soberania política, o soberano ter o poder de vida e de morte implica dizer que ele pode tanto fazer morrer quanto deixar viver; que nada nessa relação é natural, uma vez que é estabelecida pelo direito do soberano de governar a vida e a morte das pessoas. Não há nessa relação a escolha pela vida, e aí se pode encontrar a contradição, ou o paradoxo, como nomeia Foucault, no exercício do poder soberano, pois, se o soberano tem o direito de vida e de morte, o desequilíbrio entre fazer morrer e deixar viver é fundamental. Ou seja, a prática do direito de vida e de morte não se exerce de maneira equilibrada; ao contrário, o soberano possui o poder sobre a vida por ter antes o direito de exercer o poder sobre a morte.

É porque o soberano pode matar que ele tem o poder sobre a vida, e, assim, o exercício soberano coloca-se a partir do direito de fazer morrer ou deixar viver. Foucault descreve o poder soberano nos seguintes termos:

Por muito tempo, um dos privilégios característicos do poder soberano fora o direito de vida e morte. Sem dúvida, ele derivava formalmente da velha patria potestas que concedia ao pai de família romano o direito de “dispor” da vida de seus filhos e de seus escravos; podia retirar-lhe a vida, já que a tinha “dado”. O direito de vida e morte, como é formulado nos teóricos clássicos, é uma forma bem atenuada desse poder. Entre soberano e súditos, já não se admite que seja exercido em termos absolutos e de modo incondicional, mas apenas nos casos em que o soberano se encontre exposto em sua própria existência: uma espécie de direito de réplica [...] De qualquer modo, o direito de vida e morte, sob esta forma moderna, relativa e limitada, como também sob sua forma antiga e absoluta, é um direito assimétrico. O soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a vida, exercendo seu direito de matar ou contendo-o; só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem condições de exigir. O direito que é formulado como “de vida e morte” é, de fato, o direito de causar a morte ou de deixar viver [...]. O poder era, antes de tudo, direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida; culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la. (FOUCAULT, 1988, p. 147-148).

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lógica do fazer morrer e deixar viver do direito clássico; agora, trata-se de fazer viver e deixar morrer. O autor assim explica essa transformação:

Pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte. Talvez seja assim que se explique esta desqualificação da morte, marcada pelo desuso dos rituais que a acompanhavam. A preocupação que se tem em esquivar a morte está menos ligada a uma nova angustia que, por acaso, a torne insuportável para as nossas sociedades, do que ao fato de os procedimentos do poder não cansarem de se afastar dela. Com a passagem de um mundo para o outro, a morte era a substituição de uma soberania terrestre por uma outra, singularmente mais poderosa; o fausto que a acompanha era da ordem do cerimonial político. Agora é sobre a vida e ao longo de todo o seu desenrolar que o poder estabelece seus pontos de fixação; a morte é o limite, o momento que lhe escapa; ela se torna o ponto mais secreto da existência, o mais “privado” [...] (FOUCAULT, 1988, p. 150-151, grifos do autor).

Para Foucault (1999), essa inversão é fruto das transformações do direito político. Ele assinala que, desde que as sociedades se organizaram em termos de contratos sociais, os súditos delegam poderes ao soberano porque querem que esse lhes proteja a vida. Na noção de contrato social tem-se o direito da preservação da vida como um dos direitos fundamentais. O perigo e a necessidade são os motivos que justificam a existência de um soberano; é para poder viver que se institui um soberano.

As articulações entre esses diferentes direitos sobre a vida e morte, na visão de Foucault, propõem pensar como a vida ganha cada vez mais importância no campo da política. O caminho que o autor percorre não segue a Teoria Política, mas os mecanismos, as técnicas e as tecnologias de poder utilizadas num dado momento histórico. Ao trabalhar a questão do poder, Foucault não privilegia a abordagem jurídica institucional, mas procura analisar a forma com que o poder penetra nos corpos e produz subjetividades. Por esse motivo, suas investigações voltam-se fundamentalmente para as técnicas políticas e as tecnologias do “eu”. Essas técnicas são novas formas de exercer o direito sobre a vida e morte e são construídas nos séculos XVII e XVIII.

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cujo surgimento marca a passagem de uma anátomo-política do corpo para uma biopolítica da vida. O autor deu o nome de biopolítica da espécie humana a essa nova forma política,

significando que, depois de ter poder sobre a pessoa, este também é exercido sobre o grupo, a população, e diz respeito, entre outras coisas, aos controles de natalidade e mortalidade. Em síntese, essa nova tecnologia não se resume às pessoas como corpo; ela se dirige aos fenômenos mais globais, mais gerais, e vai afetar os processos relacionados à vida.

Dito de outra forma, a antiga potência da morte que simboliza o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. Desenvolvimento rápido, no decorrer da época clássica, das diversas disciplinas - escolas, colégios, casernas, ateliês, etc., aparecimento, também, no terreno das práticas políticas e observações econômicas, dos problemas de natalidade, longevidade, saúde pública, habitação e migração; explosão, portanto, de técnicas diversas e numerosas para obterem a sujeição dos corpos e o controle das populações. Gera-se, desse modo, a era de um “biopoder”. No século XVIII, as duas direções em que se desenvolve ainda aparecem nitidamente separadas. Do lado da disciplina, as instituições como o Exército ou a escola; as reflexões sobre a tática, a educação e a ordem da sociedade. Do lado das regulações de população está a demografia, a estimativa da relação entre recursos e habitantes, e a tabulação das riquezas e de sua circulação, isto é, das vidas com sua duração provável.

Esse biopoder, segundo Foucault (1988), foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos. Com o surgimento do capitalismo foram necessários métodos de poder capazes de majorar as forças, as aptidões, a vida em geral, sem por isto torná-las mais difíceis de sujeitar. Ao mesmo tempo em que o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado, como as instituições de poder, garantiu a manutenção das relações de

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O investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento histórico. Assim, Foucault (1988) defende que deveríamos falar de “biopolítica” para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana.

A biopolitica diz respeito à natalidade, a mortalidade, as incapacidades biológicas, os efeitos do meio, e é aí que se constitui o saber sobre os corpos, é onde se define o campo de intervenção do poder sobre a população. Na arena biopolitica, a população é tratada como problema político, científico, biológico e de poder. Em outras palavras, a biopolítica fornece mecanismos de providência em torno de eventos aleatórios que são inerentes a uma coletividade, a uma população de seres humanos, buscando níveis globais de equilíbrio. O biopoder constitui-se como uma espécie de poder regulamentador que intervém para fazer viver, controlando possíveis acidentes, para aumentar o tempo de vida e retardar a morte. Nesse âmbito, a morte passa a ser, cada vez mais, domínio da vida privada, particular. Foucault (1988) afirma que o surgimento da biopolítica acontece como se o poder, que antes tinha como modalidade a soberania, tivesse ficado inoperante para reger o corpo econômico e político de uma sociedade em face de uma explosão demográfica e do surgimento da industrialização. Estamos diante de um poder que se incumbiu tanto do corpo quanto da vida.

Foucault (1999) assinala ainda que, de uma forma geral, a “norma” é o elemento que vai circular entre o disciplinar e o regulamentador, que vai se aplicar, da mesma forma, ao corpo e à população; que permite a um só tempo controlar a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica. A norma é o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar. A sociedade de normalização não é uma espécie de sociedade disciplinar generalizada cujas instituições disciplinares teriam se alastrado e finalmente recoberto todo o espaço; ela é uma sociedade em que se cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regulamentação. Desse modo, afirmar que o poder, no século XIX, incumbiu-se da vida significa que ele conseguiu contemplar toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra.

Para Foucault (1999) a emergência do biopoder inseriu o racismo nos mecanismos do Estado moderno. Isto é,

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momento, em certo limite e em certas condições, não passe pelo racismo. (p. 303).

Na concepção de Foucault o racismo é, primeiramente, o meio de introduzir nesse domínio biopolítico da vida de que o poder se incumbiu uma cisão entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento, a distinção, a hierarquia e a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se encarregou; uma maneira de defasar, no interior da população uns grupos em relação aos outros. Em outras palavras, de estabelecer uma censura que será do tipo biológico no interior de um domínio considerado como sendo precisamente biológico. Isso vai permitir ao poder tratar uma população como uma mistura de raças ou, mais exatamente, tratar a espécie, subdividir a espécie de que ele se incumbiu em subgrupos que serão, precisamente, raças. Essa é a primeira função do racismo: fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo biológico a que se dirige o biopoder. A segunda função do racismo será desempenhar o papel de permitir uma relação positiva do tipo guerreiro – “se você quer viver é preciso que o outro morra” - de uma maneira que é inteiramente nova e que é, exatamente, compatível com o exercício do biopoder.

O racismo vai permitir estabelecer, entre a vida de um e a morte do outro, uma ligação que não é uma relação militar e guerreira de enfrentamento, mas uma correlação do tipo biológico: “quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá à espécie, mais eu – não como indivíduo, mas como espécie – viverei, mais forte, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar” (FOUCAULT, 1999, p.304). A morte do outro, nessa lógica, não seria simplesmente a minha vida, na medida em que seria a minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia e mais pura.

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assassina do Estado só pode ser assegurada se o próprio Estado funcionar no modo do biopoder, ou seja, pelo racismo.

Desse modo, a importância dada ao racismo no exercício do biopoder se deve ao fato de que ele cumpre a condição para que se possa desempenhar o direito de matar. Para ser exercido o poder de normalização que desempenha o velho direito soberano de matar ele atravessa o racismo. E, inversamente, para um poder de soberania, ou seja, um poder que tem direito de vida e de morte funcionar com os instrumentos, com os mecanismos, com a tecnologia da normalização, ele também tem de passar pelo racismo. Aqui, “tirar a vida” não é significado por Foucault como simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.

Para sintetizar o que foi dito até aqui, este “fazer viver” que caracteriza o biopoder se baseia em duas tecnologias específicas. A primeira, delas, criada nos séculos XVII e XVIII, consiste em técnicas essencialmente centradas no corpo individual, caracterizada por procedimentos que asseguram a sua distribuição espacial e a organização de sua visibilidade (técnicas de racionalização e de economia destinadas a aumentar sua força útil). O conjunto dessas técnicas compunha uma determinada disciplina. No decorrer do século

XVIII, surgiu outra tecnologia de poder que não exclui a primeira, mas que, além de integrar o corpo, se dirige essencialmente à gestão da vida (nascimentos, mortalidade, saúde e longevidade). Assim, de uma anatomo-política do corpo passou-se a uma biopolítica da

vida; a partir desta hipótese, Foucault insere a biopolítica numa relação problemática entre vida e história, ou vida e política.

1.2. Releitura da biopolítica foucaultiana: uma reflexão sobre aborto como objeto de governo

Numa tentativa de atualização da concepção foucaultina, Rabinow e Rose (2006), advogam que o conceito de biopoder serve para trazer à tona um campo constituído por tentativas mais ou menos racionalizadas de intervir sobre as características vitais da existência humana e das coletividades ou populações compostas por seres humanos.

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abordam esta temática, o termo biopoder é mais comumente empregado para se referir à

geração de energia do material biológico renovável; e o termo biopolítica tem sido usado por

defensores de causas ambientais e ecológicas. Rabinow e Rose propõem que o conceito de biopoder designa um plano de atualidade que deve incluir, no mínimo, os seguintes elementos (RABINOW, 1994; 1996; 1999; ROSE, 2001; 2006; RABINOW; ROSE, 2006):

• Um ou mais discursos de verdade sobre o caráter ‘vital’ dos seres humanos, e um conjunto de autoridades consideradas competentes para falar aquela verdade. Estes discursos de verdade não podem ser ‘biológicos’ no sentido contemporâneo da disciplina; por exemplo, eles podem hibridizar os estilos biológicos e demográficos ou mesmo sociológico de pensamento, como nas relações contemporâneas de genômica e risco, unificadas na nova linguagem de suscetibilidade. No debate sobre a moralidade do aborto voluntário os discursos de verdade se apóiam em dois campos: a ciência (mais especificamente a biomedicina) e a religião. Esses discursos têm como alvo o corpo da mulher grávida e versam sobre o caráter vital da vida que merece ser vivida, a da mulher ou a do feto.

• Estratégias de intervenção sobre a existência coletiva em nome da vida e da morte, inicialmente endereçadas a populações que poderiam ou não ser territorializadas em termos de nação, sociedade ou comunidades pré-dadas, mas que também poderiam ser especificadas em termos de coletividades biossociais emergentes, algumas vezes especificadas em termos de categorias de raça, etnicidade, gênero ou religião. Uma categoria de gênero específica, a mulher, é alvo de estratégias de biocontrole quando se fala em reprodução e sexualidade, especialmente quando se trata de aborto. Entretanto, dentro desta categoria há um grupo de mulheres mais vulnerável às estratégias de controle dos seus corpos: as negras, pobres e desassistidas socialmente.

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A biopolítica e o biopoder são tomados como fatores que incidem sobre a escolha pelo aborto. A subordinação da medicina científica ao desenvolvimento capitalista como a primeira forma de intervenção do Estado sobre o indivíduo encontra- se bem fundamentada, e ocorreu por meio da socialização do corpo, transformando-o em corpo social, o qual representa o controle da sociedade sobre os indivíduos (FOUCAULT, 1988). O capitalismo transformou o corpo em unidade biopolítica, e a Medicina foi o meio pelo qual a biopolítica passou a exercer o controle sobre o corpo das pessoas. Esse poder apreendido pelo Estado, por intermédio da Medicina, designada instância capaz de exercer tal controle sobre o corpo e a sexualidade, cunhou o aborto como objeto da biopolitica.

Discutimos anteriormente como Foucault apresenta o início do pensamento sobre a biopolítica que, por um lado, pode ser uma prática do Estado que serve, por exemplo, para o controle de indicadores de saúde, importantes para se pensar as políticas públicas de saúde (SCHRAMM, 2006), como a natalidade. Por outro lado, esse dispositivo pode objetivar o domínio reprodutivo da população, induzindo às mulheres à necessidade (quase obrigação) de usar métodos contraceptivos, quando o interesse político está focado no controle da natalidade, ou ao contrário, desestimular o uso desses métodos como também proibir o aborto em sociedades que necessitam crescer demograficamente, conforme ocorreu em civilizações da Antiguidade e, recentemente, em alguns países da Europa após a Segunda Guerra Mundial, onde a lei passou a não mais permitir o aborto (SCHOR; ALVARENGA, 1994).

Devemos considerar também, além do exercício do poder médico, a influência de fatores decorrentes da moral religiosa. O isolamento moral que a sociedade imputa às mulheres que abortam decorre de classificação estereotipada que provém da moral religiosa e está associada ao controle biopolítico do corpo pela Medicina e pelo Estado. Esse é outro fator relacionado às altas incidências de complicações e morte por aborto induzido, pois impulsiona a mulher a realizar o procedimento às escondidas, para assegurar sua privacidade e fugir do julgamento do senso moral da sociedade (FARFÁN, 2006).

Segundo Anscombe (2005), a norma moral não matar, relacionada ao dever, possui

exceções como na legítima defesa, na guerra, em campos de concentração – quando matar ou mentir para salvar a vida de inocentes pode ser uma ação justa. E uma gravidez indesejada não seria um estado de exceção na vida da mulher? Entretanto, a biopolítica reduz o ser humano a um corpo biológico sem as características históricas, culturais e sem seus direitos (= de bíos à zoé), isto é, a vida nua, o homo sacer (AGAMBE, 2002). Com o

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Na discussão da moral do aborto perpassada pela biopolítica e o controle do corpo

social, percebe-se um conflito para caracterizar a mulher que deseja abortar: ela é agente

ou sujeito moral? Essa determinação é fundamental para a avaliação bioética da temática.

Ao ser qualificada como responsável por estar grávida, a mulher é enquadrada como agente, ou seja, ela agiu contra seus desejos ao se deixar engravidar, pois não usou métodos para evitar que isso ocorresse. Entretanto, essa análise pode (e deve) ser questionada pelo seguinte argumento: a interação entre responsabilidade e liberdade de escolha e o efetivo acesso aos dispositivos de informação e métodos de planejamento familiar são determinados pelo ordenamento jurídico.

Mesmo quando a gravidez é desejada/planejada e a decisão pelo aborto por risco de vida se coloca como uma opção, esta decisão não cabe à mulher, pois quem vai decidir sobre o quanto de risco ela pode ou deve correr é o médico que gerencia sua vida.

De acordo com Ângela Filipe (2010), na última década, o conceito de biopolítica tem sido atualizado por autores diversos e em terrenos distintos, como o antropólogo Paul Rabinow com a noção de biosocialidade (1996). Outros autores revisitaram os conceitos seminais de

Foucault paradescrever as reconfigurações que mediam diversas modalidades de cidadania a partir das concepções de vida, de biológico e/ou de saúde e doença, consagrando um novo espaço conceitual – o de biocidadania. Segundo a autora, este conceito dispõe de uma

enorme diversidade de especificações e contribuições teóricas, advindas de autores como AdrianaPetryna7; Charles Briggs e Clara Martini-Briggs8; Deborah Heath9, Rayna Rapp10 e João Biehl11.

Outros autores, dentre eles Nikolas Rose, exploram noções como a de política da vida em si mesma (life itself), lançando como desafio considerar a forma comoas questões

de biologia e biomedicina, e os seus pressupostos, influenciam e moldam osatuais projetos de cidadania num mundo globalizado e onde o foco não se resume aestratégias definidas “a partir de cima” (ROSE, 2006, p. 132-133).

A metáfora “a partir de cima” refere-se à forma como nos posicionamos diante de duas polaridades distintas, à medida que abordamos o eixo do biopoder e da biopolítica ou o

7 PETRYNA, Adriana.

Life Exposed: Biological Citizens after Chernobyl (In-formation). New Jersey: Princeton

University Press, 2002.

PETRYNA, Adriana; Kleinman, Arthur, “The pharmaceutical nexus”, in Petryna et al. (eds.), Global Pharmaceuticals: Ethics, markets, practices. London: Duke UniversityPress, 2006.

8 BRIGGS, Charles; MARTINI-BRIGGS, Clara.

Stories in the Time of Cholera: Racial profiling during a medical nightmare”. Berkeley: University of California Press, 2003.

BRIGGS, Charles, “Communicability, Racial Discourse, and Disease”, Annual Review of Anthropology, 34, 269–

91, 2005.

9 HEATH, Deborah

et al. “Genetic Citizenship” in David Nugent e Joan Vincent (eds.), A companion to the Anthropology of the Politics. Oxford: Blackwell Publishing,152-167, 2004.

10 RAPP, Rayna, “Cell life and death, Child life and death: genomic horizons, genetic diseases, family stories”,

in

Sarah Franklin e Margaret Lock (eds.), Remaking Lifeand Death: Toward an anthropology of the biosciences.

Santa Fe: School of American Research Press,129-164, 2003. 11

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eixo das lutas em torno da saúde. De acordo com Ângela Filipe (2010), na constituição e nascimento desses dois eixos parece configurar-se, grosso modo, um projeto “de cima para baixo” do governo da vida e um projeto “de baixo para cima” da luta em torno da própria vida, interferindo em diferentes modos na conformação do panorama contemporâneo da

saúde. Os debates contemporâneos sobre saúde, (bio)medicina, cidadania e política surgem, de um lado, marcados por um conjunto de reflexões em torno das transformações que se operam no campo da (bio)medicina e do poder, de outro, por um outro grupo de considerações sobre redefinições introduzidas por atores coletivos. Contudo, algumas das mais visíveis transformações que se operam no panorama da saúde desenvolvem-se em ambos os projetos e poderiam incorporar ambas as linhas de reflexão.

Esta tese, por sua vez, situa-se num investimento “de cima para baixo”, ao eleger como objeto de estudo o governo sobre a vida mediada pelo discurso médico. O movimento “de baixo para cima” é mais um esforço pessoal da autora da Tese - tendo em vista seu posicionamento político em defesa do amplo e livre direito da mulher de decidir pelo aborto - e menos uma empreitada científica, posto que não é exatamente a luta pelo livre acesso ao aborto o alvo da investigação proposta.

Como vimos na primeira parte deste capítulo, na análise original de Michel Foucault (1988), o biopoder torna-se parte de uma tecnologia bipolar que levou o Estado moderno a assumir a administração dos corpos – a anatomopolítica – e a gestão da vida e das populações – a biopolítica. As importantes formulações desenvolvidas por Foucault têm sido atualizadas por uma série de autores e autoras das ciências sociais e humanas que desenvolvem teorizações sobre o político, a ciência e a medicina. É da intersecção destas áreas de conhecimento que surgem os debates mais instigantes sobre biopoder e biopolítica e, consequentemente, sobre a forma como se define e legitima contemporaneamente o que é saúde, biologia, política, cidadania e como se (co)produzem os processos que lhes são inerentes (ÂNGELA FILIPE, 2010).

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O conceito de governamentalidade foi desenvolvido por Foucault em várias obras, sobretudo em seu texto homônimo da aula proferida no Collège de France em 1º de

fevereiro de 1978 (FOUCAULT, 1995). Para o autor, governamentalidade

[...] é o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. (FOUCAULT, 1995, p. 292).

Na teorização foucaultina, o governo é concebido como a fusão das atividades de cada um de nós, cabendo à Psicologia Social uma relevante contribuição na compreensão dos sentidos dos riscos na vida cotidiana. Trazendo essa proposta para o enquadre da psicologia discursiva que se desenha no âmbito do movimento construcionista, o foco se desloca das estratégias regradas para as formas de falar sobre riscos em diferentes instâncias da vida cotidiana (M. J. SPINK, MENEGON, 2004).

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Capítulo 2

Risco na sociedade contemporânea: o contexto da Saúde

Este capítulo tem por objetivo discutir o uso das linguagens de risco no campo da Saúde e está organizado de modo a seguir a seguinte linha argumentativa: apresentação da concepção da linguagem dos riscos; discussão dos modos de gestão dos riscos na sociedade contemporânea; abordagem do risco na Epidemiologia; considerações sobre o processo de “molecularização” dos riscos; e, por último, apontamentos sobre formalização do risco no campo da clínica. Dentro da organização desta tese, o presente capítulo tem a função de oferecer elementos conceituais e teóricos para a interpretação dos usos das noções de risco empregadas pelos médicos obstetras na avaliação do risco na gestação e sua decorrente indicação pelo aborto ou manutenção da gestação.

2.1. Linguagens dos riscos

A comunicação de riscos, no formato clínico do “diagnóstico de risco”, associado ao emprego de tecnologias na área da saúde é um elemento importante na decisão pela manutenção ou interrupção legal da gestação. Esse aspecto relaciona dois âmbitos: o que pode ser vislumbrado como risco à saúde da gestante, do ponto de vista clínico; e o que se concebe como direito ao aborto nos casos em que a gestante “está em risco”.

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(Medicina, Enfermagem, Psicologia, etc.). Este fato nos faz inferir que os modos de identificar, avaliar e comunicar riscos estejam vinculados a conceitos de análise técnica de riscos, que integram o conjunto tradicional da linguagem dos riscos (M. J. SPINK;

MENEGON, 2004; MENEGON, 2006).

Propomo-nos a buscar compreender a importância que a noção de risco exerce na indicação terapêutica para interrupção legal da gestação, e, conseqüentemente, entrever a sustentação conceitual para a análise dos argumentos sobre risco na gestação. Para tanto, focalizamos a consideração da linguagem dos riscos como uma dimensão das linguagens sociais -, argumentando que uma linguagem social constitui-se com a permanência e a constância de alguns elementos, como conjuntos de repertórios interpretativos12 que se tornam prototípicos.

No campo discursivo da vida social cotidiana (ALMEIDA-FILHO, 1992), não há consenso sobre o que seja risco, nem muito menos uma uniformidade conceitual, mas o mesmo não acontece com a gênese histórica que propiciou a emergência de práticas discursivas e a posterior permanência discursiva de alguns de suas concepções, pois determinadas condições da modernidade propiciaram a formatação de discursos sobre risco (BERNSTEIN, 1997; WYNNE, 2001; M. J. SPINK, 2001). Ou seja, a linguagem dos riscos tem como matriz conceitual os aparatos intelectuais, culturais e materiais, próprios da modernidade que propiciaram a formação de uma linguagem social para falar da aspiração de controle de riscos, num jogo entre eventos passados e projeções futuras.

Há divergência sobre uma série de possíveis datas para a emergência do “estudo científico de risco” e de sua profissionalização. Mas seja qual for o marco, a expansão da análise de riscos ocorre a partir da Segunda Guerra Mundial, apresentando três áreas inter-relacionadas: avaliação de risco, percepção de risco e gerenciamento de risco (M. J. SPINK, 2000a; 2001). Brian Wynne (2001) refere-se ao resultado dessa expansão, argumentando que, pelo menos na última metade do século XX, as sociedades ocidentais ficaram subordinadas ou até mesmo definidas por dois mitos gêmeos: o determinismo e o controle.

Embora não seja objetivo deste trabalho traçar a trajetória das abordagens que contribuíram para a formalização e a expansão da linguagem dos riscos, mesmo porque esse campo é bastante complexo e repleto de estudos e de perspectivas divergentes, sintetizamos, a seguir, algumas abordagens técnico-científicas e socioculturais sobre riscos. Para essa empreitada, seguiremos o caminho já traçado por Vera Menegon (2006), pesquisadora do Núcleo de Práticas Discursivas e Produção de Sentidos da PUCSP,

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adotando a classificação de abordagens sobre risco proposta por Ortwin Renn (1992) e Deborah Lupton (1999).

2.1.1. Abordagens técnico-científicas sobre risco

A classificação de Renn (1992) diferencia sete vertentes de abordagens de risco: 1) atuarial; 2) toxicológica e epidemiológica; 3) das engenharias; 4) econômica, com comparações entre risco e beneficio; 5) psicológica, com análise psicométrica; 6) teoria cultural de risco; e 7) teorias sociais de risco. O autor considera as três primeiras como abordagens técnicas de risco; a quarta e a quinta, como abordagens intermediárias; e a sexta e sétima, como socioculturais. Ele afirma que as sete abordagens compartilham um elemento: a distinção entre realidade e possibilidade. Se essa distinção for aceita, o termo risco “denota a possibilidade de ocorrência” de um efeito adverso como resultado de eventos naturais ou da atividade humana. Isso implica que os humanos fazem conexões causais entre ações ou eventos e seus efeitos, buscando controlar efeitos indesejáveis, seja evitando-os ou, pelo menos, mitigando-os.

As três primeiras perspectivas (atuarial, toxicológica e epidemiológica e das engenharias), agrupadas por Renn (1992) sob o título de “analises técnicas de risco”, buscam antecipar o potencial de dano físico para os seres humanos ou ao ecossistema. Essas perspectivas calculam a média de ocorrência dos eventos indesejáveis num dado espaço e tempo, usando freqüências relativas (observadas ou modeladas) como um meio de especificar as probabilidades de ocorrência.

O autor reconhece e reafirma o valor social dessas abordagens técnicas de risco, mas se alinha ao coro de críticas vindas do campo das ciências sociais, considerando que a definição de efeitos indesejáveis restringe-se a danos físicos causados aos seres humanos e aos ecossistemas, excluindo das análises os impactos sociais e culturais. Ele argumenta que “as análises técnicas são compreendidas como espelho da relação entre observação e realidade, e não consideram que as causas dos danos e a magnitude das conseqüências sejam ambas mediadas por experiência e interações sociais” (1992, p. 61).

(31)

O que está em cena é o grau de satisfação ou de descontentamento associado a uma possível ação ou transação. Nas três primeiras abordagens - que o autor classifica como técnicas - é totalmente irrelevante se um dano é significado como prazeroso ou catastrófico. Na abordagem da economia, ocorre o contrário: a relevância está na satisfação subjetiva perante potenciais conseqüências e não numa lista predeterminada de efeitos indesejáveis. Nessa perspectiva, o denominador comum “satisfação pessoal” permitiria a comparação direta entre riscos e benefícios, com base em um leque de opções.

O autor ressalta, ainda, a utilidade dessa abordagem e sua contribuição para as políticas de risco, principalmente por incluir na definição de eventos indesejáveis aspectos não físicos de possíveis riscos. Discute, todavia, algumas críticas feitas a essa abordagem: afirma que o conceito de risco da economia é um parâmetro lógico e coerente, desde que utilizado em situações em que a tomada de decisões seja individual e as conseqüências da decisão fiquem restritas à pessoa que decide. Entretanto, tal condição raramente ocorre, pois a maioria das decisões sobre risco tem caráter coletivo, o que necessitaria uma agregação de utilidades, embora a mensuração desse bem-estar continue a ser um problema; muitas transações e relações entre pessoas implicam imposição de riscos para terceiros, os quais podem não ser beneficiados, ou ser beneficiados apenas marginalmente.

No que se refere à perspectiva psicológica, que se baseia no método psicométrico, o autor ressalta seu papel na compreensão da percepção de riscos por parte das pessoas, nas estratégias de comunicação sobre riscos, na percepção da noção de probabilidades e dos valores e preocupações do público. Aponta que os estudos dessa vertente contribuem para a compreensão de respostas a situações de risco, ampliando a compreensão das instâncias de julgamento subjetivo e fornecendo subsídios para políticas públicas. Entretanto, enfatiza que sua aplicabilidade é limitada.

Classificações ou categorizações são sempre versões parciais de realidades discursivas variadas, o que implica diferenças e divergências entre classificadores. Lupton

(1999), por exemplo, tomando como parâmetro o fato de as noções de dano ou perigo serem objetivadas por meio de cálculos de probabilidade, classifica as perspectivas atuarial, estatística, epidemiológica (e toxicológica), engenharias, incluindo as abordagens da Economia e da Psicologia, sob a rubrica “abordagens técnico-científicas”.

2.1.2. Abordagens socioculturais sobre risco

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