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Âmbito de aplicação documental

CAPÍTULO II  AS RESERVAS NOS VÁRIOS MODOS DE TRANSPORTE

1. Transporte marítimo

1.1. CB 1924

1.1.1. Âmbito de aplicação documental

O conhecimento de carga dá nome ao regime imperativo do contrato de transporte previsto na CB 1924, aplicável, no geral, a contratos de transporte em que o

176 Embora estas tenham um âmbito de aplicação mais vasto do que o escrito transporte marítimo, pois

são aplicáveis ao transporte total ou parcialmente por mar.

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DL n.º 352/86.

178 Portugal aderiu à CB 1924 através do Decreto n.º 19 857, de 18 de maio de 1931, tendo a adesão

passado a produzir efeitos em 1932.

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Estes Protocolos, no entanto, não chegaram a ser ratificados por Portugal, pelo que não vigoram entre nós.

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documento de transporte seja um conhecimento de carga ou similar  ocupando, assim, um papel central neste normativo internacional. Concretamente, o artigo 1.º, al. b), da CB 1924 define contrato de transporte para efeitos dessa convenção “somente o contrato de transporte provado por um conhecimento ou por qualquer documento similar servindo de título ao transporte de mercadorias por mar; e aplica-se, igualmente ao conhecimento ou documento similar emitido em virtude duma carta- partida, desde o momento em que este título regule as relações do armador e do portador do conhecimento” 180.

O artigo 5.º da CB 1924, estendendo o seu âmbito de aplicação para além dos casos compreendidos no artigo 1.º, dispõe, por sua vez, que “Nenhuma disposição da presente Convenção se aplica às cartas-partidas; mas, se no caso de um navio regido por uma carta-partida forem emitidos conhecimentos, ficarão estes sujeitos aos termos da presente convenção”. I.e., a CB 1924 determina a sujeição ao seu âmbito de aplicação mesmo quando, nos casos regidos por uma carta-partida, “forem emitidos conhecimentos”. Tal decorre, precisamente, do papel central que o conhecimento de carga assume nesta Convenção.

O seu âmbito material de aplicação encontra-se todavia excluído quando haja apenas emissão de carta-partida ou quando haja carta-partida e conhecimento de carga emitido em virtude dessa carta-partida nas relações entre carregador e transportador. Ao invés, quando haja conhecimento de carga emitido em virtude dessa carta-partida e nas relações entre portador do título – que entretanto circulou – e transportador, estas Convenções já lhes serão aplicáveis181.

As dificuldades surgem quando não haja emissão de conhecimento de carga em virtude do incumprimento da obrigação do transportador ou quando haja emissão de conhecimento de carga mas o título não circule. Deverá entender-se que o incumprimento da obrigação de emitir conhecimento de carga determinará, pura e simplesmente, a exclusão do âmbito de aplicação destas regras? Será a – efetiva –

180 Daqui parece resultar, pelo menos literalmente, que a aplicação desta Convenção depende da efetiva

emissão de conhecimento de carga ou documento similar, e não da existência de um dever de emiti-lo. Independentemente da posição adotada sobre esta questão, o “lugar central” do conhecimento de carga nesta Convenção é evidente  cf., v.g., JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit.,

p. 231 e HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de

Bruxelas de 1924, cit., p. 48.

181 Tal como sucede quando em virtude de um contrato de fretamento seja emitido um conhecimento de

carga que circule, tendo-se em vista a tutela dos terceiros portadores do título – cf.HUGO RAMOS ALVES, “Em torno do contrato de transporte marítimo de mercadorias”, Temas de Direito dos Transportes, Vol. III, Almedina, 2015, pp. 349-350.

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emissão de conhecimento de carga conditio sine qua non da aplicabilidade da CB 1924, mesmo nas situações em que o mesmo devesse ser emitido mas não o foi por incumprimento?

No que concerne à CB 1924, face ao seu caráter imperativo – que estabelece um regime one way mandatory, i.e., um regime imperativo a favor dos carregadores, podendo existir derrogação a favor destes mas já não em prol dos transportadores – o seu âmbito de aplicação material carece de uma análise mais cuidada que deve ir além do estrito formalismo que decorre da letra do preceito. Neste sentido, tem sido defendido que, sendo a disciplina convencional imperativa em razão da ordem pública que lhe subjaz, a mesma merecerá aplicação a outras situações, atendendo à materialidade subjacente.

O principal critério aferidor dessas situações deverá centrar-se no elemento finalístico ou teleológico de interpretação. O artigo 31.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT) assim o determina, ao prever que um tratado deve ser interpretado de boa fé e de acordo com o sentido comum a atribuir aos termos do tratado no seu contexto e à luz dos respetivos objeto e fim. Pode, por outro lado, nos termos do artigo 32.º da CVDT, recorrer-se a meios complementares de interpretação, designadamente aos trabalhos preparatórios e às circunstâncias em que foi concluído o tratado, com vista a confirmar o sentido à luz do objeto e fim dos tratados182.

Ora, tendo presente o caráter imperativo da CB de 1924, cuja intenção é a de proteger o carregador (artigo 3.º, n.º 8), que normalmente está numa condição negocial mais fragilizada em relação ao transportador, dever-se-á entender que a CB 1924 merecerá aplicação também naquelas situações em que, não havendo embora emissão de conhecimento de carga (ou documento similar), o mesmo devesse ser emitido, v.g., por via do costume ou dos usos comerciais, ou por acordo prévio das partes nesse sentido183.

Neste sentido, deverá incluir-se aqui o transporte de linha, nos quais a emissão de um conhecimento resulta dos usos comerciais, mas também aquelas situações em que em virtude da celebração de um contrato de fretamento fosse acordada a emissão posterior de um conhecimento de carga. Em síntese: incluem-se aqui todas as situações

182 Sobre os critérios de interpretação da CVDT vd., em especial, L

UÍS BARBOSA RODRIGUES, A

interpretação de tratados internacionais, AAFDL, 2002. 183

Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Da disciplina do contrato de transporte internacional de

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em que o transportador tenha a obrigação de emitir um conhecimento de carga, representando a sua não emissão o incumprimento de um dever184.

Na verdade, a imperatividade da CB 1924, que reflete exigências de ordem pública, não se coaduna com o facto de a sua aplicação estar condicionada ao efetivo cumprimento do dever do transportador emitir o conhecimento de carga ou à dependência da vontade das partes nesse sentido185. Em suma, de modo a não comprometer a obtenção de soluções efetivas e a prosseguir-se a ratio da Convenção, a aplicação do seu regime não depende da emissão efetiva de conhecimento de carga, mas tão só da obrigação de o emitir, por força dos usos, costumes ou por acordo das partes186.