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CAPÍTULO I  ENQUADRAMENTO E RAZÃO DE ORDEM

5. Os documentos de transporte

5.6. Síntese conclusiva

Aqui chegados, e atentas as distintas funções dos vários documentos de transporte supra descritas, estamos em condições de concluir, sob um ponto de vista comparativo, sobre a natureza jurídica dos mesmos.

A primeira conclusão que se retira a este respeito é a seguinte: os títulos de transporte não são todos títulos de crédito (representativos das mercadorias)170. I.e., os títulos de transporte podem, ou não, ser títulos representativos de mercadorias171.

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O que também denota esta equivalência functional ou fungibilidade  cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p. 50; M.JANUÁRIO DA COSTA

GOMES, “Introdução às Regras de Roterdão - A Convenção “Marítima-Plus” sobre transporte

internacional de mercadorias”, cit., p.38.

168 Como afirmado por M

ICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA e GERTJAN VAN DER ZIEL, The

Rotterdam Rules, cit., p. 55, declarando como princípio esta equivalência, o artigo 8.º das RR constitui,

pois, um primeiro passo na implementação dos documentos eletrónicos de transporte, mas o verdadeiro desafio consiste na sua implementação prática. Tentando concretizar aquele princípio, o artigo 9.º das RR, estabelece que os documentos eletrónicos de transporte negociáveis (os não negociáveis não estão abrangidos por este preceito), devem prever os seguintes procedimentos/fazer as seguintes menções: (i) qual o meio de emissão e transferência daquele documento para o portador previsto; (ii) a garantia de que o documento eletrónico de transporte negociável conserva a sua integridade; (iii) a forma pela qual o portador poderá demonstrar a sua condição de portador; e (iv) a forma de demonstrar que a entrega ao portador foi realizada ou que o documento eletrónico de transporte negociável perdeu sua eficácia ou validade (ao abrigo dos artigos 10.º, n.º 2, ou 47.º, n.º 1, al. a), subalínea ii) e al. c)).

169 A noção e a técnica legislativa utilizada para o efeito (pela positiva e pela negativa) é idêntica à de

documento de transporte negociável e não negociável, apenas se adaptando a terminologia para documento eletrónico de transporte negociável e não negociável  cf. artigo 1.º, n.ºs 19 e 20.

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Concretamente:

(i) quanto ao conhecimento de carga, o mesmo é unanimemente reconhecido como título de crédito representativo das mercadorias172; (ii) quanto à declaração de expedição, a mesma não é título de crédito

representativo da mercadoria, apenas desempenhando uma função de recibo e probatória;

(iii) quanto à carta de porte aéreo, a mesma não é, em princípio, título de crédito representativo da mercadoria (na prática não o é, embora em teoria o possa ser), apenas revestindo as funções probatória e de recibo. (iv) quanto aos documentos de transporte ou documentos eletrónicos de

transporte na aceção das RR, consoante os mesmos sejam negociáveis ou não negociáveis, podem ou não, respetivamente, ser títulos de crédito representativos das mercadorias.

Podendo suceder que alguns destes documentos sejam títulos de crédito, como acabado de expor, será de aplicar o respetivo regime dos títulos de crédito173. Além disso, tal como os demais títulos de crédito, estes caracterizam-se pela literalidade  o portador legítimo do título tem direito a exigir do transportador a mercadoria tal como nele descrita, no tempo, pelo preço e nas condições aí previstas (nem mais, nem menos)174, sendo ainda documentos autónomos175.

170 Cf., aparentemente em sentido diverso, P

AIS DE VASCONCELOS, Direito Comercial, cit., p. 234, que não faz a distinção entre a natureza dos vários documentos de transporte em termos de natureza.

171

A esta função representativa se refere expressamente o artigo 374.º do CCom., nos termos do qual se “a guia for à ordem ou ao portador o endosso ou a tradição dela transferirá a propriedade dos objectos

transportados”. Como bem adverte PAIS DE VASCONCELOS, Direito Comercial, cit., pp. 235-237, a referência à propriedade, neste caso, não pode ser entendida no seu sentido técnico de direito de propriedade, sendo, pois, mais abrangente do que isso. Poderá ser um direito de propriedade ou outro. Assim, a referência à propriedade deve, antes, ser entendida como um direito de disposição das mercadorias, tendo mais o sentido de titularidade do que de conteúdo do direito, devendo entender-se que o endosso da guia de transporte investe o endossatário na titularidade da mercadoria, seja qual for o seu conteúdo, “e lhe confere legitimidade para exercer contra o transportador todos os direitos emergentes

do contrato de transporte, sem que este lhe possa opor quaisquer exceções que não constem do título, designadamente, sem que lhe possa opor que não é o proprietário do título (artigo 387.º)”.

172

O legislador nacional reconhece-o expressamente no artigo 11.º do DL n.º 352/86, ao prever que “O

conhecimento de carga constitui título representativo da mercadoria nele descrita e pode ser nominativo, à ordem ou ao portador” (n.º 1) e que “A transmissão do conhecimento de carga está sujeita ao regime dos títulos de crédito” (n.º 2). Constitui entendimento dominante na doutrina e jurisprudência que o

mesmo constitui um título causal.

173

Cf., v.g., HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador, cit., p. 52, notas 102-103.

174 Cf., v.g., P

AIS DE VASCONCELOS, Direito Comercial, cit., pp. 235-236. Derivado dessa literalidade o CCom. estipula que “[t]odas as questões acerca do transporte se decidirão pela guia de transporte, não

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involuntário de redação” (artigo 373.º). Neste sentido, [a]s estipulações que não constem da guia

(convenções extracartulares) “serão de nenhum efeito para com o destinatário e para com aqueles a

quem a mês houver sido transferida” (artigo 373.º). Ainda a respeito da literalidade (ou ausência dela), de

acordo com o prescrito pelo CCom., na falta de guia ou de algumas das condições exigidas no artigo 370.º do CCom.  que dizem respeito ao seu conteúdo , as questões, acerca do transporte, serão resolvidas pelos usos do comércio e, na falta destes, nos termos gerais de direito. Esta é uma norma que remete expressamente para os usos e em que os mesmos assumem, assim, força obrigatória, sendo fonte de direito. Com efeito, nos termos do artigo 3.º do CC  sob a epígrafe “valor jurídico dos usos”, os usos que não forem contrários aos princípios da boa fé são juridicamente atendíveis quando a lei o determine. Ora, neste caso, a lei determina-o expressamente.

175

Vd., v.g., a respeito do conhecimento de carga, HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da

responsabilidade do transportador, cit., pp. 52 e 54. Referindo-se à autonomia em geral dos títulos de

transporte, vd., PAIS DE VASCONCELOS, Direito Comercial, cit., p. 236. Essa autonomia manifesta-se desde logo no artigo 373.º do CCom., que refere que, na falta de guia “as questões acerca do transporte

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CAPÍTULO II

AS

RESERVAS

NOS

VÁRIOS

MODOS

DE