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O trabalho masculino

No documento Caieiras: núcleo fabril e preservação (páginas 119-125)

Figura 12 O “auto-trem”, veículo adaptado

Figura 22 Padre José e outros moradores durante

2.3 O trabalho na Companhia

2.3.1 O trabalho masculino

Como vimos, o trabalho dentro da Companhia incluía atividades diversas que poderiam ir desde o campo até as atividades dentro das oficinas e dos escritórios. A experiência e domínio do conhecimento de um ofício poderiam permitir que o funcionário galgasse degraus e avançasse na carreira profissional. Esta conduta, normalmente aplicada aos funcionários sem estudo, era bastante recorrente. A busca pela especialização como meio para alcançar um patamar mais elevado e com isso conseguir não apenas melhores salários, mas também vantagens em relação às atividades executadas e às condições de moradia eram fatores que motivavam o empenho e investimento na carreira, que muitas vezes era encerrada dentro da mesma Companhia, de acordo com o tempo de serviço. Sobre esta condição, Eusébio descreve a carreira do pai Benedito93:

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[...] foi assim, começou a trabalhar num setor, depois foi pra outro setor, quando eu era já jovem meu pai já era condutor. Condutor era uma escala, vamos dizer assim, de profissão, no sentido do trabalho. Então tinha o ajudante, o condutor, depois o contra-mestre, a chefia, enfim ia subindo, né? Meu pai era condutor de calandra quando ele aposentou. [...], trabalhou um tempo na fabricação até pegar o jeito e depois trabalhou na calandra. Calandra era uma máquina aonde se fazia o papel pergaminho. Aonde se fazia o papel cartão, cartolina, esse tipo de papel. Tinha muitos tipos de papel. Todo papel que tinha aquele brilho passava pela calandra. Era uma máquina que nem fosse uma maquininha de macarrão, uma coisa assim, em vários cilindros, um em cima do outro. Alta, muito alta. Tinha que subir escada, meu pai subia e descia escada não sei quantas vezes pra passar o papel de um cilindro no outro, [...], e aquilo tudo com vapor, então, conforme a máquina rodava aquele cilindro, entrava um papel como esse [...] sulfite hoje, né? Ele entrava aqui embaixo, daí ele ia passando, passando, e quando ele saía lá em cima, ele já saía um rolo lá em cima e ia desenrolando aqui e enrolando lá em cima. A função de quem trabalhava na calandra era isso, pegar a ponta do papel e ir passando ficava um de cada lado e passava o papel pra lá, controlando até o papel chegar lá em cima e quando saía lá em cima já saía o produto. Se era papel pergaminho, saía o pergaminho, e tinha uma variedade infinita que eu não sei te dizer, cartolinas, pergaminho, um papel que chamava opaline, [...]. Hoje nem pergaminho não se vê mais né? Hoje existe o papel manteiga. Transparente que é liso. Mas o pergaminho se usava muito. Tinha de todas as cores. Usava pra encapar caderno, vendia muito pergaminho pra fora, né? [...] A linha da Melhoramentos sempre foi de primeira linha, né? Antigamente se fazia tudo aqui. Fazia pergaminho, papel crepon, papel de seda, fazia tudo que é tipo de papel que existia na época. Naquele tempo não tinha o plástico (EUSÉBIO, 2011).

Eram trabalhadores do horto, da calcária, da olaria, da fábrica de papel, que se dividiam em funções como carregadores de material, forneiros, caldeireiros, mecânicos, projetistas e engenheiros. A variedade de ofícios existentes na Companhia envolvia o processo completo de fabricação: matéria-prima, fabricação, acabamentos, acondicionamento dos produtos, transportes e administração geral.

[...] o meu pai é o Bruno. Ele começou trabalhando nos fornos de cal, ele era forneiro94. Naquele tempo a Melhoramentos faturava muito com o cal. Naquele tempo não tinha matéria-prima que tem hoje. E ela tinha as pedreiras [...] próprias para fazer o cal e meu pai trabalhou nos fornos. Tinha [...] os fornos que estão lá hoje. Tinha o Macalé, aquilo é histórico, né? [...] Vinha as carroças [...] com lenha, tinha que pegar e ele que era o forneiro tinha um ajudante. Tudo à lenha. Abria aquela boca lá, tudo cheio de pedra dentro e lenha, e derretia e aquilo formava um pó, que é o cal. Então fazia o cal. Tinha o pessoal que ensacava, a mulher que costurava e fazia a sacaria, pesava tudo [...] levava embora e eles faturavam com isso também (PRANDO, 2011)

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Figura 33 Floresta de eucaliptos

Fonte: Companhia Melhoramentos de São Paulo

(Weiszflog Irmãos inc.) Fábrica de papel-Editora-Oficinas Gráficas

Bertolini95 (2011) relatou que o pai era carregador de areia: “carregou muita areia pra construir a Companhia”.

Muitos jovens da década de 1950 buscavam o aprimoramento profissional, assim que possível, nos cursos técnicos oferecidos em São Paulo, pois nas escolas de Caieiras não havia esta capacitação, excetuando-se alguns cursos dirigidos por engenheiros destinados ao aprimoramento dos operários. A iniciação nas profissões ligada à mecânica poderia garantir o início de uma nova carreira dentro da Companhia, que garantia, certamente, alguns privilégios e melhores salários. Exemplo desta busca pode ser observado na carreira de Antonio Eusébio96:

[...] eu fui pra fábrica pra sessão de expedição. Expedição o que é? É onde saía o material vendido. As resmas, os rolos de papel, aquela coisa tinha que ter alguém pra anotar no fardo, tinha uma numeração específica, cada um tinha seu código, tinha que marcar na resma o tanto, a quantidade, e o código e fazer o controle. E eu trabalhava ali. Pra marcar e também pra puxar carrinho de papel, [...] dos depósitos, saía da máquina ia levar nos depósitos, pegar no depósito levar até o caminhão, esse é o serviço que eu fazia, serviço pesado pra minha idade, mas não tinha jeito tinha que fazer. Quando eu fiz 17 anos eu fui pro Senai [...] na Lapa. Na rua N. Sª da Lapa era naquele tempo. Aí eu fiz o Senai, 1 ano de Senai, aí meu pai conseguiu transferência pra que eu fosse trabalhar na oficina mecânica. Aí eu fui trabalhar lá em 1958, quando eu tirei o diploma do Senai. Eu tinha 18 anos já. Aí eu trabalhava lá onde é a MD hoje, não aqui na Cerâmica. Aí eu trabalhei lá até aposentar. Eu me formei em torneiro mecânico, comecei a trabalhar como torneiro mecânico e trabalhei até novembro do ano passado. Só na Melhoramentos eu trabalhei trinta e dois anos [...] (EUSÉBIO, 2011).

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Francisca Doratiotto Bertolini nasceu em 1947, na Vila Charco Fundo, em Caieiras.

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Às vezes a busca pelo conhecimento técnico não era atividade fácil para os rapazes nascidos em famílias operárias, que viam na rotina de trabalho a única forma digna de viver e prosperar. Para Jair Bertolini, também funcionário da Cia., iniciado na plantação de mudas, o estudo exigiu dedicação e perseverança:

[...] meu pai não trabalhou muito na Companhia97, pois ele trabalhou cerca de vinte anos na Cobrasma. Eu sei que ele era da plantação e depois da oficina. Ele namorava a minha mãe e ela conta que como ela servia cafezinho na fábrica, ela dava um jeito de levar café pra ele também na oficina, mas era só pra ele e os outros chiavam! Depois de casados é que ele foi estudar. Ele fez Liceu e Protec. Eu lembro de finais e finais de semana do meu pai na prancheta. E ele conta que o pai dele, o Augusto Bertolini, sempre dizia para minha mãe:

- Vê se tira essa idéia da cabeça dele, de estudar! Fica chegando tarde em casa, nem vê os filhos! (SOARES, 2011).

Antonio Eusébio, ao caracterizar a extenuante jornada que os funcionários da Companhia enfrentavam, interpreta a força de trabalho como uma moeda corrente, e compara aquela rotina ao

[...] tempo da escravatura, sabe? Que você comia mas cê tava dependente do patrão e tinha que trabalhar pra pagar? Era assim. Praticamente isso. Porque você ia no armazém e tinha o vale. Mas esse vale era descontado do teu pagamento. Então você tinha “x” de vale. De acordo com o seu ordenado era o tanto que a Companhia te dava o vale. Então, no dia de vale você fazia despesa. Mas esse vale vinha descontado na folha de pagamento. Se você ia no médico e gastasse na farmácia, vinha descontado na folha de pagamento (EUSÉBIO, 2011).

Csernik (2011), baseado na vivência de sua família dentro da Companhia Melhoramentos, acredita que trabalhar nos núcleos fabris fazia do funcionário “um escravo, porque eles já põem a pessoa dentro da empresa, que é pra pessoa não ver outra coisa a não ser a empresa [...] então você não ia conhecer outra coisa”. Referindo-se não apenas à jornada de trabalho nas oficinas e fábricas da Companhia Melhoramentos, mas também, àquela rotina que envolvia na vida doméstica o cuidado com hortas e animais, Prando afirma que naquela época o povo “[...] trabalhava, hein! Trabalhava que nem um cavalo. Trabalhava! Dinheiro não tinha não, mas o que comer, isso Graças à Deus nunca faltou! E era coisa boa!” (PRANDO, 2011).

As jornadas que já eram longas e exaustivas poderiam ser ainda maiores com a possibilidade de aumentar os ganhos praticando horas-extras se assim o trabalho exigisse.

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Para os operários, esta era uma oportunidade que não se poderia desperdiçar e valia alguns sacrifícios:

[...] tinha oito horas de trabalho na carteira. Mas você ficava e trabalhava, eu cheguei trabalhar durante a semana das sete às nove da noite, às dez da noite, só que ganhava extra. E sábado e domingo trabalhava. Muito tempo trabalhei de domingo, porque quando eu construí aqui a minha casa98 eu fiz muito hora extra, eu ganhava às vezes o tanto de ordenado o tanto de hora extra. Vamos dizer, que eu ganhava mil reais, e mil de hora extra. Porque a hora-extra era assim, eles pagavam 30% a noite e no domingo era 100%. E a gente usava muito a hora- extra porque nos feriados e domingos parava-se a fabricação. Hoje não para mais, mas naquele tempo parava. Hoje não para, hoje é regime contínuo, né? Mas antigamente, até nem sei como eles fazem os reparos hoje, porque antigamente era assim, a fábrica parava domingo de manhã e só ia funcionar na segunda-feira de manhã, às seis. Porque a fabricação era três turnos: das seis as duas, das duas as dez e das dez às seis. Nós trabalhávamos das sete às cinco. Então o nosso horário, passou das cinco horas já era extra. Sábado nós tínhamos que trabalhar até o meio dia. Passou desse horário era extra. Então a gente saía três, quatro horas da tarde. Domingo, às vezes eu ficava até....e os meus filhos não me viram quase. Eu vivia na fábrica. [...] era assim [...], eu saía de manhã, almoçava porque lá tinha refeitório, eles davam. Davam não, vinha descontado no hollerith, uns valezinhos, e você almoçava, mas era coisa bem pouquinha (o desconto), então a gente dava o valinho almoçava, jantava, e quando a gente ia jantar o vale não era descontado do pagamento. Por exemplo, se eu ficasse das sete as cinco o almoço tinha o valinho que vinha descontado. No jantar eles davam um papel escrito pelo chefe. Então a gente apresentava aquele papel no refeitório e comia. Porque era tudo da Companhia mesmo então com aquele vale que eles davam você jantava quando era hora-extra, domingo e sábado, era tudo extra e você tinha alimentação. Por isso que eu digo, não temos do que reclamar, né? Tinha as vantagens! (EUSÉBIO, 2011).

O processo de aposentadoria de Antonio Eusébio envolveu um acordo que novamente o fez considerar as vantagens financeiras daquele momento. Na ocasião, já havia ocorrido o desmembramento da Companhia Melhoramentos em MD Papéis, e a transferência dos funcionários de uma firma para outra

[...] só trocou o nome na carteira e pronto. Ninguém indenizou ninguém, ficou por isso mesmo. Nós trabalhávamos pra Melhoramentos, de repente começamos a trabalhar pra Meliorpel, que era a firma sucessora da Melhoramentos, a Meliorpel vendeu para a MD, passamos para a MD, e foi isso, foi contando anos de carteira. Com trinta e dois anos eu aposentei [...] minha aposentadoria foi assim: quando eu fiz trinta anos, a Companhia chamou não eu, mas todos da época, a fazer um acordo. Se a gente quisesse aposentar, eles davam dez salários nosso, do salário que ganhava na época. Dez salários. Se a gente aceitasse aquela proposta, a gente tinha como prêmio, vamos dizer assim, mais dois anos pra trabalhar lá, como contratado. Aí já era como contratado, não era mais...(funcionário) recebia normalmente como se não tivesse acontecido nada. Só que vencendo esses dois anos, a gente saia, sem nenhuma indenização, parava, simplesmente parava. Era um contrato de dois anos. Nesta época eu estava construindo minha casa aqui, esta casa que eu moro. Então pra mim foi vantajoso e eu aceitei. Quem não aceitasse, depois o castigo era ficar trabalhando e depois não teria nenhuma gratificação. Ia aposentar e só receberia o que era de lei e mais nada. O que era de lei o que era? O fundo de garantia.

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Que tava saindo na época. E muitos não tinham assinado o fundo de garantia. Quem não tinha assinado e tava perto de aposentadoria eles ofereceram este acordo. Então, você não recebeu nada por trabalhar trinta anos. Da Companhia nada. Você recebeu os trinta anos que foi feito os cálculos de depósito de INSS e foi dando o salário. Na época dava pra mim um bom salário, porque eu recebia 5 salários mínimos e meio. Na época era bastante. Era um bom salário... (EUSÉBIO, 2011).

A rotina implantada na fábrica durante as décadas de administração dos alemães foi de trabalho penoso que exigiu dos trabalhadores profunda dedicação. O esforço da gerência em impor um padrão de disciplina entre homens, mulheres e crianças e delas extrair o máximo possível de produção é perceptível em todos os relatos acerca das atividades exercidas na Companhia. Entretanto, nota-se que esta conduta parece não ter afetado ou diminuído o apreço dos trabalhadores pelos patrões alemães. Assim, os muitos operários consideravam a convivência com os Weiszflog “tranqüila. Os patrões mesmo, eles eram bons. O que era ruim era a chefia. Muitos das chefias eram descendentes de alemães. Então esses eram ruins. Tratavam mal os funcionários, pisoteavam mesmo” (EUSÉBIO, 2011).

As fábricas tinham a necessidade de um pessoal especializado para fazer a fiscalização técnica dos trabalhadores. Freqüentemente este pessoal esteve muito mais ligado ao patrão do que aos trabalhadores. O patronato se empenhava em oferecer aos fiscais e agentes vantagens materiais ou simbólicas. Observa-se, entre os relatos dos operários que permaneciam sob as regras e imposição de disciplina nos ambientes fabris, que o temor em relação às punições e repressões era proveniente da conduta desta camada intermediária – chefes e encarregados - que tinha como função instaurar a ordem e o ritmo para que a produção não fosse prejudicada e assim, apresentar às suas gerências e diretorias resultados satisfatórios. Os patrões alemães, embora rígidos em suas rotinas, eram tidos pelos operários como exemplos de boa conduta, organização, disciplina e educação. Para o operário de Caieiras, o respeito que os Weiszflog demonstravam por qualquer funcionário estabelecido dentro da Companhia Melhoramentos era a forma de expressar a consideração e apreço pelo trabalhador. Os alemães personificavam um exemplo de conduta e sabedoria:

[...] agora, aprendemos muito com eles também, né? [...] mas eles eram, especialmente a família Weiszflog, espetacular! A família Weiszflog era gente finíssima! Seu Hasso, ele dava uma volta na fábrica, ele cumprimentava desde o faxineiro até o gerente, e perguntava, queria saber do andamento, era um homem muito educado. Agora já depois, veio os Plöger, que é família também, porque a esposa do seu Hasso era irmã da esposa do Plöger. E eles já eram mais durão, mais secão. Já quase não era muito de conversa. Mas a família Weiszflog era espetacular, só tenho que falar bem da família Weiszflog. [...] Ele tem uma filha que se chama Adriana também, minha filha se chama Adriana por causa da filha deles (PRANDO, 2011).

O relato de Prando exprime um sentimento de orgulho e admiração por Hasso e toda família Weiszflog e a escolha do nome da filha lhe pareceu ser uma justa homenagem àquela família.

No documento Caieiras: núcleo fabril e preservação (páginas 119-125)