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CAPÍTULO II  AS RESERVAS NOS VÁRIOS MODOS DE TRANSPORTE

1. Transporte marítimo

1.2. Regras de Hamburgo

A Conferência das Nações Unidas sobre o transporte por mar adotou, em 1978, uma nova Convenção no domínio do transporte marítimo de mercadorias, com base num projeto elaborado no âmbito da CNUDCI: as Regras de Hamburgo (doravante, RH 1978)227. Esta Convenção entrou em vigor em novembro de 1992, mas a sua relevância prática não se compara à CB 1924 uma vez que, na expressão de MÁRIO RAPOSO,

“apenas dela fazem parte, como regra, países de escasso significado no “shipping””228 . No entanto, o seu regime encontra-se já bastante mais maduro no que concerne às reservas e questões que com elas se podem relacionar, pelo que, mesmo quando o mesmo não seja aplicável, constitui um importante auxiliar interpretativo na resolução de questões práticas que poderão não se encontrar claras na CB 1924.

Quanto ao âmbito de aplicação “documental”, a questão atrás discutida quanto a saber se é exigível a efetiva emissão de conhecimento de carga só se coloca perante a CB 1924, e já não nas RH 1978, pois estas aplicam-se a todos os contratos de transporte

227 Para L

IMA PINHEIRO, “Direito aplicável ao contrato de transporte marítimo de mercadorias”, Temas de

Direito Marítimo - I, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 68, Vol. I, 2008, disponível em

https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/, esta Convenção representa uma rutura radical face à CB, que se destina a substituir (nos termos do artigo 31.º, a ratificação das RH obriga à denúncia da CB). Uma rutura que, segundo o autor, se verifica ao nível dos valores e princípios enformadores, que se manifesta naturalmente no conteúdo normativo, mas também, desde logo, na técnica seguida. Portugal não aderiu a esta Convenção, não tendo denunciado a CB 1924.

228

Cf. MÁRIO RAPOSO, “Transporte marítimo de mercadorias: hoje e amanhã”, III Jornadas de Lisboa de

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marítimo internacionais, quer haja ou não efetiva emissão de conhecimento de carga (artigos 1.º, n.º 6 e 2.º, n.º 1), sendo claro, na letra da própria Convenção, que é suficiente o dever de emiti-lo para sujeição ao seu âmbito de aplicação229.

1.2.1. Menções do conhecimento de carga

O conhecimento de carga, ao abrigo das RH 1978, deve incluir, inter alia, as seguintes menções particulares (artigo 15.º, n.º 1):

(i) A natureza geral das mercadorias, as marcas necessárias à sua identificação, uma expressa menção (se aplicável) ao caráter perigoso das mercadorias, o número de embalagens ou unidades, e o peso das mercadorias ou a sua quantidade expressa de outro modo, sendo estas informações fornecidas pelo carregador230;

(ii) A condição aparente das mercadorias231.

Também aqui se divide, à semelhança da CB 1924, entre as características das mercadorias no que respeita à informação fornecida pelo carregador e a que não é fornecida por este.

Também em termos semelhantes àquela Convenção, a obrigatoriedade de mencionar aspetos relativos à quantidade das mercadorias a transportar está configurada como constituindo obrigações alternativas (peso ou quantidade expressa doutro modo). Note-se ainda que a ausência de qualquer destas menções não afeta a validade do conhecimento de carga232.

1.2.2. Reservas à partida

229 Cf. G

ABALDÓN GARCÍA e RUIZ SOROA, Manual de Derecho de la Navegación Marítima, cit., p. 505. Os autores referem, porém, no âmbito da “Ley de 22 de diciembre de 1949, de unificación de reglas en

los conocimientos de embarque en buques mercantes” (vigente até setembro de 2014), que à semelhança

da CB 1924 que diz respeito a transportes sob conhecimento, só se aplica se houver efetiva emissão de conhecimento. Vd., em sentido idêntico, LIMA PINHEIRO, “Direito aplicável ao contrato de transporte

marítimo de mercadorias”, cit., que afirma neste âmbito que esta Convenção “não regula apenas certos

aspectos relativos ao conhecimento de carga e à responsabilidade do transportador por avarias de carga. Prossegue-se agora um escopo mais vasto: a unificação do regime do transporte marítimo internacional de mercadorias”. Vimos, porém, que, atenta a sua ratio, a CB 1924 também se deve aplicar

sempre que haja o dever de emitir o conhecimento de carga. Do que não pode duvidar-se é que, contrariamente à CB 1924, as RH afirmam-no expressamente, não se suscitando dúvidas quanto a este ponto.

230 Cf. artigo 15.º, n.º 1, al. a), das RH 1978. 231

Cf. artigo 15.º, n.º 1, al. b), das RH 1978.

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As RH 1978, diferentemente da CB, aludem já pela positiva à faculdade de apor reservas, no artigo 16.º, n.º 1 (com a epígrafe “Bills of lading: reservations and evidentiary effect”)233.

Ao abrigo deste preceito, o transportador pode incluir no conhecimento reservas no sentido de declarar a existência de inexatidões, motivos de suspeita ou a falta de meios razoáveis para verificar os dados relativos à natureza geral, às marcas principais, número de volumes ou unidades, peso ou quantidade das mercadorias (elementos estes que, como vimos, são fornecidos pelo carregador).

Quanto ao estado e condição aparentes das mercadorias, prescreve-se no artigo 16.º, n.º 2, das RH 1978, à semelhança da CB 1924, que tal menção deve também constar do conhecimento de carga. Porém, indo além desta, prevê-se especificamente como efeito decorrente da falta desta menção a presunção de que as mercadorias estavam em bom estado/condição aparentes aquando do carregamento234.

As RH 1978 exigem que o transportador indique os motivos da aposição de reservas, ao contrário da CB 1978 que não o exige, pelo menos, em termos literais.

Bem se vê, assim, que as RH 1978, contêm já um regime mais completo quanto às reservas, prevendo-se (i) a admissibilidade de reservas pela positiva (ii) os seus requisitos; (iii) os seus efeitos235.

1.2.3. Reservas à chegada

Estas reservas vêm previstas, em termos expressos, no artigo 19.º das RH, nos seguintes termos:

233 A norma tem a seguinte redação: “If the bill of lading contains particulars concerning the general nature, leading marks, number of packages of pieces, weight or quantity of the goods which the carrier or other person issuing the bill of lading on his behalf knows or has reasonable grounds to suspect do not accurately represent the goods actually taken over or, where a "shipped" bill of lading is issued, loaded, or if he had no reasonable means of checking such particulars, the carrier or such other person must insert in the bill of lading a reservation specifying these inaccuracies, grounds of suspicion or the absence of reasonable means of checking.”

234 A redação é a seguinte: “If the carrier or other person issuing the bill of lading on his behalf fails to note on the bill of lading the apparent condition of the goods, he is deemed to have noted on the bill of lading that the goods were in apparent good condition”.

235

Neste contexto, pode também afirmar-se, com HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da

responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas de 1924, cit., p. 38, que as normas

relativas à distribuição do ónus da prova e da intensidade do seu exercício, por parte do transportador, receberam um tratamento mais maduro e definitivo, não se prestando às incertezas interpretativas no âmbito da CB 1924.

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(i) a menos que o transportador seja notificado, por escrito, pelo destinatário sobre qualquer perda ou dano das mercadorias, especificando a natureza de tal perda ou dano, até ao dia útil após a entrega das mercadorias, presume-se, salvo prova em contrário, que o transportador entregou as mercadorias tal qual descrito no documento ou, não tendo sido emitido qualquer documento, em bom estado236;

(ii) porém, quando a perda ou dano não for aparente, o prazo previsto no ponto anterior não se aplica, dispondo antes o destinatário de um prazo de 15 dias seguidos após a entrega para notificar o transportador por escrito relativamente a tais perdas ou danos237.

Se o estado das mercadorias, no momento da entrega ao destinatário, tiver sido objeto de uma vistoria ou inspeção conjunta das partes, não será necessário notificar o transportador, por escrito, da perda ou dano verificado durante essa vistoria ou inspeção238. Eis, aqui, aquilo que, na CB 1924, vem definido como “verificação contraditória”.

No caso de qualquer dano atual ou esperado, o transportador e o destinatário deverão providenciar mutuamente por todos os meios que possam facilitar um ao outro para inspecionar as mercadorias239.

1.2.4. Valor probatório do conhecimento

As RH 1978, tal como a CB 1924, preveem, no artigo 16.º, n.º 3, al. a), que, com exceção dos casos em que tenham sido feitos nos termos e nos limites do artigo 16.º, n.º 1, o conhecimento constitui presunção, salvo prova em contrário, de que o transportador tomou a mercadoria a seu cargo ou, no caso de se tratar de “shipped bill of lading”, a carregou tal como surge descrito no conhecimento.

Esta prova em contrário só se admite, porém, se o documento não tiver sido transmitido a terceiro de boa fé, pois se o tiver sido a presunção é iure et de iure e não iuris tantum (artigo 16.º, n.º 3, al. b)).

236 Cf. artigo 19.º, n.º 1, das RH 1978. 237 Cf. artigo 19.º, n.º 2, das RH 1978. 238 Cf. artigo 19.º, n.º 3, das RH 1978. 239 Cf. artigo 19.º, n.º 4, das RH. 1978.

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Quando seja emitido um documento similar ao conhecimento de carga em vez deste, que desempenhe as funções de recibo de entrega das mercadorias e probatória, tal documento constituirá presunção iuris tantum relativamente à conclusão do contrato e à receção da mercadoria nos termos nele descritos240.