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Risco na clínica obstétrica: entendendo risco na gestação

3.1. Abordagem de risco na obstetrícia

Como discutido no capítulo anterior, o conceito de risco na Epidemiologia designa chances probabilísticas de suscetibilidade atribuíveis a um indivíduo qualquer pertencente a grupos populacionais particularizados, delimitados em função da exposição a agentes de interesse técnico ou cientifico (AYRES, 2008). Nesse processo, a expressão “estar em risco”, característica das noções de suscetibilidade das técnicas de gerenciamento da população no século XIX, perde sua importância. Essa construção lingüística oblitera-se lentamente da literatura epidemiológica, muito embora tenha sido incorporada no vocabulário de outras disciplinas, entre elas a Psicologia. Em substituição, a expressão dominante passa a ser “dado x, o risco é y”, ou “o risco de x é y” (M. J. SPINK, 2007a). Segundo Ayres (2008), o risco deixa de ser um indicador de infortúnio e torna-se uma expressão formal e probabilística do comportamento de freqüências de determinados

17 “Causal Salud” é um documento produzido pela Federação Latino-Americana de Sociedades de Obstetrícia e Ginecologia (FLASOG), em parceria com algumas organizações feministas, que visa normatizar a prática da assistência a interrupção legal da gestação em casos de gravidez de risco e estabelece parâmetros para a

eventos de saúde quando inquiridos a respeito de associações particulares; decorre daí a possibilidade de falar em “riscos relativos”.

Desse modo, emerge no cenário epidemiológico o enquadre dos fatores de risco e das intervenções baseadas na “Abordagem dos Riscos” (“Risk Approach”). Essa perspectiva teve por objetivo a organização seletiva de serviços de saúde e foi introduzida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no final da década de 1970, no contexto do Programa de Atenção Materno-Infantil (M. J. SPINK, 2007a).

A lógica que sustenta a “Abordagem de Risco” se funda na seguinte premissa: sabe- se, por experiência, que algumas pessoas, mais que outras, são mais suscetíveis a, ou são mais frequentemente afetadas por morbidades específicas do que outras. Pessoas com características comuns às daquelas que experimentam a morbidade de interesse são consideradas como estando em maior risco do que as que não possuem tais características. Essas características são denominadas fatores ou marcadores de risco (HAYES, 1991).

A “Abordagem de Risco” permitiu a migração do conceito de risco para a Clínica Obstétrica, sendo formalizada pelo documento da OMS (1978), intitulado “Risk approach for maternal and child health care: a managerial strategy to improve the coverage and quality of maternal and child health/family planning services based on the measurement of individual and community risk”. Nesse documento o desenvolvimento da “Abordagem de Risco” é apresentado como possibilidade de melhoria da saúde materna e infantil por parte de uma força-tarefa da OMS, entendido como resultado da constante busca por métodos promissores no cuidado em saúde. É assim definido:

O “risk approach” pode ser considerado como uma ferramenta de manejo para distribuição flexível e racional dos recursos existentes nas medidas dos riscos individuais e coletivos, e para o desenvolvimento de estratégias locais determinando o conteúdo apropriado do planejamento do cuidado à saúde materna e infantil/familiar. Algo inerente nessa abordagem é a utilização máxima de todos os recursos, incluindo alguns recursos humanos que não são convencionalmente incluídos em tais cuidados à saúde – parteiras, professores, grupos de mulheres, trabalhadores rurais, por exemplo. Ele também permite e promove autoconfiança para o cuidado em saúde na comunidade e na família, particularmente da mãe para a criança pequena. Apesar de a abordagem ter importante potencial para a boa qualidade e cobertura do cuidado à saúde em países em desenvolvimento, ele é também útil para regiões desenvolvidas (OMS, 1978, p. V, tradução nossa).

A OMS (1978) afirma que o conceito e a metodologia da “Abordagem de Risco” são mais adequados para as necessidades de planejamento do cuidado à saúde materna e infantil/familiar, principalmente como parte do cuidado primário à saúde. Segundo os assinalamentos postos no documento, há necessidade de buscar caminhos para fazer o uso otimizado dos recursos existentes para o beneficio da maioria da população, que se

encontra em situação de vulnerabilidade social e dificuldade de acesso a programas de saúde de qualidade.

Na Clínica Obstétrica, o termo “risco” significa que a presença de uma ou mais característica ou fator aumenta a probabilidade de conseqüências adversas. O risco constitui uma medida da probabilidade estatística de que no futuro surja um acontecimento não desejado, denominado “dano”. Com relação à gestação, definem-se danos possíveis segundo o resultado perinatal: mortes (aborto, natimorto, neomorto precoce ou tardio) e problemas de saúde (recém-natos de maior risco: pré-termo, baixo peso ao nascer, malformados e síndromes genéticas) (LUZ; REIS; DA COSTA, 2000). Há fatores de risco que, em estudos epidemiológicos, mostram-se mais importantes que outros na determinação de um dano específico, por exemplo, idade materna avançada determinando a síndrome de Down.

Segundo Luz, Reis e da Costa (2000), há três formas, na Obstetrícia, pelas quais determinado fator de risco se associa à conseqüência indesejável ou dano:

1. Forma causal, desencadeante do processo patológico; podem ser citadas a má

nutrição materna e o baixo peso do concepto ao nascer.

2. Forma favorecedora, onde há clara conexão entre o fator e o dano, ainda que o fator

não seja a causa direta, por exemplo, intervalo interpartal e baixo peso ao nascer.

3. Fator preditivo ou marcador, quando a associação se faz através de múltiplos elos,

de forma não claramente identificável, às vezes, evidenciada por meio apenas de associações estatísticas, sendo, então, denominado o fator de preditivo ou marcador. A gravidez em adolescentes, e conseqüentes resultados perinatais indesejáveis, é exemplo dessa associação.

Segundo os autores, pode-se sistematizar as inúmeras variáveis descritas como associadas à morbidade e à mortalidade perinatais em cinco grupos: GRUPO I, gestações de maior risco fetal possíveis de serem identificadas na primeira consulta pré-natal sem necessidade de exames complementares; GRUPO II, gestações de maior risco fetal nem sempre identificáveis na primeira consulta pré-natal; GRUPO III, gestações de maior risco fetal devido a doenças gravídicas; GRUPO IV, gestações de maior risco fetal devido a doenças intecorrentes à gravidez; GRUPO V, gestações de maior risco fetal devido a condições do parto e anomalias do cordão umbilical.

Sobre as utilidades do conceito de risco em Obstetrícia, Luz, Reis e da Costa (2000) assinalam que elas podem ser as seguintes: 1) aconselhamento do risco individual: os fatores de risco são usados para predizer a ocorrência de doença. A melhor informação disponível para predizer doença em um indivíduo é a experiência prévia com um grande

número de pessoas com um fator de risco semelhante; 2) estudo da causalidade: o fato de um fator de risco predizer doença não significa que cause doença. Um fator de risco que não é causa de doença é chamado de marcador; 3) prevenção: se um fator de risco é também a causa de uma doença, sua remoção pode ser usada para prevenir a doença, mesmo que não se saiba o mecanismo pelo qual a doença se manifesta; 4) planejamento da saúde – administração de serviços de saúde. A assistência à mulher grávida está organizada por níveis que são definidos pelo risco a que as pacientes estão expostas e pela complexidade de atenção necessária.

A respeito dos níveis de cuidado a gestante a partir da avaliação do risco, a política de assistência é organizada assim: 1) Atenção primária – Cuidados Básicos de Saúde:

conforme os preceitos da OMS (1978), a atenção primária visa à remoção de fatores de risco e à promoção de saúde. É realizada em unidade de cuidados básicos de saúde geralmente perto do domicílio. A assistência pré-natal seria a atividade básica juntamente com o planejamento familiar. A avaliação de risco, que permite organizar a assistência, deve ser feita através de marcadores; 2) Atenção Secundária, nível de assistência em que é

realizado diagnóstico precoce de doenças e assistência a pequenos problemas de saúde, que visa ao diagnóstico e ao tratamento de pequenos problemas da gravidez. A assistência ao parto em gestantes de baixo risco é enquadrada aqui; 3) Atenção terciária, esse nível de

cuidado objetiva a assistência às complicações da gravidez, tanto no que diz respeito a assistência pré-natal da paciente com doenças intercorrentes e próprias, quanto à assistência ao parto e ao recém-nascido nas gestações de alto-risco. Há a necessidade de equipamento caro e pessoal altamente treinado. A avaliação do risco nesse nível também ajuda a organizar a assistência e deve ser feita através de fatores causais (LUZ; REIS; DA COSTA, 2000).