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CAPÍTULO III  DOGMÁTICA COMUM DAS RESERVAS

8. Natureza jurídica

Aqui chegados, estamos já em condições de determinar a natureza jurídica das reservas.

Quanto às reservas à partida (do transportador), face aos vários regimes analisados há, desde logo, que excluir a hipótese de as reservas constituírem causas de exclusão da responsabilidade do transportador. Isto, não obstante, historicamente as mermas terem surgido associadas a este efeito de exclusão. A exclusão da natureza das reservas enquanto causa de exclusão da responsabilidade não oferece, hoje, resistência464. Aliás, se as reservas tivessem este enquadramento dogmático-jurídico,

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Cf., neste sentido, a respeito do transporte marítimo, MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento

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teria forçosamente de se concluir pela sua invalidade face aos regimes imperativos do transporte a este respeito (a maioria deles one way mandatory)465.

Claro está que, nesta ordem de ideias, e como refere MÁRIO RAPOSO, a falta de

reservas não priva o transportador, designadamente, de invocar qualquer das cláusulas legais de exoneração da sua responsabilidade466 e, quanto a estas, poderá ver facilitada a sua prova.

A solução maioritária e que, aqui, também seguimos, é que as reservas afetam apenas a função probatória do documento, tendo o alcance de inverter o ónus da prova, i.e., anula-se o valor probatório do documento relativamente às características da mercadoria nele descritas sendo certo que, em caso de reservas sobre o estado e condição aparentes, deixa também de se verificar a presunção de que a mercadoria foi recebida em bom estado e condição aparentes pelo transportador467.

Poderá, ainda, perguntar-se, se as reservas constituirão um dever do transportador ou um mero ónus. Já sabemos que as reservas têm o alcance de eliminar o efeito presuntivo do documento de transporte e do bom estado e condição aparentes e que, assim, terá o transportador todo o interesse em apor reservas, porque aproveitará de uma vantagem jurídica que, de outro modo, não aproveitaria.

Como vimos, as RR fazem a distinção, neste campo, entre situações em que as reservas constituirão um verdadeiro dever do transportador e outras que apenas

465 Neste sentido, a respeito do transporte marítimo, vd. M

ÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento

em direito marítimo”, cit., p. 570. GABALDON GARCÍA e RUIZ SOROA, Manual de Derecho de la Navegación Marítima, cit., p. 516, partilham a mesma opinião, muito embora afirmem que, não sendo

tecnicamente dotadas dessa natureza, o efeito prático, muitas vezes, tem esse alcance de excluir a responsabilidade

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Cf. MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em Direito Marítimo”, cit., p. 571.

467 Cf. C

LAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 146. Para

ANTONIO LEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE PESCATORE eLEOPOLDO TULLIO, Manuale di Diritto della

Navigazione, cit., p. 620, as reservas tornam mais difícil, em benefício do transportador, a prova da

existência e da extensão do dano por parte do destinatário das mercadorias. Vd., também, COSTEIRA DA

ROCHA, O contrato de transporte de mercadorias, cit., pp. 130-131 (“as reservas advertem o portador do título que “toda a matéria objeto de reservas é apenas imputável ao carregador pois a formulação de

reservas retira eficácia probatória ao conhecimento. Em caso de contencioso terá de ser o portador do conhecimento a provar a desconformidade entre a mercadoria entregue ao transportador e a mercadoria entregue por este no destino.”), pp. 130-131. Contra esta posição parece ir MÁRIO RAPOSO, “As reservas

ao conhecimento em direito marítimo”, cit., pp. 569-571, que rejeita expressamente a natureza de mecanismo de inversão do ónus da prova sobre o momento em que as avarias na carga ocorrem. Quanto às reservas sobre o estado e acondicionamento das mercadorias, o autor defende que estas não são verdadeiras reservas, mas contra-indicações de sentido diverso ao referido pelo carregador. Assim, refere, “constituem dados observáveis por um sumário exame externo do transportador; são dotadas de uma

verificabilidade in re ipsa” e que “a sua função útil será a de excluir que as menções se presumam controladas pelo transportador, ou mesmo por ele suscitadas”.

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constituem uma mera possibilidade (tecnicamente, um ónus)468. Esta distinção deverá, também, ser efetuada no seio da construção de uma teoria geral das reservas, porque constitui uma decorrência de normas e princípios de ordem pública  maxime boa fé. Defendemos, nesta senda, a seguinte solução para qualquer tipo de transporte e seja qual for o regime aplicável:

(i) existirá um verdadeiro dever do transportador sempre que este saiba, efetivamente, que as declarações do carregador/expedidor não correspondem à realidade dos factos ou que a mercadoria não se encontra em bom estado e condição aparentes;

(ii) existirá ainda um verdadeiro dever do transportador sempre que o mesmo tenha fundadas suspeitas de que as declarações do carregador/expedidor não correspondem à realidade dos factos ou que a mercadoria não se encontra em bom estado e condição aparente;

(iii) nas restantes situações, existirá um verdadeiro ónus do transportador, na medida em que, apondo reservas, poderá beneficiar da preclusão do efeito presuntivo dos documentos de transporte e do bom estado e condição aparentes.

As reservas à partida constituem, ainda, declarações do transportador sobre as mercadorias objeto do transporte. A sua natureza é unilateral (e não bilateral)469. Neste âmbito, afirma que as reservas, sendo unilaterais, situam-se no campo probatório e respondem, em regra, a interesses do transportador (e não do carregador  este, pelo contrário, não terá interesse nenhum em que sejam apostas reservas, tendo todo o interessem na emissão de um documento de transporte limpo, pelas razões já mencionadas).

As reservas à chegada, ao invés, constituem um mero ónus do destinatário das mercadorias. Com efeito, se não fizer reservas, o destinatário das mercadorias ver-se-á desfavorecido na medida em que operará o efeito presuntivo à chegada de que as mercadorias chegaram ao destino conforme descrito no documento de transporte e em bom estado e condição aparentes. Ademais, neste particular, apenas estão em causa os

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Em sentido contrário parece ir MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em direito marítimo”,

cit., p. 571, que, a respeito da CB 1924, defende que o transportador não está vinculado a apor reservas no conhecimento: fá-lo no seu interesse.

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Neste âmbito, como afirmado por MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em Direito

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específicos interesses do destinatário, não tendo a ausência de reservas à chegada qualquer efeito de limitar outros interesses que devam considerar-se prevalecentes (contrariamente ao que sucede nas reservas à partida em que, para além dos interesses do transportador e do carregador, estão também em causa os superiores interesses do destinatário).

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