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CAPÍTULO II  AS RESERVAS NOS VÁRIOS MODOS DE TRANSPORTE

1. Transporte marítimo

1.1. CB 1924

1.1.3. Reservas à partida

Sem prejuízo da obrigatoriedade de fazer as menções supra descritas, a CB prevê, logo a seguir, que nenhum armador, capitão ou agente do armador é obrigado a declarar ou mencionar, no conhecimento, marcas, números, quantidade ou peso que, por motivos sérios, suspeite não representarem exatamente as mercadorias por ele recebidas, ou que por meios suficientes não pôde verificar (artigo 3.º, n.º 3, último parágrafo). Alude-se, assim, na CB à faculdade de omitir estas indicações (pela negativa), sem que se afirme expressamente a admissibilidade de reservas (pela positiva)198.

Todavia, não terá pretendido o legislador internacional, certamente, que se fizesse uma pura interpretação literal do preceito199. De facto, como afirmado por ČASLAV PEJOVIĆ,é difícil imaginar que o legislador desta Convenção tenha pretendido

que o transportador emitisse conhecimentos de carga sem menções particulares concernentes às marcas, número, quantidade ou peso das mercadorias, pois tais menções fazem parte da essência do conhecimento de carga, sendo um seu elemento essencial200.

Por isso, no essencial, e bem, a doutrina e jurisprudência, têm extraído da redação da norma da CB a possibilidade de o transportador apor reservas, e não de apenas omitir aquelas indicações, considerando que tal admissibilidade decorre, ainda

195 Cf. T

REITEL e REYNOLDS,Carver on bills of lading, cit., p. 483. 196

Cf. TREITEL e REYNOLDS,Carver on bills of lading, cit. p. 483. 197 Cf. T

REITEL e REYNOLDS,Carver on bills of lading, cit., p. 483. 198 Nos dizeres de M

ÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em direito marítimo”, cit., p. 568,

constituiu a CB 1924 um evidente “volte-face”, por não se fazer nela, pelo menos diretamente, qualquer alusão a reservas, existindo apenas esta previsão do artigo 3.º, n.º 3, da CB 1924.

199

Cf. ČASLAV PEJOVIĆ, “Clean bill of lading in contract of carriage and documentary credit: when clean may not be clean”, The Penn State Journal of Law & International Affairs, Vol. 4, nº 1, dez. 2015, p. 131, disponível em http://elibrary.law.psu.edu/jlia/vol4/iss1/8.

200

Cf. ČASLAV PEJOVIĆ, “Clean bill of lading in contract of carriage and documentary credit: when clean may not be clean”, cit., p. 131.

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que não expressamente, pelo menos implicitamente do citado artigo 3.º, n.º 3, da CB 1924201-202.

Por este motivo, não concordamos com CASTELLO-BRANCO BASTOS, quando

afirma que “a idêntico resultado material que se produz no regime de prova do estado da mercadoria no momento do embarque desde que se aceite as consequências deduzidas do princípio da literalidade se chegará ora omitindo tout court a indicação em causa, ora apondo uma reserva, ainda que, in hoc sensu, genérica ou de estilo”203. Com efeito, uma coisa é o transportador nada dizer e outra, bem diferente e com distintos efeitos, é o transportador apor reservas.

Quando, na verdade, o artigo 3.º, n.º 3, da CB refere que nenhum armador é obrigado a mencionar coisas que não correspondam àquelas características está, afinal, a querer dizer que, nestas situações, o transportador tem, pelo menos, a faculdade de colocar menções distintas do referido pelo carregador pois, se não o fizer, corre o risco de lhe ser aplicável um regime probatório bastante mais exigente.

A prática tem, efetivamente, demonstrado que, nestes casos, tais menções são feitas na mesma, embora acompanhadas de reservas204. Nesta senda, tem a doutrina e jurisprudência admitido a aposição de reservas num contrato de transporte regulado pela CB 1924: se o transportador não é obrigado a fazer as menções relativas às marcas, números, quantidade ou peso tal como descrito pelo carregador, então tem de se admitir

201 Neste sentido, vd. J

ANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., p. 246; ČASLAV

PEJOVIĆ, “Clean bill of lading in contract of carriage and documentary credit: when clean may not be clean”, cit., pp. 131-132.

202

No direito italiano, o artigo 462.º do Codice della Navigazione regula expressamente as reservas, dispondo que (i) o transportador tem a faculdade de inserir no conhecimento de carga reservas quando não pode no todo ou em parte proceder a uma normal verificação das indicações fornecidas pelo carregador sobre a natureza, qualidade e quantidade das mercadorias, bem como sobre o número de embalagens e marca das mercadorias; (ii) na falta de reservas, a natureza, qualidade e quantidade das mercadorias, bem como o número de embalagens e marca das mercadorias embarcadas, presumem-se, salvo prova em contrário, conformes as indicações no conhecimento de carga. RefereRIGHETTI que esta norma segue os traços do artigo 3.º, n.º 3, da CB de 1924 apresentando, no entanto, uma diferença estrutural: o artigo 462 do Codice della Navigazione alude à faculdade de apor reservas (pela positiva); a CB 1924, contrariamente, alude à faculdade de omitir as indicações respeitantes à quantidade, peso, número ou marcas das mercadorias (pela negativa). Mas esta diferença, como afirma RIGHETTI, Trattato

di Diritto Marittimo, Parte Seconda, Giuffrè Editora, 1990, p. 1000, acaba por ser mais estrutural do que

substancial.

203 Cf. C

ASTELLO-BRANCO BASTOS, Da disciplina do contrato de transporte internacional de

mercadorias por mar, cit., p. 265. 204

Cf. SOVERAL MARTINS, “Os documentos de transporte nas Regras da Haia e nas Regras de Roterdão”,

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que, pelo menos quanto a estas menções, a CB 1924 legitima a aposição de reservas205. Isto quanto a estes elementos.

Assente que está, pelo menos, a existência desta possibilidade de apor reservas, podemos ainda ir mais além e questionar-nos sobre se tal não constituirá antes um dever. Afirma ČASLAV PEJOVIĆ a este respeito que o conteúdo do artigo 3.º, n.º 3, da CB 1924 tem sido interpretado como implicando que o transportador, de facto, deveria inserir menções particulares concernentes às mercadorias tal como fornecidas pelo carregador e que, adicionalmente, o transportador está legitimado para “qualificar” tais menções particulares inserindo no conhecimento de carga reservas desde que cumpridas as condições exigidas no preceito  i.e, se o transportador, por motivos sérios, suspeitar que as indicações do carregador não representam exatamente as mercadorias por ele recebidas, ou se o transportador não teve meios suficientes para proceder a esta verificação.

Porém, quanto ao estado e condição/acondicionamento aparentes das mercadorias, suscita-se a questão de saber se em relação a esta particular menção também serão admissíveis reservas à luz da CB 1924. É que, se bem atentarmos no conteúdo do citado artigo 3.º, n.º 3, apenas se diz que o transportador não é obrigado a declarar ou mencionar as menções a que se referem as als. a) e b), e já não as respeitantes à al. c) sobre o estado e o acondicionamento aparentes das mercadorias. A CB 1924 é, então, quanto a estas, omissa206. Essa omissão, parece-nos, no entanto, meramente aparente, senão vejamos: se, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, al. a), o transportador deve mencionar no conhecimento o “estado e o acondicionamento aparentes das mercadorias”, naturalmente que se as mercadorias estiveram num “mau estado” ou aparentarem defeitos, esta norma dita que o transportador deve fazer menção a tais defeitos aparentes. A CB 1924 obriga que sejam feitas estas menções, “para o bem e para o mal”.

Assim, se o transportador verificar que as mercadorias não estão em bom estado e condição aparentes, o transportador deve precisar, mediante a aposição de reservas, essa condição ou estado, tanto quanto lhe seja possível precisar207. Isto é, deve precisar,

205 Neste sentido, vd. J

ANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., p. 246; YVES

TASSEL,“Les reformes apportees par les regles de hambourg au regime juridique du connaissement”, Il

Diritto Marittimo, II, 1993, p. 297. 206 Cf. J

ANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., p. 246.

207

Cf. TREITEL e REYNOLDS,Carver on Bills of Lading, cit., p. 483, que dão como exemplo a inserção de

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na medida daquilo que consiga, a falta de bom estado e condição, não sendo em princípio suficiente que o mesmo indique “em aparente mau estado e condição”.

Entende alguma doutrina que, não estando abrangidas pelo regime do artigo 3.º, n.º 3, da CB 1924, estas reservas são válidas mesmo que falte o requisito da indicação de motivo justificativo suficiente208.

Em suma: uma e outras reservas são, à luz da CB 1924, admissíveis. Uma e outra devem, também, ser fundamentadas e assentar num motivo sério. Com efeito, o artigo 3.º, n.º 3, como vimos, determina que o transportador não é obrigado a fazer as menções tal como declarado pelo carregador apenas se e na medida em que, “por motivos sérios, suspeite não representarem exatamente as mercadorias por ele recebidas, ou que por meios suficientes não pôde verificar”. Isto é, não se admite, face à CB 1924, qualquer aposição de reservas. As mesmas só são admissíveis se tiverem um fundamento, sendo que tal fundamento deverá assentar numa justificação objetiva relativamente às condições da mercadoria e/ou aos meios técnicos de carregamento209.

Sobre o conceito “estado” das mercadorias constante no artigo 3.º, n.º 3, al. c), da CB 1924, MÁRIO RAPOSO afirma que “o conhecimento de embarque regista, nos

termos desta al. c), o estado real da mercadoria, constituído pela aparência criada pelo exame sumário que o transportador faz antes do embarque e pelas indicações que lhe são prestadas pelo carregador”210. Isto não obstante reconhecer que a doutrina prevalecente se orienta no sentido de que o estado e acondicionamento aparente da mercadoria corresponde ao seu aspeto exterior, aquando da receção a bordo211.

Da alternatividade das menções referenciadas no artigo 3.º, n.º 3, al. b) da CB (número de volumes, objetos, quantidade ou peso), tem-se também considerado que, tendo o transportador apenas o dever de fazer menção a apenas um destes aspetos, poderá, validamente e legitimamente, apor reservas face aos demais elementos212. Esta solução tem toda a razão de ser: não existe, face aos demais, o dever de verificação, e onde não existe o dever de verificação poderão ser legitimamente apostas reservas.

Refira-se ainda, quanto às reservas à partida na CB 1924, que a doutrina e a jurisprudência têm admitido neste âmbito as reservas genéricas ao abrigo do citado

208 Cf., v.g., R

UIZ SOROA, ZABALETA SARASÚA e GONZÁLEZ RODRIGUEZ, Manual de Derecho del

Transporte Maritimo, Vistoria-Gasteiz, 1997, p. 425. 209

Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, Almedina, 2005, p. 246.

210 Cf. M

ÁRIO RAPOSO “As cartas de garantia e o seguro marítimo”, cit., p. 507 (nota de rodapé 14).

211 Cf. M

ÁRIO RAPOSO “As cartas de garantia e o seguro marítimo”, cit., p. 507.

212

Cf., neste sentido, CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”,

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artigo 3.º, n.º 3, daquela Convenção, mediante a aposição de cláusulas tais como (recorde-se) “said to contain”, “weight measure quality quantity condition content and value unknown”, ou a referência à expressão “FCL” (“full container load”)  indicando que o contentor foi entregue ao transportador já selado e que o transportador não está por isso ciente do seu conteúdo213. A sua validade, como se verá, estará dependente da existência ou não do dever de verificação do transportador in concreto e da aferição da razoabilidade de meios para o efeito214.