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Áreas livres, quintais e porões

No documento Caieiras: núcleo fabril e preservação (páginas 189-194)

Habitação e Arquitetura

Figura 64 Madeiramento do telhado nas casas do

3.1.6 Áreas livres, quintais e porões

Os quintais das casas dos funcionários constituíam um universo de trabalho paralelo às atividades prestadas para a empresa dentro das unidades produtoras. Nestes espaços os moradores organizavam jardins, hortas e pomares, criavam animais de pequeno e grande porte e fabricavam produtos artesanais para consumo da família ou para venda. Estas atividades garantiam um aumento dos rendimentos financeiros da família147. Havia incentivo por parte da empresa para a dedicação dos trabalhadores às atividades agrícolas. Estas atividades, assim como a oferta de moradias, eram vistas nos núcleos fabris como elementos favoráveis à fixação do trabalhador na empresa. A função destas áreas estava ligada ao comprometimento das horas livres do trabalhador com um lazer considerado sadio pelos patrões. A instalação de áreas para cultivo permitia amenizar a transição do campesinato ao trabalho industrial.

A família operária encontra na Companhia todos os elementos para integrar-se nela, fixando-se à profissão e ao solo. A Companhia cede graciosamente aos operários que lhe requeiram, áreas de terreno para o plantio de cereais e criação. 80%, mais ou menos, das famílias exercem dupla atividade: a agrícola e a industrial. O excesso do produto colhido é comprado pela Companhia ao preço do dia no mercado de São Paulo (A OBRA SOCIAL DA COMPANHIA MELHORAMENTOS DE SÃO PAULO-IMPRESSÕES DO SR. LUIS CARLOS MANCINI, Nº24, Dezembro, 1940, p. 8 e 9).

Como vimos anteriormente, estas iniciativas faziam parte da estratégia industrial de preenchimento das horas livres do trabalhador e desta maneira, ocupavam o trabalhador por tempo integral com atividades julgadas sadias.

[...] e tinha terreno pra você plantar à vontade! Tinha pasto para a criação, cada um tinha suas vacas, criava seus porcos, suas galinhas, todo mundo tinha. [...] A Melhoramentos dava o terreno de acordo com o que você quisesse, quanto queria. A gente fazia roça, eu me lembro quando garoto, meu pai trabalhava [...] em três horários, quando ele saía às 2 horas, nesse “solão” quente, eu e meus irmãos, meus irmãos mais do que eu, porque eu era mais novo, ia fazer roça pra plantar milho, plantar feijão, batata, tudo na enxada. Naquele tempo não tinha máquina, não tinha nada e com aquilo, sustentava a criação. Não comprava

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A separação entre moradia e local de trabalho foi uma tendência dos núcleos fabris. Entretanto esta separação é bastante variável. Na França do século XIX, por exemplo, existiam núcleos onde as casas eram totalmente reduzidas à função residencial, excluindo-se qualquer atividade relacionada ao trabalho. Em Dago-Kertell, na Rússia, o núcleo fabril construído por indústria têxtil em 1844, tinha casas situadas em terrenos de 2 mil metros quadrados que permitiam o desenvolvimento de atividades de criação e culturas agrícolas. Em Val-des-Bois, núcleo fabril francês criado por fábrica têxtil em 1848, as casas tinham amplos jardins e dispunham de construções anexas para criação de animais e guarda de instrumentos agrícolas (CORREIA, 1998).

também ração, nada. Era feito tudo ali. Você fazia, matava um porco, por exemplo, para comer uma carne de porco [...] (PRANDO, 2011).

[...] meu pai tinha cavalo, tinha vaca nas terras dele. Quando morava na Vila Leão. No fundo do quintal, ele tinha uma cocheira, lá ele criava vaca, criava cavalo, tinha lá os animais lá. E plantava milho nas terras lá. Tinha muitos pés de goiaba lá [...] e vendia, consumia. As vacas, ele vendia o leite, era assim [...] era muita terra, muita terra [...] (CSERNIK, 2011).

Estas atividades exigiam dos moradores de Caieiras muita disposição física para tratar das plantações e percorrer os longos caminhos entre as vilas a fim de fazer as vendas dos produtos.

Nós chegamos a ter dez, doze vacas de leite. Nós vendíamos leite, eu e meus irmãos. Naquele tempo a gente chamava de “sapiquá”, fazia um negócio com esses sacos de farelo, entrava assim como uma camiseta, ficava uma parte no peito e outra parte nas costas. Seis litros na frente e seis litros atrás. Andando, vinha a pé e andava tudo esses bairros entregando leite pela vila inteira. Vinha do Monjolinho até Caieiras a pé! [...] entregando leite pra um, pra outro, e tudo era permitido. Então isso aí ajudava também na renda da casa [...] (PRANDO, 2011).

Referindo-se às difíceis condições de uma família vinda do Japão, estabelecida na Vila Eduardo, Joel Csernik relata o trabalho da matriarca e o progresso desta família:

[...] a minha avó, mãe do meu pai, deu uma bacia de roupas pra eles, porque eles não tinham nada! [...] ela plantava e saía vendendo em uma carriola e os filhos ficavam lá. E eles foram crescendo ali e a Melhoramentos cedeu um terreno pra eles plantar. Então, como era à beira do rio era fácil. Aí começaram a plantar repolho, verdura e vendiam em Caieiras. Aí compraram um “Fordinho 29” e saíram pra vender verdura, fruta, já vendia mais coisas com o caminhãozinho. Ela saía com uma carroça. Ela sentava na carroça e saía vendendo. Então tudo começou ali. [...] os filhos dela hoje são advogados, dentistas, médicos formados, mas saíram de lá de dentro da Melhoramentos (CSERNIK, 2011).

Estas atividades complementavam a alimentação das famílias:

De vez em quando matava um garrotinho, tinha um garrote lá pra matar. Porco, então, nunca faltou em casa! Meu pai era especialista, nunca faltou porco. Frango! Falar de comprar um frango? Naquele tempo? Ninguém admitia isso! Ninguém admitia! Todo mundo tinha os frangos caipira [...] os ovos [...] (PRANDO, 2011).

O feitio artesanal de produtos derivados das carnes garantia a conserva dos alimentos por algum tempo, já que não havia geladeira para a conserva. O relato de Prando (2011) mostra a habilidade do pai em fazer embutidos derivados da carne de

porco: “meu pai fazia lingüiça, codeguim e panceta148. Fomos criados com isso. Fazia aqueles varais, porque não tinha geladeira...” (PRANDO, 2011).

A manutenção das plantações era feita com muitas dificuldades devido à falta de tecnologia para fazer a irrigação das hortas. No relato sobre a localização do terreno da família japonesa, notamos a facilidade devido à proximidade com o rio. Entretanto, outros terrenos não contavam com a mesma condição. As hortas da família Prando foram durante muito tempo mantidos com irrigação feita a regador e somente depois de muitos anos, a execução de um encanamento clandestino, feito por etapas, promoveu melhorias na plantação:

A horta era muito grande [...] E naquele tempo você molhava tudo no regador. Você tinha que vir com o regador pesado e não tinha jeito. Aí, depois de muitos anos, eu já era casado, [...] e eu disse pro meu pai:

- Ô pai, eu vou ver se eu quebro o galho, vou ver se eu consigo fazer um encanamento que sai daqui de casa, atravessa a estrada e vai lá na outra horta – meu pai tinha duas ou três hortas...

[...] Aí canalizamos tudo lá. Meu pai colocou uma barrica grande, nós tínhamos torneira lá, aí corremos a mangueira, aí regava já com a mangueira, né? Mas isso foi depois de muitos anos de sofrimento! (PRANDO, 2011).

Os operários não eram os únicos que mantinham criações em seus quintais ou terrenos fornecidos pela Companhia. O holandês Bonno van Bellen, filho de um funcionário da chamada “alta chefia” declarou que o pai também mantinha criação de animais no quintal da residência. Neste caso, a razão era o gosto pessoal por criação de animais.

A família Zovaro, de origem italiana, é até hoje bastante conhecida pela apicultura iniciada na década de 1920 nos terrenos da Companhia Melhoramentos. Antonio Zovaro chegou ao Brasil em 1903 e montou seu primeiro apiário na Vila Mariana, em São Paulo. Em 1918, após ficar viúvo, levou os filhos para Caieiras para serem criados por primos da família Mollo. Em 1920, após casar-se novamente, mudou-se definitivamente para Caieiras. Trabalhava na carpintaria da Companhia onde montou o seu apiário, dentro da área da empresa. O filho de Antonio, Luiz Zovaro, acompanhava o pai nas atividades do apiário desde os dez anos de idade (MORAES, 1995).

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Figura 87 A família Zovaro no apiário montado na Companhia Melhoramentos, década de 1920 Fonte: Jornal Regional News (2003, caderno 2, página 4)

Em 1936, Antonio começou a importar abelhas rainhas da Itália. A família Zovaro empenhava-se no aperfeiçoamento e pureza da linhagem das abelhas e na produção de mel. O escopo maior deste trabalho era a venda de enxames para todo Brasil e também outros países como Argentina, Chile, Paraguai e Estados Unidos. Até a década de 1960 as abelhas saíam de Caieiras e eram transportadas pela estrada de ferro e por via marítima, em viagens que duravam até 30 dias. A importação de abelhas africanas, conhecidas por sua agressividade, começou a ocorrer a partir de 1957 (MORAES, 1995). As abelhas africanas renderam incidentes no apiário e fama internacional aos produtores. Em 1965, Luiz Zovaro deu uma entrevista para a revista americana Times sobre a agressividade destas abelhas relatando um incidente ocorrido em Caieiras com saldo de vários animais e cerca de 500 pessoas picadas149. Apesar do incidente, Zovaro era contra o extermínio destas colônias africanas, solução que foi sugerida, na mesma entrevista, por outro criador para estas ocorrências.

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“Establishing colonies in abandoned walls, on the underside of rocks, on cave walls damp with waterfall spray, under tree roots, in abandoned cars, in telephone booths and even in the traffic lights, the Africans have killed birds, chickens, dogs, horses and four people. Four months ago, a resident of Caieiras, near São Paulo, tried to burn an African beehive stuck in a chimney of a local bar. In a “buzzing mass that darkeried the sun”, one man reported, the Africans swarmed into the bar, stung a traveling wine salesman senseless, left so many stingers in the bald dome of the bartender that He “thought He was gorwing hair again”. In three hours the bees stung 500 people. Then they buzzed of across nearby farms where they left behind flocks of dead chickens, a dozen writhing dogs, and two horses so badly stung that they could not eat for three days” (ENTOMOLOGY:

DANGER FROM DE AFRICAN QUEENS in TIMES MAGAZINE, 24-09-1965, disponível em http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,834375,00.html. Acessado em 11-07-2011, às 18:25h ).

Além das atividades ligadas à produção e comercialização de produtos, os quintais caieirenses também eram utilizados para jardinagem ornamental. Havia concursos e promoções para incentivar a manutenção e limpeza das fachadas floridas das residências150 (ver figura 89) (MORAES, 1995).

O porão das casas também poderia ter funções utilitárias ligadas às atividades extras descritas pelos ex-moradores. Izidro Gabrielli relatou que seu avô tinha no interior do porão da casa na vila Chic fabricação de vinhos e charutos. Os vinhos eram consumidos pela própria família, enquanto que os charutos, eventualmente, eram comercializados.

Figura 88 Acomodação das caixas de abelhas para exportação Fonte: Jornal Regional News (2003, caderno 2, p. 5)

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Nos núcleos franceses de Bournville, incluía-se nos contratos de arrendamento ou locação das casas uma cláusula que exigia o cultivo de jardins. Em Mulhouse havia incentivo aos cuidados com os jardins concedendo prêmios às casas e jardins considerados mais bem cuidados (CORREIA, 1998). Na Vila Maria Zélia, em São Paulo, fundada pelo industrial Jorge Street, os jardins eram incentivados pela fábrica que promovia concursos anuais, feitos na primavera, para os considerados mais bonitos (TEIXEIRA, 1990).

Figura 89 Os jardins floridos das casas da Companhia Melhoramentos.

Fonte: A obra social da Companhia Melhoramentos – impressões do Sr. Luis Carlos Mancini transcritas em

Serviço Social Nº24 de Dezembro de 1940, (1940, capa)

No documento Caieiras: núcleo fabril e preservação (páginas 189-194)