• Nenhum resultado encontrado

Nesta construção argumentativa o aborto é pensado na dimensão jurídica, sendo consideradas as interpretações dos incisos do Código Penal que permitem a sua realização.

Proposição: A legislação sobre o aborto voluntário é passível de interpretações subjetivas. Essa proposição é apresentada como resultado da análise do Código Penal a respeito da legalidade do aborto. Como estrutura da argumentação, essa proposição visa justificar a defesa do caráter legal e não-criminalizado do aborto quando a vida da gestante está em risco. A anencefalia do feto é trazida como caso prototípico em que se aplica a possibilidade de interpretações diversas:

Por exemplo, infelizmente, o nosso Código Penal ele está mal escrito, também foi de 1940. Então, se lá diz assim <<quando não há outra maneira de salvar a vida da gestante>> Ou seja, muitos médicos interpretam assim << só quando a mulher está em coma>>. Outros interpretam assim <<se essa mulher tem 60% de chance de morrer, eu vou antecipar>> Mas isso não é de acordo com a lei, rigidamente. Mas a lei já criou flexibilizações. E os juízes, quando eles estão dando a autorização para interromper o [feto] anencéfalo, na realidade eles não estão dando para o anencéfalo; eles estão flexibilizando o risco de vida materna, diminuindo aquela rigidez que

está no Código. Eu acho que é isso que se deve colocar. (Osmar Colás).

1) Os debates entre a área médica e a área jurídica acerca da legalidade do aborto por risco de vida da gestante atestam a amplitude de interpretações da letra da lei sobre o tema. Este dado é apresentado com recortes narrativos das falas dos interlocutores da área jurídica:

Outro dia eu estava num debate com colegas e tinha um juiz que estava também no debate. A maioria era médico, e aí o questionamento dele era exatamente << mas, qual é o risco para eu autorizar uma gestação, porque a lei fala: se não há outro meio de salvar a vida da mãe >>. (Cristião Rosas).

E aí o juiz falava assim, <<olha, quando você tem uma legislação que é restritiva, e dentro da restrição da lei há um parágrafo, um inciso, por exemplo, o código penal do 124, 125, 126, 127 é crime o aborto, mas tem um parágrafo, 128, que permite em dois incisos. Esses dois incisos de liberalização devem ser entendidos de uma maneira bem ampliada de proteção a saúde, como é o caso>>>>. (Cristião Rosas).

2) A prática médica de avaliação do risco com indicação terapêutica de aborto faz fronteira com a prática jurídica. O saber/fazer médico é oposto pelo saber/fazer jurídico que não dá conta de entender o risco no âmbito da saúde, mas lhe compete avaliar o permissivo para a realização do aborto. Esse embate é explicado por meio do uso de narrativas de diálogos fictícios que simulam a relação entre estes dois campos de saber no exercício biopolítico sobre o controle dos corpos das gestantes, governando sobre quem pode abortar e sob quais circunstâncias:

Até porque a lei ela confunde mesmo * e se você * e o médico é uma profissão muito prática, embora ele até entenda esse direito ele fala <<cara, se eu for denunciar, eu não estou recebendo nada a mais para isso, aí vai cair na mão de um promotor que não conhece direito isso, vai cair na mão de um juiz que é da Opus Dei, como está cheio por aí>> e ele vai << sim, mas não era para salvar a vida e tal pá pá pá>>. (Cristião Rosas).

3) Do ponto de vista do critério médico para atestar o risco na gestação, a anencefalia se enquadraria nesse âmbito, tendo em visto o quadro clínico que ela desencadeia no corpo da gestante. Entretanto, do ponto de vista jurídico quem corre risco durante uma gestação de anencéfalo é o feto e não a gestante. A aproximação entre estes dois extremos – risco fetal e risco materno – é feito pela alegação retórica de que a vida da gestante corre risco:

Quando você solicita uma interrupção de gestação por risco de vida materno, você * o anencéfalo está justificando com o aumento de risco de vida materno, então, teoricamente eu não deveria está pedindo a autorização por causa do anencéfalo (...). Mas a gente junta as duas coisas, porque uma gravidez que não tem futuro, uma gravidez que não tem futuro, em prol de um aumento de risco materno, mas na realidade o risco materno é que fez ele autorizar, você está entendendo? (Osmar Colás).

Garantia: Não se pode dissociar risco materno de risco fetal. Quando está em pauta o aspecto legal do aborto por risco de vida da gestante, risco materno e risco fetal devem ser tratados como sinônimos, pois esta estratégia de gestão do risco oferece a possibilidade da autorização legal do aborto:

Você imagina que se eu fizesse a mesma coisa com uma hipertensão, a mãe é hipertensa. Então eu quero solicitar a interrupção, mas o feto tem chance, o juiz não vai autorizar, então, na realidade o que fazem os juízes tomarem essa decisão acertada é o fato de aquele feto não ter chance nenhuma (...). (Osmar Colás.)

Apoio: Os médicos precisam informar aos profissionais da área jurídica os riscos e os quadros clínicos das mulheres que recorrem ao aborto. Este apoio oferece informação para a construção do argumento que defende o trabalho em conjunto entre juízes e médicos:

Porque eu não posso obrigar um juiz a compreender síndromes complexas e nada disso. Então, via de regra, a gente mandava literatura em português para o juiz, e o mesmo nós fazemos em todas as anomalias diagnosticadas para as mulheres ou para os casais. (Thomaz Gollop).

Quadro VIII – Argumento II: Aborto não é crime

Proposição Sustentação

A legislação sobre o aborto voluntário é passível de interpretações subjetivas.

Dados 1) Os debates entre a área médica e a área jurídica acerca da legalidade do aborto por risco de vida da gestante atestam a amplitude de interpretações da letra da lei sobre o tema.

2) A prática médica de avaliação do risco com indicação terapêutica de aborto faz fronteira com a prática jurídica.

3) Do ponto de vista do critério médico para atestar o risco na gestação, a anencefalia se enquadraria nesse âmbito,

tendo em visto o quadro clínico que ela desencadeia no corpo da gestante.

Garantia Não se pode dissociar risco materno de risco fetal.

Apoio Os médicos precisam informar aos profissionais da área jurídica os riscos e os quadros clínicos das mulheres que recorrem ao aborto.