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Valor probatório do documento de transporte  rectius, efeito presuntivo

CAPÍTULO II  AS RESERVAS NOS VÁRIOS MODOS DE TRANSPORTE

1. Transporte marítimo

1.3. Regras de Roterdão

1.3.4. Valor probatório do documento de transporte  rectius, efeito presuntivo

Às menções contidas no documento de transporte ou documento eletrónico de transporte (ou a falta de menções, consoante o caso) está associado um efeito presuntivo, concretamente:

(i) se o transportador não fizer menção ao estado e condição aparentes das mercadorias, presume-se que as recebeu em aparente bom estado e condição (artigo 39.º, n.º 3, das RR);

(ii) se o transportador não fizer reservas ao abrigo do artigo 40.º, presume-se que o transportador recebeu as mercadorias tal como descritas no documento (artigo 41.º das RR).

Neste particular, cumpre distinguir as relações entre o carregador e o transportador das relações entre o transportador e terceiros. Vejamos.

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a) Valor probatório inter partes

O artigo 41.º das RR ocupa-se do valor probatório da informação contida no documento de transporte ou documento eletrónico de transporte, dispondo-se que, salvo na medida em que tenham sido formuladas reservas nos termos do artigo 40.º, todo o documento de transporte ou documento eletrónico de transporte constituirá presunção, salvo prova em contrário, de que o transportador recebeu as mercadorias conforme descritas nesses documentos (artigo 41.º, al. a)).

I.e., nas relações entre o carregador e o transportador a informação contida no documento constitui prima facie evidence255. Assim, por exemplo, quando no documento se menciona “40 contentores” e afinal foram recebidos 30, o transportador pode provar que, ao invés de 40, recebeu 30 contentores256.

No decurso dos trabalhos preparatórios das RR, a solução inicialmente proposta não era esta, tendo a UNCITRAL ponderado se esta informação poderia constituir presunção inilidível a favor do carregador257, nomeadamente nos casos em que fosse acordada a cláusula FOB, em que seria o comprador a celebrar o contrato de transporte enquanto carregador, não figurando este como um terceiro258. A questão que se impunha era: justificar-se-ia uma tutela equivalente ao terceiro de boa fé, neste caso?

Na versão preliminar das RR, a norma em causa permitia tutelar o carregador nesta situação, dispondo o seguinte: “[A] transport document or an electronic record that evidences receipt of the goods as described in the contract particulars…if a person acting in good faith has paid value or otherwise altered its position in reliance on the description of the goods in the contract particulars”259.

Assim, um carregador que mudasse a sua posição confiando nas mercadorias tal como descritas no documento seria protegido ao abrigo desta disposição, mas o texto

255

Cf. MICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p. 235.

256 Este exemplo é-nos dado por M

ICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA eGERTJAN VAN DER ZIEL,

The Rotterdam Rules, cit., p. 235. 257

Cf. MICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit. p. 235.

258 É comum, na relação subjacente ao contrato de transporte (tipicamente uma compra e venda ou

fornecimento) as partes (comprador e vendedor) recorrerem à cláusula “Franco a Bordo” (FOB) dos

Incoterms. Ora, na compra e venda FOB, o transporte é celebrado pelo comprador e não pelo vendedor

das mercadorias. Sobre os Incoterms em geral, vd. LUÍS DE LIMA PINHEIRO, “Incoterms – Introdução e

traços fundamentais”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 65, Vol. II, 2005, disponível em

http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=31559&idsc=45582&ida=45612.

259

Cf. MICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit. p. 235.

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final das RR não adotou esta posição, requerendo-se, à semelhança de outros instrumentos internacionais, o estatuto de terceiro para beneficiar de uma presunção inilidível260.

b) Valor probatório perante terceiros

Nas relações entre transportador e terceiros, o valor probatório dos documentos diferente consoante a sua natureza de negociável ou não negociável. Prescreve o artigo 41.º, al. b), das RR que não se admitirá prova alguma em contrário por parte do transportador relativamente à informação contida no documento de transporte ou documento eletrónico de transporte, quando esteja em causa:

a) um documento de transporte negociável ou um documento eletrónico de transporte negociável que haja sido transferido para um terceiro de boa fé; ou;

b) um documento de transporte não negociável que indica que tem de ser devolvido para obter a entrega das mercadorias e que haja sido transferido a um destinatário de boa fé.

(i) Documento negociável

Se o documento for negociável, o terceiro legítimo portador do mesmo que esteja de boa fé tem a seu favor uma presunção inilidível relativamente às informações contidas no documento. Exigem-se, assim, três requisitos:

(i) que se trate de um terceiro;

(ii) que esse terceiro seja o legítimo portador do documento; (iii) que esse terceiro esteja de boa fé.

Quanto ao primeiro requisito, terceiro será alguém que não é parte no contrato de transporte (que não seja nem o carregador nem o transportador, portanto). Quanto ao segundo requisito, o terceiro tem de ser legítimo portador do documento, porque o mesmo lhe foi transmitido validamente, por endosso ou entrega. Por fim, o terceiro requisito exige que o terceiro esteja de boa fé. Visa-se a boa fé em sentido subjetivo: ele

260

Cf. MICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p. 235.

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não pode ter conhecimento, a priori, de que a informação contida no documento está incorreta261.

Por outro lado, não se exige, aqui, qualquer investimento de confiança da sua parte  v.g., não se exige que o terceiro tenha pago o preço das mercadorias no âmbito do contrato subjacente (compra e venda, fornecimento, etc.) ou que tenha mudado a sua posição confiando na informação do contrato262. Este ponto, como veremos já de seguida, difere do regime previsto para os documentos não negociáveis.

(ii) Documento não negociável

Se o documento for não negociável, preveem-se duas situações. A primeira verifica-se no caso de se estar perante um documento de transporte não negociável que indica que tem de ser devolvido para obter a entrega das mercadorias e que haja sido transferido a um destinatário de boa fé. Neste caso, o regime aplicável é o mesmo que o regime dos documentos negociáveis frente a terceiro de boa fé que seja legítimo portador do documento, conforme supra exposto.

A segunda situação verifica-se quando, não fazendo o documento expressa menção ao facto de o mesmo dever ser devolvido nos termos expostos no parágrafo anterior, ainda assim existe um destinatário de boa fé que confiou legitimamente no documento e que, por isso, entendeu o legislador ser merecedor de tutela. Esta situação vem prevista no artigo 41.º, al. c), das RR, de acordo com o qual não se admitirá prova alguma em contrário por parte do transportador frente a um destinatário de boa fé que atuou confiando na informação do documento relativamente às seguintes informações que figurem num documento de transporte não negociável ou num documento eletrónico de transporte não negociável:

(i) as informações a que se refere o artigo 36.º, n.º 1, quando hajam sido fornecidas pelo transportador (marcas necessárias à identificação das

261 Cf. M

ICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p. 236; FRANCESCO BERLINGIERI, “An analysis of two recent commentaries of the Rotterdam Rules”, cit.,

pp. 35-36 (refere o autor o seguinte: “Good faith means in this connection that the holder of the document

was unaware that the goods were at loading in conditions different from those describe din the transport document and tha the paid for the goods their full price, without any discount for a minor quantity or inferior quality or other conditions different from those described in the transport document.”).

262

Cf. MICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p. 236.

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mercadorias, número de embalagens, unidades ou quantidade e peso das mercadorias);

(ii) o número, tipo e número de identificação de contentores, mas não a identificação dos números do selo do contentor.

(iii) a informação a que se refere o artigo 36.º, n.º 2 (estado e condição aparentes da mercadoria).

O valor probatório dos documentos não negociáveis perante terceiros  mormente a presunção iure et de iure  foi alvo de discussão nos trabalhados preparatórios das RR. Houve quem afirmasse que, pelo facto de serem não negociáveis, a sua natureza não se coadunaria com a atribuição de um efeito presuntivo iure et de iure frente a terceiros, mesmo de boa fé263.

Neste contexto, e como afirmado por MICHAEL F.STURLEY, TOMOTAKA FUGITA

e GERTJAN VAN DER ZIEL, existe, é certo, no direito internacional dos transportes, presunção semelhante na CMI Uniform Rules for Seaybills, mas este normativo constitui direito uniforme voluntário e não imperativo, sendo apenas aplicável se as partes do contrato para ele remeterem, incorporando tais cláusulas no contrato264. Por isso, este argumento não deve valer, de per si, para, sem mais, constituir fundamento da consagração de um regime idêntico em normativos imperativos, como as RR. Deverá, na verdade, esta solução ancorar-se noutros fundamentos.

Chegou-se, então, a uma solução de compromisso: nem toda a informação contida num documento não negociável constituirá presunção inilidível frente a um destinatário de boa fé.

A mais importante de todas é a respeitante ao estado e condição aparentes das mercadorias prevista no artigo 36.º, n.º 2, das RR, que, como vimos, é informação fornecida pelo próprio transportador265.

Quanto à informação prevista no artigo 36.º, n.º 1, das RR, tipicamente e usualmente fornecida pelo carregador, o transportador não pode ilidir esta presunção na

263

Cf. MICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL,The Rotterdam Rules, cit., p.

236.

264 Cf. M

ICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL,The Rotterdam Rules, cit., p.

236.

265

Cf. MICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p. 237.

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hipótese, pouco frequente, em que seja ele próprio fornecer essa informação, optando voluntariamente por incluir tal informação no documento266.

A informação relativa ao número, tipo e identificação de contentores dá origem a uma presunção inilidível mesmo que o carregador originalmente tenha fornecido essa informação267.

Em suma:

(i) nas relações entre o carregador e o transportador, consagra-se uma presunção ilidível de que as mercadorias foram recebidas tal como descrito no documento;

(ii) nas relações entre o transportador e terceiros de boa fé, consagra-se, para determinadas situações, uma presunção inilidível de que as mercadorias foram recebidas tal como descrito no documento, havendo uma diferença de regimes entre as situações em que exista um terceiro de boa fé legítimo portador do documento (no caso de um documento negociável) e as situações em que exista um destinatário das mercadorias de boa fé que atuou confiando no documento (i.e., que fez um investimento de confiança e que por isso é merecedor de tutela), quando este seja não negociável.

Verifica-se, assim, e apesar de tudo e em jeito de compromisso após a discussão sobre este tema nos trabalhos preparatórios, uma maior tutela do terceiro legítimo portador do documento de boa fé (quando o documento seja negociável) do que do destinatário das mercadorias de boa fé (quando o documento não seja negociável), que, para além de ter de estar de boa fé, apenas é merecedor de tutela no caso de ter feito efetivamente um investimento de confiança.

Como exemplo deste investimento de confiança, podemos citar a hipótese de o destinatário já ter procedido ao pagamento do preço das mercadorias pressupondo que as mesmas estão em bom estado e condição aparentes (tal como descrito no documento)268. Neste caso, a informação relativa ao estado e condição aparentes das mercadorias contida no documento faz, assim, prova absoluta a favor desse destinatário

266 Cf. M

ICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p. 237.

267 Cf. M

ICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p. 237.

268

Este exemplo é-nos dado por MICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL, The

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de que as mercadorias foram recebidas naquele estado, com as inerentes consequências em termos de responsabilidade para o transportador.

BERLINGIERI entende que à informação sobre o bom estado e condição aparente

das mercadorias, a que se refere o artigo 39.º, n.º 3, deve ser também aplicável a regra constante do artigo 41.º das RR: a presunção é inilidível no que respeita a terceiros a quem o documento seja transferido, sendo permitida a prova em contrário apenas nas relações entre o transportador e o carregador269.