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Defeito oculto, defeito aparente e defeito conhecido

CAPÍTULO III  DOGMÁTICA COMUM DAS RESERVAS

3. Validade das reservas

3.2. Defeito oculto, defeito aparente e defeito conhecido

O dever de verificação das mercadorias chama ainda à colação três conceitos clássicos do direito das obrigações que importa, aqui, destrinçar. Referimo-nos aos conceitos de defeito oculto, defeito aparente e defeito conhecido. Antes, porém, há que definir o próprio conceito precedente: defeito.

O defeito, amplamente definido, corresponde a um desvio em relação à qualidade devida  e não, sublinhe-se, à quantidade  desde que essa divergência seja relevante412. Assim:

(i) verificando-se um mero desvio em relação à quantidade devida, tratar-se- á não de cumprimento defeituoso mas sim de cumprimento parcial413; (ii) cumpre determinar o alcance da expressão “desde que essa divergência

seja relevante”.

O defeito pode ainda ser entendido num sentido objetivo, subjetivo ou híbrido.

410 Cf. C

ASTELLO-BRANCO BASTOS,Direito dos transportes, cit., p. 133. 411

Neste sentido, pode concluir-se, no que concerne ao estado e condição aparentes da mercadoria, que está em causa somente o que é discernível por meio de um exame externo e razoável, “so far as meets the

eye”  cf., a respeito do transporte rodoviário, MALCOM CLARKE e DAVID YATES, Contracts of carriage

by land and air, cit., p. 14. 412

Cf. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso - em especial na compra e venda e na empreitada, Almedina, 2015, p. 147.

413 Cf. R

OMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso, cit., pp. 196-197. Isto sem prejuízo de, como afirmado por este autor, nalguns casos o desvio de quantidade, em si mesmo, poder afetar a qualidade devida e, nesse sentido, o desvio de quantidade ser simultaneamente um desvio de qualidade.

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Deve, também, ter-se presente o conceito de desvio quanto à identidade, havendo, neste campo, que subdistinguir entre (i) peius (o devedor realiza a prestação devida, mas de forma defeituosa, o que origina um cumprimento defeituoso) e (ii) aliud (o devedor realiza prestação diversa da devida, não existindo sequer qualquer tipo de cumprimento  nem defeituoso nem parcial)414. Sendo fácil de delimitar estas duas situações na teoria, por vezes na prática torna-se difícil delimitar fronteiras415. Em todo o caso, sempre haverá que ter presente que “as qualidades, explícita ou implicitamente acordadas, integram-se na prestação devida”416, razão pela qual não deverá existir, em termos de consequências jurídicas, um tratamento mais severo para o aliud do que para o peius o que interessa, repita-se, é verificar se existe um desvio à qualidade contratual, sendo que tal desvio, em ambas as situações, representa uma desconformidade, sujeita ao mesmo regime417.

Por defeito oculto entende-se aquele que, sendo desconhecido do credor, pode ser legitimamente ignorado, pois não era detetável através de um exame diligente  i.e., o defeito é oculto se, no momento da aceitação da coisa, está só em germe e os seus defeitos não são percetíveis, porque se vêm a verificar em momento posterior418.

Ao invés, o defeito aparente é aquele que verificável mediante um exame diligente, nomeadamente quando o mesmo se revela por elementos exteriores419.

Por último, o defeito conhecido é aquele que, como o próprio nome indica, é conhecido pelo credor, independentemente de ser oculto ou aparente. É, na verdade, possível que, mesmo sendo oculto, o defeito tenha chegado ao seu conhecimento  v.g., através da contraparte ou de um terceiro, ou mesmo porque determinado bem foi submetido a exame de perícia420. Para se tratar de um defeito conhecido, exigir-se-á, ainda, como defendido por ROMANO MARTINEZ, que o defeito não tenha sido apenas vagamente informado, tornando-se necessário que o credor tenha ficado ciente da gravidade da situação421.

414 Cf. R

OMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso, cit., p. 199.

415 Exemplificando as dificuldades práticas de distinção destes conceitos, vd., R

OMANO MARTINEZ,

Cumprimento defeituoso, cit., pp. 199-205. 416 Cf. R

OMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso, cit., p. 200.

417

Cf. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso, cit., pp. 204-205.

418 Cf. R

OMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso, cit., pp. 164-165.

419 Cf. R

OMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso, cit., p. 165.

420

Cf. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso, cit., p. 165.

421 Cf. R

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Um bom exame do transportador no sentido de vislumbrar ou não a existência de defeitos nas mercadorias objeto do transporte é, muitas vezes, o que determinará, ou não, a aposição de reservas.

Assim, se o defeito das mercadorias for oculto, o transportador não terá forma de o saber e, assim, preencherá o documento de transporte como se a mercadoria lhe fosse entregue sã e exatamente nos termos descritos pelo carregador. Pelo contrário, existindo defeito aparente, o transportador não poderá ficar alheio a essa realidade, devendo fazer menção à concreta divergência que verifique face ao declarado pelo carregador.

Por outro lado, tratando-se de um defeito conhecido, ainda que oculto, o transportador também não poderá ficar indiferente, devendo retirar daí as devidas consequências. Entre essas consequências, e em nome do princípio da boa fé, deverá o transportador inscrever no documento de transporte esse defeito (neste caso existe um dever de formular reservas).

As reservas à partida, do transportador, sobre o estado e condição aparentes das mercadorias são reservas que têm o alcance de identificar defeitos aparentes, ficando de fora os ocultos. Pelo contrário, as reservas à chegada, do destinatário, podem dizer respeito quer a defeitos aparentes quer a defeitos ocultos, como vislumbrados nos vários regimes. Simplesmente, por regra, o prazo para a sua formulação será bem menor no caso de o defeito ser aparente por comparação ao que sucederá se o defeito for oculto.

Como começámos por dizer, o defeito corresponde a um desvio em relação à qualidade devida. Isto significa que, sendo formuladas reservas a respeito da quantidade, tecnicamente, não estará em causa um verdadeiro defeito no sentido de cumprimento defeituoso, mas sim um dano de outra natureza (quantitativa) que dará azo a incumprimento no sentido próprio do termo (incumprimento parcial)422.