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Risco na sociedade contemporânea: o contexto da Saúde

2.3. A formalização do risco pela epidemiologia

O conceito de risco, na Saúde Coletiva, compõe uma estratégia fundamental de biocontrole que se atualiza em discursos sobre a promoção da saúde. Trata-se de tema recorrente, tanto na perspectiva prescritiva ou como na vertente crítica, de denúncia do crescente uso da linguagem dos riscos como governamentalidade (Cf. FOUCAULT, 1979), mas que sempre toma o risco como perda, como algo a ser evitado (M. J. SPINK, 2007b).

Judith Green (1997) argumenta que esse processo é paralelo ao que Ian Hacking (1990) denominou de “domação da chance”, que envolve o paulatino desenvolvimento da teoria da probabilidade, da estatística e da Epidemiologia, e que possibilita uma forma muito específica de gerenciamento de risco na área da Saúde: a análise dos fatores de risco. Para

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Gêneros de fala (ou gêneros do discurso) é um conceito bakhtiniano usado para sustentar que cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo estes denominados gêneros

M. J. Spink (2007b), não é de se admirar que o domínio dos “acidentes” tenha sido central a essa estratégia, pois eles são provas cabais de que certos riscos não foram adequadamente gerenciados e, paralelamente, constituem o teste último do gerenciamento de riscos como estratégia de governo de populações.

Robert Castel (1991) também reflete sobre essa transição para um sistema de vigilância em saúde, que se fundamenta na análise de fatores de risco, mais compatível com as necessidades da sociedade de capitalismo avançado. Segundo o autor, essas estratégias dissolveram a noção de sujeito (ou de indivíduos concretos), substituindo-a por uma combinação de fatores (os fatores de risco); uma transição, portanto, da clínica do sujeito para uma clínica epidemiológica – um sistema de expertise multifatorial que suplanta

a antiga relação entre paciente e médico. Um modelo que substitui a vigilância individualizada do panaption foucaultiano (Cf. FOUCAULT, 1987) pelo sistema de vigilância

informatizada que propicia a detecção sistemática dos problemas de saúde e doença que assolam a população (M. J. SPINK, 2007b).

Seguramente, essa transição só foi possível em virtude do desenvolvimento técnico- teórico da Epidemiologia, campo que, como tantos outros domínios de saber, tem uma história externa e outra interna. A história externa tem suas raízes nos primeiros esforços de sistematização das estatísticas de morbidade mortalidade que deram origem à abordagem epidemiológica associada com o movimento sanitário do final do século XVIII e início do século XIX. Já a história interna tem por foco a emergência da representação matemática de risco, corporificada no conceito emergente de taxas (AYRES, 2008).

O uso do termo “risco” surge na linguagem epidemiológica no início do século XX e, com o conseqüente desenvolvimento da Epidemiologia, risco neste campo equivale ao efeito, probabilidade de ocorrência de uma patologia em uma população determinada, expresso através do indicador paradigmático de incidência (AYRES, 2008; ALMEIDA FILHO; CASTIEL; AYRES, 2009).

A constituição da Epidemiologia é entendida como o processo pelo qual um olhar científico começou a se formar a partir da busca do conhecimento das relações entre os fenômenos de saúde e doença e os modos como os grupos e indivíduos humanos organizavam socialmente seus modos de viver. Ayres (2008) desenvolveu uma cronologia sobre como esse interesse científico se desenvolveu na Epidemiologia, até atingir seu conceito mais formalizado, e o mais utilizado nas práticas de saúde contemporânea, o conceito epidemiológico de risco, que abarca três etapas: Epidemiologia da constituição (1872-1929); Epidemiologia da exposição (1930-1945); e Epidemiologia do risco (1945 - aos dias atuais).

A Epidemiologia da constituição, ainda fundamentada nas estatísticas sanitárias,

tinha por foco a regularidade dos fenômenos epidêmicos tomados como expressão dos determinantes sociais e geográficos da insalubridade. Nesse período o termo risco começa

a surgir no jargão epidemiológico, mas nesse momento ele é usado apenas como um adjetivo, indicando domicílios, bairros, cidades, populações, etc.

No segundo período, da Epidemiologia da exposição, assume uma posição mais

próxima à das ciências biomédicas, ocupando um lugar intermediário entre as ciências voltadas aos processos patológicos, no nível orgânico, e aquelas que focalizam os aspectos coletivos dos fenômenos da saúde e doença. O risco torna-se, então, um conceito analítico, focado nas suscetibilidades individuais adotadas como determinantes do curso epidêmico de doenças infecciosas, e deixa de ser referido como uma condição que se dá no nível da população, passando a indicar uma relação entre fenômenos individuais e coletivos; risco passa a ser expresso na linguagem matemática das probabilidades.

Finalmente, na Epidemiologia do risco, a epidemiologia passa a ser primordialmente

uma disciplina observacional. Essa nova formulação tem como marco a Segunda Guerra Mundial e, como conseqüência, vários fatores que se fizeram presentes nas sociedades ocidentais no período pós-guerra reforçaram novos desenvolvimentos na teoria e nos métodos da Epidemiologia, entre eles: o impacto das ideologias preventivistas e securitárias no período logo após a guerra; a aceleração do quantitativismo em todas as ciências e a emergência das doenças crônicas como principal causa de morbidade e mortalidade.

Ao longo do seu processo de constituição histórica, o risco epidemiológico adquiriu duas características epistemológicas que o colocam numa posição paradoxal. De um lado, seu caráter pragmático e probabilístico o deixa em condições de expandir de forma potencialmente ilimitada a investigação acerca da associação causal entre quaisquer eventos de interesse prático para a saúde. E a Epidemiologia tem ocupado este espaço, tornando-se um saber essencial para as práticas de saúde contemporâneas, com contribuições nas áreas de pesquisa clínica, no planejamento, gestão e avaliação de serviços, na vigilância da saúde, em sreenings, nas práticas de prevenção e promoção da

saúde (AYRES; CALAZANS; SALETTI FILHO; FRANÇA JÚNIOR, 2006).

Por outro lado, a vinculação com a validação biomédica e a natureza matemática de seus procedimentos e inferências criam obstáculos à investigação epidemiológica no que se refere à objetivação das dimensões propriamente sociais do processo saúde-doença, tanto em sua gênese como nas implicações para a intervenção. Essa característica traz tensões e muitas vezes interdições ao originário e fundamental debate entre Epidemiologia e Saúde Coletiva.

Na Epidemiologia, há três formulações básicas de risco: absoluto, relativo e atribuível. É importante, aqui, fazer dois comentários. Em primeiro lugar, é comum dizer-se que a taxa expressa o risco. Segundo Last (1989), isto é pertinente caso seja aplicado às situações apresentadas, no sentido mais restrito de taxa, ou seja, como quocientes que representem mudanças no decorrer do tempo. Além disso, o conceito taxa também é

polissêmico, mesmo no interior da Epidemiologia. Dessa forma, para ele, nas situações a seguir taxa não expressa risco:

1) quando sinônimo de quociente, referindo-se a proporções. Por exemplo: taxa de prevalência; e

2) quando quociente que representa mudanças relativas (reais ou potenciais) em duas quantidades (numerador e denominador). Por exemplo: taxa de colesterol no sangue.

No entanto, estas distinções não são consensuais. Outros epidemiologistas diferenciam claramente "taxa de incidência" e "risco de adoecer", tanto em termos conceituais como nos métodos de estimação. A primeira estaria referida ao potencial instantâneo de mudança na situação de saúde (casos novos) por unidade de tempo. O segundo se definiria como "a probabilidade de que um indivíduo sem doença desenvolva-a no decorrer de um período especificado de tempo, desde que o indivíduo não morra por outra causa durante tal período" (KLEINBAUM et al, 1982, p. 99). Sendo probabilidade

condicional, varia de zero a um e não possui unidades de medida.

As discordâncias permanecem nas tentativas de distinguir entre os enfoques individual/coletivo do risco e suas correspondentes estimativas. Desse modo, haveria métodos que encaram risco como medida (teórica) de probabilidade individual de ocorrência de agravo "A" — os atuariais; e aqueles que dimensionam a "força de morbidade" em populações — razões de densidade de incidência (CZERESNIA; ALBUQUERQUE, 1995).

Em segundo lugar, como não é possível observar simultaneamente o efeito da exposição e não-exposição no mesmo indivíduo (idem, ibidem), o dispositivo estatístico- epidemiológico opera com grupos populacionais baseado no pressuposto de que a diversidade dos indivíduos distribuir-se-á de modo homogêneo nas amostras devidamente selecionadas. Os cálculos produzem taxas médias que refletem, portanto, valores referentes aos agregados (efeitos causais médios). Se, porventura, quisermos representar a unidade através do quociente relativo à quantidade observada pelo mesmo valor, é evidente que esta não representa nenhum "indivíduo", que, assim, se torna uma abstração. Portanto, o risco é um achado relativo à dimensão agregada. Sua validade para o nível individual dá margem a erros lógicos. Estas questões são estudadas na Epidemiologia e na Sociologia sob a rubrica das falácias ecológicas, de dois tipos, conforme a operação: atomística ou

agregativa (SUSSER, 1998): o que é válido para o nível agregado pode não o ser para o nível do indivíduo, ou vice-versa.

Epidemiologistas, em geral, não costumam colocar em questão aspectos que problematizam a construção dos conhecimentos sobre o(s) risco(s), em especial sob o ponto de vista de suas pretensões preditivas (ALMEIDA-FILHO, 1992). Nesse sentido, Hayes (1991) faz uma exaustiva análise de limitações implícitas nesta abordagem. Para ele, é essencial estar-se atento a determinados tópicos:

1) Regularidade dos efeitos empíricos: não podem haver alterações nas relações entre os marcadores de risco e os eventos de interesse. Como os mecanismos causadores dos agravos, na maioria das vezes, são desconhecidos, estes não devem variar de modo inesperado. Trata-se, em suma, da metáfora da caixa-preta. Aliás, a dita "Epidemiologia dos fatores de risco" também é chamada de "Epidemiologia da caixa-preta" (PEARCE; CRAWFORD-BROWN, 1990). Em outras palavras, é essencial a estabilidade das condições de "existência" do objeto para que o sujeito investigador o apreenda com fidedignidade: nem o objeto de estudo pode variar em suas características, atributos, propriedades, nem suas inter-relações com o meio circundante, em termos espaço-temporais.

2) Definição do estatuto dos fatores de risco específicos: é fundamental saber claramente se o fator é determinante ou predisponente em relação àqueles tão-somente contribuintes ou incidentalmente associados. E isto não costuma ser facilmente discernível em muitas situações, especialmente naquelas que envolvem a participação de aspectos ditos psicogênicos, ou, então, na controvérsia causada por estudos onde não se observaram efeitos da hipercolesterolemia na eclosão de doenças cardiovasculares em mulheres (ALMEIDA-FILHO, 1992).

3) Fatores de risco pertencentes a níveis de organização distintos — social versus

natural: há dificuldades para estabelecer precisamente os mecanismos e mediações entre variáveis consideradas sociais (desemprego, analfabetismo, pobreza, etc.) e aquelas ditas biológicas (idade, estado imunológico, características genéticas), apesar de, em certos casos, aparentemente não parecer haver dúvidas quanto às relações entre elas (como miséria e mortalidade por causas perinatais).

4) Período de tempo considerado válido para a predição: é problemático lidar com exposições incididas em épocas transcorridas há longo tempo (mais de 15, vinte anos por exemplo) e/ou em quantidades reduzidas, no decorrer de longos intervalos cronológicos, de modo que não se torna possível garantir a relação causal no caso de ocorrência do agravo. Isto é especialmente relevante em exposições ocupacionais que não chegam a gerar danos imediatos, só ocorrendo, eventualmente, após muitos anos (HAYES, 1991).

Uma das importantes críticas feitas ao enfoque quantitativista do risco consiste no fato de instituir uma entidade, que possuiria uma 'existência' autônoma, objetivável, independente dos complexos contextos sócio-culturais nos quais as pessoas se encontram. Em outras palavras, o risco adquire um estatuto ontológico, que acompanha, de certa forma, aquele produzido pelo discurso biomédico para as doenças, mas, possuidor de características próprias, ou seja, atributos de virtualidade, 'fantasmáticos'. Pois, a existência dos riscos pode ser invisível, uma vez que, nem sempre, é perceptível por seus sinais/sintomas — objetos dos tradicionais instrumentos da semiologia médica. Muitas vezes, são necessários sofisticados exames laboratoriais para ‘localizar' este risco a ser, capaz de se desenvolver de modo silencioso e traiçoeiro e tornar-se presente de modo ameaçador. Se, por um lado, a retórica do risco pode servir de veículo para reforçar conteúdos morais e conservadores (LUPTON, 1993), por outro, redimensiona o papel da configuração espaço-temporal na compreensão do adoecer: 1) a Biomedicina incorpora como sua tarefa a localização e identificação nos sadios seus possíveis riscos (oriundos de modalidades de exposição ambiental e/ou de suscetibilidades biológicas, mediante técnicas diagnosticas cada vez mais refinadas; 2) surge uma infindável rede de riscos em que comportamentos, sinais, sintomas e doenças podem confluir para se tornar fatores de risco para outras afecções (p. ex., hipertensão arterial como risco para doenças cardíacas); e 3) o eixo temporal assume maior importância nos modelos explicativos dos processos de adoecer (ARMSTRONG, 1995).

Vemos, então, surgir no discurso e na intervenção biomédica uma nova condição medicalizável: o estado de saúde sob risco (KENEN, 1996), que traz importantes implicações: a) como substrato gerador de preceitos comportamentais voltados para a promoção e prevenção à saúde, em última análise, base do projeto de estender a longevidade humana ao máximo possível; b) no estabelecimento de laços com a produção tecnológica biomédica; c) na ampliação das tarefas da clínica médica — em outros termos, o surgimento de uma vigilância médica, como sugere Armstrong (idem); d) na criação de demanda por novos produtos, serviços e especialistas voltados para a prevenção dos múltiplos riscos; e e) no reforço do poder e prestígio dos profissionais responsáveis por atividades dirigidas a novas técnicas/programas de controle ou à pesquisa de fatores de risco (KENEN, 1996).

Outra crítica, de cunho metodológico apontada por Castiel (1996), reside no fato de abordarem-se complexos fenômenos interativos (biológicos/psicológicos/sociais), através de técnicas lineares para estimação do risco, insuficientes para abranger a alta complexidade do fenômeno humano. Um dos encaminhamentos decorrentes da aceitação desta constatação é o desenvolvimento de procedimentos não-lineares para a modelagem

matemática de sistemas dinâmicos. Nesta ótica, é preciso ter em mente que, a rigor, tais modelos são estatísticos. Consiste, basicamente, em representações abstratas constituídas por elementos com significados e interdependências no interior de estados de flutuação e variabilidade. Sua função primordial é estabelecer ordenações para interpretar as relações entre objetos que foram matematizados. Ainda não se conseguiu modelar satisfatoriamente o comportamento dos indivíduos, a relação entre a freqüência de uma ameaça à saúde e a respectiva percepção, a dinâmica das decisões institucionais (conforme as relações de poder envolvidas) e as intermediações que interferem nos processos de produção de conhecimento (LEVINS, 1994).

As percepções de risco são distintas conforme aspectos sócio-culturais que incluem idade, gênero, renda, grupo social, ocupação, interesses, valores, conseqüências pessoais, etc. E isto não pode ser negligenciado pelas autoridades sanitárias em suas intervenções epidemiológicas em saúde ambiental, cujas ações, muitas vezes, tardam em ocorrer. Pois, em geral, a atenção dos epidemiologistas está dirigida mais à significância estatística, o que, eventualmente, pode comprometer a "significância em termos de saúde pública", indicada por taxas de morbidade importantes nos locais poluídos, independentemente de serem "esperadas" ou não (BROWN, 1995), ou pela impossibilidade de garantir a não ocorrência de eventos cuja latência é prolongada (CASTIEL, 1996).

Em síntese, risco em Epidemiologia equivale a efeito, probabilidade de ocorrência de patologia em uma dada população, expresso pelo indicador paradigmático de incidência. Esta formulação se deve a Olin Miettinen, autor de um trabalho controverso, audacioso (no seu tempo), denominado Epidemiologia teórica. Nele se encontra a primeira referência

explícita na literatura anglo-saxônica à questão do estabelecimento do objeto na disciplina, elaborada da seguinte forma: “a relação de uma medida da ocorrência a um determinante, ou uma série de determinantes, é denominada de relação ou função da ocorrência. Tais relações são, em geral, o objeto de investigação da Epidemiologia” (MIETTINEN, 1985, p. 6). Esta proposta é metodologicamente fundada em princípios de rigor e coerência interna, propiciando uma conexão lógica entre seus princípios e aplicações imediatas às técnicas de análise epidemiológica mais usada modernamente.

A proposição de risco como conceito fundamental do campo científico da Epidemiologia, como dito anteriormente, repousa sobre três pressupostos básicos: o primeiro é a identidade entre o possível e o provável, ou seja, que a possibilidade de um evento pode ser reconhecida na sua probabilidade de ocorrência. Essa probabilidade se constitui como unidimensional, variável e, por extensão, quantificável. Dessa forma, o conceito de risco traz na raiz uma proposta de quantificação dos eventos da saúde/doença (MACMAHON; PUGH, 1970; LILIENFELD, 1976).

O segundo pressuposto consiste na introdução de um princípio de homogeneidade na natureza da morbidade, ou seja, as particularidades dos eventos se retraem perante uma dimensão unificadora, resultando em uma unidade dos elementos de análise propiciada pelo conceito de risco. As diferenças expressas na singularidade dos processos concretos saúde-doença desaparecem no conceito unidimensional de risco e suas propriedades, permitindo aproximações e apropriações próprias do discurso científico epidemiológico (ALMEIDA-FILHO, 2000). As incidências de distintos eventos de saúde ou doença, indicadores dos respectivos riscos, entendidos como probabilidades de ocorrência, são postas em um mesmo registro.

Em terceiro lugar, destaca-se o pressuposto da recorrência dos eventos em série, implicando a expectativa de estabilidade dos padrões de ocorrência seriada dos fatos epidemiológicos. Através desse pressuposto, pode-se então justificar a aplicação do conceito de risco em modelos de prevenção, propondo-se o conhecimento dos seus determinantes para intervir no seu processo, buscando-se a prevenção do risco (MACMAHON; PUGH, 1970).

Tais pressupostos revelam claramente o caráter indutivista da Epidemiologia (BUCK, 1975; SUSSER; SUSSER, 1996), dadas a fundamentalidade e a natureza das expectativas generalizadoras embutidas no conceito. Desta forma, o risco é produzido no campo da Epidemiologia pela observação sistemática e disciplinada de uma série de eventos. Como conceito, o risco opera pela via da predição, com base no terceiro pressuposto (ALMEIDA- FILHO, 2007).

Refletindo sobre o caráter da predição no discurso epidemiológico, Almeida-Filho (2007) constatou basicamente dois sentidos distintos, que concedem ao conceito de risco a ambigüidade que é própria do projeto da Epidemiologia como campo discursivo científico. Por um lado, é possível a predição no tempo, componente propriamente antecipatório do conceito de risco. Quando enunciamos o risco de ocorrência de uma doença “D” em uma dada população, empregamos uma série sucessiva de observações pregressas (mensurações tomadas, na melhor das hipóteses, em uma série temporal padronizada), para fazer uma predição do passado (por suposto conhecido) para o momento presente ou mesmo para o futuro, aplicada à população objeto daquela série de observações. Temos aqui o emprego do risco como preditor temporal, ou “preditor verdadeiro” (ALMEIDA-FILHO, 2007).

Por outro lado, na Epidemiologia observa-se também o uso do componente indutivo do risco para instrumentalizar pseudopredições, ou predições no espaço. Neste segundo caso, em vez de uma mesma população em momentos distintos no tempo, extrapola-se uma série finita de observações em populações estudadas para populações não

observadas. Isso quer dizer que, a partir do conhecimento da incidência da doença “D” em um conjunto de populações conhecidas, pretende-se “predizer”, com o auxílio de testes estatísticos, intervalos de confiança, média de incidências, ou qualquer outro quantificador matemático, qual será o risco da doença “D” na população em geral, ou em grupos populacionais não incluídos na série observada. Trata-se, nesse caso, do emprego do risco como um pseudopreditor, ou “preditor horizontal” (ALMEIDA-FILHO, 2007).

Essa ambigüidade é a principal característica do uso epidemiológico do conceito de risco: um preditor simultaneamente temporal e espacial, ou, mais rigorosamente, como preditor e pseudopreditor. Esse conceito de risco permite o rompimento dos limites temporais e dos limites geográficos do processo de produção do dado, dotando o conhecimento epidemiológico de propriedades generalizadoras nem sempre legitimadas pela lógica que o consubstancia.

No discurso epidemiológico, o risco se situa para além e para fora do sujeito, é localizado no âmbito da população, produzido ou atribuído no âmbito dos coletivos humanos. Risco é, enfim, uma propriedade das populações e a sua referência legítima será exclusivamente coletiva (HAYES, 1991). Nos primórdios da constituição da Epidemiologia como ciência, havia uma proposta implícita de conceituação do “risco absoluto” - daí a derivação da idéia de “risco relativo” (LILIENFELD, 1976). Apesar de equivocadamente tomado como expressão individual em alguns manuais (JENICEK; CLEROUX, 1985), o risco absoluto sempre teve como referência fundamental o coletivo populacional (ALMEIDA-