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A localização estratégica: isolamento e proximidade com a capital

No documento Caieiras: núcleo fabril e preservação (páginas 152-156)

Figura 12 O “auto-trem”, veículo adaptado

Figura 39 O preparo do terreno para plantar

2.6 A localização estratégica: isolamento e proximidade com a capital

A localização de Caieiras foi caracterizada durante muito tempo por uma condição que permitia certo isolamento, devido ao difícil acesso composto por estradas precárias e

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pelas imensas áreas verdes que circundavam a região121. Esta condição não era específica do núcleo de Caieiras, pois os critérios que os industriais obedeciam para escolher os terrenos onde iriam implantar seus estabelecimentos fabris acabavam por proporcionar, de forma geral, locais isolados dos centros urbanos122.

O isolamento era garantia do afastamento de possíveis influências externas sobre o operário, facilitando a obediência às normais locais e submetendo-os a um controle higienista pela imposição de novos hábitos (FOUCAULT, 1979). Este modelo europeu de controle social obrigava os operários a seguirem rigorosos regulamentos, vivendo sob as determinações de uma única autoridade e com horários de trabalho estabelecidos de início e fim e, além disso, eram vigiados a todo o momento por funcionários que exerciam controle sobre os movimentos de cada um (GOFFMAN, 2005).

No Brasil, a procura por terras distantes das cidades, próximas aos rios e portos, ricas em florestas naturais para o favorecimento do funcionamento das fábricas era condição para a existência de muitas indústrias que se firmaram entre o final do século XIX e começo do XX (PANET, 2002). O isolamento não configurava um desejo inerente ao industrial, mas sim, se tornava uma conseqüência diante das características importantes na escolha do terreno para implantação das fábricas, que deveria levar em conta a abundância de matas para combustível dos maquinários e recursos hídricos que pudessem gerar força hidráulica e acabava por criar uma situação favorável à estratégia de controle social comumente aplicada pelos patrões nestes empreendimentos123. A preferência dos industriais por áreas ricas em recursos naturais e, por conseqüência, isoladas das grandes cidades e aglomerações urbanas favorecia a construção de um espaço de trabalho dotado de autonomia para o industrial, possível de exercer uma forma de gestão com controle de mercado de trabalho próprio (CORREIA, 1998). Esta estratégia permitia confinar os operários em espaços construídos e controlados pela fábrica. A ausência de atrativos fora das áreas limites da empresa ou ainda o fechamento dos núcleos fabris com cercas mantinha no seu interior as atividades operárias em toda a sua abrangência, incluindo,

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Ver condições de acesso no item 1930-1960: surgimento das novas vilas.

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Na França, por exemplo, as fábricas que surgiam ao longo do século XIX, seguiam duas condições principais: altura, para poder aproveitar a força motriz fornecida pelos rios e implantação térrea, com construções muitas vezes distribuídas em torno de um pátio fechado122 (PERROT, 1988).

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Um exemplo da aplicação destes modelos pode ser observado em Galópolis, Rio Grande do Sul, na implantação do lanifício São Pedro, que impressiona pela proximidade à grande queda d água (CORREIA, 1998).

como vimos anteriormente, além das atividades relacionadas ao trabalho, também as demais atividades sociais, religiosas, culturais, etc124.

Em muitos casos, as distâncias percorridas pelos funcionários, quando não havia o transporte ferroviário, tinham que ser feitas a pé. A alternativa de transporte ferroviário, comum a estes tipos de núcleos fabris, dependia, muitas vezes, de um transporte submetido a horário e passível ao controle da fábrica125 (CORREIA, 1998). Em Caieiras, como vimos, os transportes oferecidos ao trabalhador para que pudessem circular entre os bairros estabelecidos dentro da empresa e para chegar até a estação ferroviária, centrava-se na linha férrea interna e nos caminhões pau-de-arara.

A diversificação das atividades produtivas e os serviços direcionados para os operários possibilitavam esse isolamento social dentro dos limites da propriedade das indústrias. Alguns estabelecimentos criavam estruturas tão complexas – caso de Caieiras - que permitiam a comparação dos núcleos a uma “pequena cidade” com moradias, farmácias, igrejas, escolas, armazéns, clubes recreativos, cinemas, teatros, hospital, sistema de abastecimento de água e esgoto, inclusive com possibilidade de plantio para subsistência.

O isolamento, em alguns casos, era o principal atrativo que motivava alguns funcionários a trabalhar nestes núcleos afastados. Estas localizações permitiam a ocorrência de curiosas situações que envolviam questões políticas, impossíveis nos grandes centros.

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Este método de controle de acesso de estranhos ao interior dos núcleos fabris pode ser observado na Votorantim, em Sorocaba, quando por volta de 1906, a empresa anunciou o encerramento do transporte ferroviário que conduzia os operários de Sorocaba à Votorantim, obrigando-os a morar nas casas da Cia. proprietária da fábrica, e fazer compras em suas cooperativas (ROLNIK, 1981). Em Pernambuco, a Paulista, fundada no final do século XIX pela firma Rodrigues Lima e Cia. e adquirida posteriormente por Herman Lundgren, tinha uma extensão de terras de propriedade da fábrica ao redor do núcleo que cumpria o papel de controle de acesso. Outra medida tomada pelos industriais foi observada em Rio Tinto, na Paraíba, onde a fábrica têxtil do grupo Lundgren constituiu a criação de postos de inspeção no acesso ao núcleo residencial (CORREIA, 1998).

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No caso da fábrica têxtil de Magé, no estado do Rio de Janeiro, a indústria detinha a concessão do ramal ferroviário – situação semelhante à observada em Caieiras (CORREIA, 1998).

Exemplos neste sentido são os casos da Klabin do Paraná e de Rio Tinto126.

Em Caieiras, em entrevista, um ex-funcionário nos afirmou ter trabalhado submetido às ordens de Joseph Mengele, enquanto este estaria trabalhando como funcionário da Companhia Melhoramentos. Na década de 1980, uma ossada encontrada em Embu, levantou e reforçou a hipótese do médico nazista ter residido no Brasil, refugiado da Europa. As matérias publicadas nesta época, afirmavam que ele teria encontrado em Caieiras, apoio e trabalho dentro da Companhia Melhoramentos, atendendo pelo nome de Sr. Pedro:

Wolfram Bossert, um ex-cabo do Exército nazista que mora no Brasil desde 1952, foi apresentado a Mengele em 1970 num sítio no município de Caieiras, a 30 quilômetros de São Paulo, por Wolfgang Gerhard, um compatriota austríaco que chegara ao país quatro anos depois do fim da II Guerra Mundial. Gerhard apresentou-o a Bossert como “Peter Gerhard” um viúvo que estava sendo perseguido por motivos políticos e saíra poucos meses antes do Paraguai, onde vivia escondido desde 1959 [...] Não há dúvida de que alguns amigos efetivamente ajudaram o fugitivo. Entre 1969 e 1974, “Peter” ou “seu Pedro”, viveu como hóspede no sítio de Caieiras em que fora apresentado a Wolfram Bossert. O sítio, de 5 hectares, pertencia ao imigrante húngaro Gesa Stammer, que prestava serviços como topógrafo à prefeitura do município e ali morava em companhia da mulher, Gittara (A Exumação do Enigma – O mistério do caso Mengele pode estar chegando ao fim, publicado pela Revista Veja em 12 de junho de 1985)127.

A Folha de São Paulo publicou em 2004:

Relatos do médico nazista Josef Mengele revelam que ele trabalhou formalmente em duas empresas por pelo menos 10 dos 19 anos em que viveu no Brasil. Numa carta ao amigo austríaco Wolfgang Gerhard, de 22 de novembro de 1972, Mengele lamenta ter sido demitido após cinco anos como chefe de

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A Klabin do Paraná foi implantada, a partir de 1934, em uma área adquirida pela empresa da Fazenda Monte Alegre ao Governo do Paraná, que havia se tornado seu proprietário ao arrematar em leilão jurídico de imóveis de uma empresa falida. Assim como a Cia. Melhoramentos de São Paulo, a Klabin do Paraná estruturou-se com base na autonomia na produção de papel, organizando nas instalações todas as fases da produção, desde o plantio do eucalipto até a produção do papel. Além disso, a autonomia das duas empresas envolvia também o domínio das técnicas, contratando-se estrangeiros para gerenciar os processos produtivos e treinar trabalhadores nacionais. A localização afastada da Klabin permitia uma situação que possibilitava controlar um mercado de trabalho próprio. Além disso, outras práticas, de cunho político foram observadas nos depoimentos relatados por Correia, (1998) a respeito do pai de um funcionário da fiscalização florestal que teria ido à Monte Alegre procurando fugir de inimigos que o perseguiam desde que havia sido demitido de uma empresa ferroviária, quando, durante a Segunda Guerra, teria, embriagado, dado vivas a Adolf Hitler. O pai do funcionário teria ido à Monte Alegre devido à favorável condição de esconderijo do lugar, constituindo um curioso caso de simpatizante de Hitler protegido em território de judeus. Em Monte Alegre, existiram, sobretudo, muitos casos de contratação de técnicos e trabalhadores judeus perseguidos na Europa, em áreas de domínio nazista, como o caso de Leonardo Schkcnner, médico polonês de origem judia, que deixou de clinicar na Itália, no período de conflitos e obteve visto brasileiro, com ressalva de não exercer a profissão no país. O médico aceitou em 1941, o convite de Wolf Klabin para trabalhar em Monte Alegre longe dos órgãos que regulamentavam e fiscalizavam o exercício profissional (CORREIA, 1998). Situação também curiosa ocorreu na Companhia de Tecidos de Rio Tinto, na Paraíba, onde criou-se o mito de que o “palacete dos Lundgren” – família de origem sueca - destinava-se a receber Hitler quando este vencesse a guerra na Europa (MELLO, 2002).

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Disponível em http://veja.abril.com.br/arquivo_veja/capa_12061985.shtml. Acessado em 11 de julho de 2011, às 18:20h.

manutenção da Melhoramentos, fábrica de papel de Caieiras (SP). E planeja procurar outro emprego. “Como agora posso comprovar que tive dois empregos, um após o outro, cada um por cinco anos, como ‘chefe de manutenção’, não é problema achar um novo emprego, mas certamente o (problema será) escolher o ‘certo’ para mim; talvez porque eu então novamente – conforme o meu jeito – fique por lá eternamente.”

A carta faz parte do conjunto de 85 documentos em alemão que integravam os arquivos de Mengele apreendidos pela Polícia Federal em 1985 e aos quais a Folha teve acesso (Mengele trabalhou dez anos no Brasil, publicado no site Folhaonline, em 24 de novembro de 2004)128

Durante os conflitos da Segunda Guerra, a Companhia e alguns diretores tiveram seus nomes incluídos na Lista Negra e foram afastados de seus cargos129. Os membros da família Weiszflog foram vigiados. Para as viagens dos funcionários que necessitavam ir de Caieiras para São Paulo ou Santos era necessário o pedido de salvo-conduto. Johannes Ehlert – técnico geral e supervisor dos estabelecimentos fabris de Caieiras - requereu vários salvos condutos às autoridades policiais, inclusive com justificativas médicas que alegavam as necessidades de uma estadia à beira mar. Kurt Faltim – engenheiro da fábrica e residente do núcleo - e Frederico Guilherme Weiszflog – filho de Otto e Anna Maria Weiszflog – foram detidos e tiveram, de acordo com os apontamentos dos prontuários, envolvimento com o nazismo.

Assim, como atesta o caso de Mengele, é provável que o isolamento e a autonomia patronal em Caieiras tenha favorecido o abrigo a refugiados alemães do pós-guerra.

No documento Caieiras: núcleo fabril e preservação (páginas 152-156)