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Risco na sociedade contemporânea: o contexto da Saúde

2.1. Linguagens dos riscos

2.1.3. Enredamento entre linguagens dos riscos e linguagens sociais

Para elucidar o entrelaçamento da linguagem dos riscos com diferentes esferas sociais, listamos algumas categorias de risco identificadas por Lupton (1999), que, segundo a autora, atualmente parecem predominar nos ordenamentos sociais, sobretudo nas culturas ocidentais, são eles:

1. riscos ambientais (poluição, radiação, produtos químicos, enchentes, incêndios, rodovias perigosas, etc.);

2. riscos associados ao estilo de vida (os representados pelo consumo de determinados alimentos e drogas, engajamento em atividades sexuais, maneiras de dirigir, estresse, entretenimento, etc.);

3. riscos médicos (aqueles relacionados com experiências médicas ou tratamentos – por exemplo, drogas terapêuticas, cirurgias, parto, tecnologias reprodutivas, testes diagnósticos);

4. riscos interpessoais (envolvendo relacionamentos íntimos, interações sociais, amor, sexualidade, papéis de gênero, amizades, casamento, paternidade);

5. riscos econômicos (desemprego, subemprego, endividamento, investimento, falência, perda de propriedades);

6. riscos de criminalidade (participantes e vítimas em potencial de atividades ilegais). Segundo M. J. Spink (2001), os conceitos formais de risco, os técnicos-científicos, dependem de cálculos abstratos, baseados na presumível identidade entre o possível e o provável. A tarefa de definir o que constitui um risco se torna inevitavelmente uma tarefa que passa pela esfera de valores sociais. Essa controvérsia sobre o que sejam os riscos, ou como abordá-los, não diminui a importância do papel que a noção de risco passou a exercer em nossas organizações sociais a partir da modernidade. Sua formalização em conceitos, a profissionalização de uso nas abordagens técnicas ou socioculturais, continua desempenhando papel importante no planejamento e na execução de estratégias de governo em diferentes arenas – economia, saúde, administração, esporte, política -, alcançando a vida de cada um de nós.

No campo da saúde, a Epidemiologia foi porta de entrada para a formalização de um discurso hegemônico sobre risco, tornando-se oconceito fundamental na própria construção da Epidemiologia como campo disciplinar. É nesse campo que se formula a abordagem técnico-científica da Epidemiologia e Toxicologia.

Castiel (1999) afirma que a idéia de probabilidade que funda o risco epidemiológico pode ser entendida de duas maneiras: uma que reporta à incerteza não mensurável, compreendida como intuitiva, subjetiva, vaga, ligada a algum grau de crença; outra que

pressupõe a incerteza mensurável, postulando ser objetiva, racional, precisável mediante técnicas probabilísticas. A abordagem dos fatores de risco toma como referencia a segunda

forma, isto é, “marcadores que visam à predição de morbi-mortalidade futura” (CASTIEL, 1999, p. 41).

A linguagem dos riscos é uma forma presente de descrever o futuro, com o pressuposto de que é possível decidir sobre qual é o futuro desejável. Sobre essa relação entre presente e futuro Castiel (1999, p.21) afirma: O conceito de risco homogeneíza as contradições no presente ao estabelecer que só é possível administrar o risco (o futuro) de modo racional, ou seja, através da consideração criteriosa da probabilidade de ganhos e

perdas, conforme decisões tomadas.

Como mencionado anteriormente, Lupton (1999) enumera os riscos cotidianos de cada um de nós: riscos ambientais, de estilo de vida, tratamentos médicos, interpessoais, econômicos e criminalidade. Essa diversidade de situações de risco resulta e, ao mesmo tempo, produz um refinamento nas abordagens destinadas a lidar com esses riscos, assim como nas técnicas utilizadas para acessar riscos conhecidos ou procurar outros ainda desconhecidos. O manejo e a “descoberta” de novos riscos engendram maneiras diferentes de posicionar as pessoas em relação a riscos variados (M. J. SPINK, 2007b; MENEGON, 2006).

As pesquisadoras australianas Anne Kavanagh e Doroty Broom (1998), ao discutirem esses riscos, entrelaçam riscos e responsabilidade, propondo que seja feita distinção entre:

1. riscos ambientais (os advindos da natureza, como sol, terremoto, etc.), e os produzidos pela humanidade: poluição, produtos tóxicos, lixo nuclear, etc.);

2. riscos causados pelo estilo de vida das pessoas (cigarros, exercícios, dietas, etc.); 3. riscos corporificados (embodie risks), relacionados com a detecção e o diagnóstico

de doenças associadas a fatores genéticos.

Para essas autoras, esse refinamento leva à definição de níveis de responsabilidade e de ações, os quais deslizam em um continuum entre as esferas do coletivo e do individual.

Vale apontar, ainda, que a discussão sobre risco corporificado é recente, distinguido-se das outras categorias por localizar o risco no próprio corpo. A noção de risco corporificado

remete a uma ameaça que vem do corpo, definido quem a pessoa é, em lugar do que ela faz ou fazem a ela: o próprio corpo encerra algo que pode ser ameaçador ou desabonador (KAVANAGH; BROOM, 1998).

Numa abordagem bastante próxima, Regina Kenen (1996) introduz outro elemento: o grau de controle que pode ser exercido pela pessoa – que está em risco, é colocada em

risco, tem um risco ou é um risco. Discute as diversas situações que compreendem riscos

No caso dos riscos ambientais, independentemente do grau de controle (alto ou baixo) que pode ser exercido pela pessoa, as soluções não passam por mãos médicas, a não ser que, como conseqüência, apresentem um quadro de doença grave ou crônica. Já para os riscos considerados prioritariamente biológicos, a subdivisão é feita em virtude do grau de controle que teoricamente a pessoa possa exercer:

1. Alto controle – o estilo de vida pode ajudar na prevenção de determinadas doenças. Para detectar a condição da saúde em risco é necessário, porém, submeter-se a

testes diagnósticos médicos e a exames laboratoriais (nível de colesterol, taxas hormonais, osteoporose, tipos de câncer ainda não vinculados à genética, entre outros).

2. Baixo controle – ser portador(a) de um problema genético ou pertencer a uma família que tem um desses problemas. Até o momento, não se pode modificar a estrutura genética, mas com o diagnostico precoce pode-se tomar decisões, tais como não engravidar, decidir por aborto seletivo, promover mudanças no estilo de vida ou, ainda, decidir por cirurgias profiláticas.

Comparando com a classificação apontada por Kavanagh e Broom, (1998), os riscos biológicos passíveis de maior controle entrariam no grupo daqueles causados pelo estilo de vida das pessoas (cigarro, exercícios, dietas, etc.). Em contraste, no grupo de baixo controle

entrariam o que as autoras chamam de riscos corporificados (embodied risks).

Para Kenen (1996), os avanços das técnicas de diagnóstico aumentam a probabilidade de um maior número de pessoas se tornarem portadoras “da condição de saúde em risco”

(at-risk heath status), além de abrirem as portas para a eugenia da normalidade (eugenics of

normalcy). Segundo a autora, o grande problema com os mapeamentos genéticos é que

todas as pessoas possuem genes recessivos que podem ser considerados danosos à saúde. Kenen (1996) aponta também outros aspectos decorrentes da oferta de tecnologias de diagnóstico, uma vez que essas práticas podem:

1. tornar-se um princípio organizador de comportamento social e individual – por exemplo, praticar sexo seguro, estabelecer lugares próprios para fumantes, manter- se em boa forma física, etc.;

2. desenvolver uma relação simbiótica com a tecnologia de diagnostico – quanto mais aceitam a condição de saúde em risco, mais as pessoas se tornam predispostas a

aceitar um teste diagnóstico para ter acesso aos seus riscos;

3. ampliar o campo de trabalho da Medicina – por exemplo, angiogramas, exame preventivo para câncer de próstata, teste genético para detectar câncer de mama na família, etc.

Com a oferta de tecnologias para visualização diagnóstica, ampliam-se as possibilidades de detectar riscos. Para quem recebe o diagnóstico, a importância dessa visualização está no grau de gravidade atribuída ao risco e ao controle possível de ser exercido por quem tem

o risco. Nesse caso, os níveis de controle devem ser entendidos num continuum entre baixo

e alto grau de controle.

Inserida nessa temática sobre graus de controle e posicionamento de pessoa diante do risco, tomando como ponto de partida os repertórios indicadores dessa condição, M. J. Spink (2000a) analisa como a linguagem dos riscos na biomedicina posiciona as pessoas. Na análise da autora, grosso modo, as pessoas podem ser vistas como estando em risco (at risk) ou correndo risco (risk taking, risk behavior). Essas posições de pessoa decorrem da

própria definição dos riscos e, sobretudo, dos postulados sobre grau de controle pessoal na exposição aos riscos.

Ser posicionado numa escala de risco como “estando em risco” ou “correndo riscos” decorre de processos de avaliação (e entram aqui as tecnologias de diagnósticos) que frequentemente constituem o primeiro passo do processo de intervenção. Há riscos sobre os quais as pessoas têm menor grau de controle, sejam eles externos (como nos riscos provenientes de produtos tóxicos, de degradação ambiental ou dos processos de exclusão social), sejam internos (como os riscos derivados da constituição orgânica ou genética de cada um de nós, que podem ser caracterizados como riscos corporificados). Decorre dessas

avaliações o posicionamento de “estar em risco”. Mas há também riscos que estão associados ao estilo de vida. Estes, teoricamente, seriam passíveis de maior controle, dadas as condições de informação e motivação para mudanças de comportamento. É nesse cenário que emerge o discurso sobre correr riscos.

Em uma cultura em que a linguagem dos riscos permeia as mais variadas esferas sociais, existem situações menos drásticas em que se aplica a decisão de correr riscos. Na área materno-infantil, por exemplo, segundo Alvarenga (1984), a noção de risco como inerente à gravidez foi incorporada à agenda de cuidados a serem tomados durante a gravidez na década de 1950. Nesse caso, o simples fato de decidir engravidar significa

correr os riscos envolvidos na gestação e no parto. Neste campo, a metáfora correr riscos

aproxima-se, de um lado, de desafios pressupostos em outras áreas, como na Economia, com sua racionalidade de equilíbrio entre risco e benefícios, tendo a satisfação pessoal como balizador; por outro lado, pode se aproximar dos desafios propostos no campo da aventura (risco aventura).

Lupton (1999) faz uma reflexão sobre diferenças de gênero em relação à metáfora “correr riscos” no campo do esporte, afirmando que a mulher não é incentivada culturalmente a correr riscos implicados em situações de aventura. No entanto, correr riscos

em circunstâncias consideradas como parte da condição de ser mulher, como a maternidade, é algo culturalmente aceito e até mesmo incentivado. Nessa perspectiva, levar adiante uma gravidez de alto risco, ou vencer todas as adversidades e frustrações presentes nas tentativas de engravidar, pode ser compreendido como um ato heróico ou dadivoso.