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Os documentos de transporte nas Regras de Roterdão

CAPÍTULO I  ENQUADRAMENTO E RAZÃO DE ORDEM

5. Os documentos de transporte

5.5. Os documentos de transporte nas Regras de Roterdão

Justifica-se, ainda, uma referência autónoma aos documentos de transporte nas Regras de Roterdão (RR). Esta Convenção é aplicável ao transporte total ou parcialmente por mar. Por isso, quanto ao modo de transporte envolvido, pode estar em causa apenas um transporte marítimo ou o transporte marítimo e um outro ou mais. Isto significa, na prática, que, consoante o caso concreto em questão, pode suceder que a emissão de um documento de transporte ao abrigo desta convenção seja um documento de transporte marítimo (na medida em que cubra só este modo) ou, pode assim dizer-se, um documento de transporte multimodal (na medida em que cubra dois ou mais modos de transporte).

Em todo o caso, as RR definem documento de transporte em termos unitários. Para qualquer contrato de transporte por si abrangido, será emitido um documento de transporte nos termos nela prescritos (portanto, em rigor, não se faz a distinção entre um documento de transporte marítimo ou multimodal consoante o modo de transporte envolvido).

5.5.1. Conceito

Neste contexto, para obstar às disparidades advenientes de diversas interpretações possíveis quanto à noção de documento de transporte, as RR definem-no expressamente no seu artigo 1.º, n.º 14, como um documento emitido ao abrigo de um contrato de transporte pelo transportador que (i) prove que o transportador ou parte executante recebeu as mercadorias ao abrigo do contrato de transporte, (ii) prove ou incorpore um contrato de transporte152. Esta noção pode ser decomposta em quatro elementos ou requisitos cumulativos, a saber153:

151 Sobre a controvérsia existente em torno da natureza jurídica deste documento de transporte enquanto

título de crédito, vd. TREITEL e REYNOLDS, Carver on bills of lading, Sweet & Maxwell, 2001, pp. 410- 413.

152 Face a esta noção, e como refere J

ANUÁRIO DA COSTA GOMES, “Introdução às Regras de Roterdão - A

Convenção “Marítima-Plus” sobre transporte internacional de mercadorias”, Temas de Direito dos

Transportes, vol. I, Almedina, 2010, p. 35, o “paralelismo” com o conhecimento de carga e com as suas

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(i) o documento de transporte é emitido ao abrigo de um contrato de transporte (o que pressupõe, nas RR, que o contrato de transporte seja total ou parcialmente por mar);

(ii) o documento de transporte deverá ser emitido pelo transportador (ressalvando-se, naturalmente, a possibilidade de ele poder ser representado pelos seus agentes)154;

(iii) o documento de transporte prova o recebimento por parte do transportador ou parte executante das mercadorias carregadas ao abrigo do contrato de transporte;

(iv) o documento de transporte prova ou incorpora o contrato de transporte em si155.

Este conceito é ainda decomposto, nas RR, em dois subconceitos, a saber: (i) documento de transporte negociável: um documento de transporte que

indica, mediante a aposição de expressões como “à ordem” ou “negociável” ou outra expressão apropriada reconhecida como tendo o mesmo efeito ao abrigo da lei aplicável ao documento, que as mercadorias foram expedidas aos cuidados do exportador, do destinatário, ou do portador, não sendo feita uma referência expressa a documento “inegociável” ou “não negociável”156.

(ii) documento de transporte não negociável: um documento de transporte que não seja um documento de transporte negociável157.

falte a função de título representativo de mercadorias. Esta omissão é propositada, uma vez que, ao abrigo das RR, como se verá, o documento pode ou não assumir esta última função.

153 Cf. M

ICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules – The

UN Convention on Contracts for the International Carriage of Goods Wholly or Partly by Sea, Thomson

Reuters, 2010, pp. 204-205.

154

Assim, a parte executante poderá, agindo em representação do transportador, emitir um documento de transporte  cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam

Rules, cit., p. 205. 155

Não é necessário que o documento contenha todas as cláusulas ou condições contratuais. Aliás, não é pouco frequente que sejam apenas incluídas algumas das condições principais, podendo as restantes ser encontradas noutras fontes. Mas um mero recibo, que não prova o contrato de transporte em si, não pode ser considerado, ao abrigo das RR, um documento de transporte  cf. MICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA

FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p. 206.

156 Cf. artigo 1.º, n.º 15, das RR.

157 Cf. artigo 1.º, n.º 16, das RR. As RR definem-no desta forma, pela negativa, havendo, portanto, que

recorrer ao conceito de documento de transporte negociável (pela positiva) para daí extrapolar as devidas ilações.

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5.5.2. Documento eletrónico de transporte  equivalência funcional

As RR definem, também expressamente, documento eletrónico de transporte, no artigo 1.º, n.º 18, como aquele que contém a informação, numa ou mais mensagens emitidas com recurso a meios de comunicação eletrónica, emitida ao abrigo de um contrato de transporte por um transportador, incluindo informação logicamente associada ao documento eletrónico de transporte eletrónico através de anexos ou outra informação relacionada com o documento eletrónico de transporte contemporânea ou subsequente à sua emissão pelo transportador, a fim de tornar-se parte integrante do documento eletrónico, o qual:

(i) prove que o transportador ou parte executante recebeu as mercadorias ao abrigo do contrato de transporte, e

(ii) prove ou incorpore um contrato de transporte.

Essa informação constitui meio de prova da receção das mercadorias por parte do transportador ou parte executante em virtude da celebração do contrato de transporte158.

Como se vê, ambos  documento de transporte e documento eletrónico de transporte  são documentos que provam o recebimento das mercadorias por parte do transportador (ou parte executante, de acordo com as RR), bem como a celebração do contrato, incorporando-o  logo, provando também o seu conteúdo e não apenas a sua celebração. São patentes as vantagens associadas: maior celeridade na transmissão da informação e rapidez do transporte159, desburocratizando-se os procedimentos que, outrora, seriam necessários em virtude da emissão de papel.

O documento eletrónico de transporte, ao abrigo das RR, não integra expressamente, no seio da categorização, o tipo documento de transporte, tendo o legislador optado pela autonomização daquele conceito face a este160. É, no entanto, discutível se, em substância, não poderá antes entender-se que o documento eletrónico

158 Cf. S

OVERAL MARTINS, “Os documentos de transporte nas Regras da Haia e nas Regras de Roterdão”,

cit., p. 148.

159 Cf. S

OVERAL MARTINS, “Os documentos de transporte nas Regras da Haia e nas Regras de Roterdão”,

cit., p. 149.

160 A este respeito, referem M

ICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA e GERTJAN VAN DER ZIEL, The

Rotterdam Rules, cit., p. 49,queas RR não usam a expressão “electronic transport document” no sentido de se integrarem no conceito “transport document”, criando e autonomizando, ao invés disso, um novo conceito: “electronic transport record”.

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de transporte é um verdadeiro documento de transporte na aceção das RR (integrante do seu tipo, portanto), mas com a particularidade de ser emitido com recursos a meios de comunicação eletrónica161.

Seja como for, sendo ou não um documento de transporte em termos de classificação, as RR tornam claro o seu objetivo no sentido de equiparar ou tornar possível a equiparação entre os documentos de transporte e os documentos eletrónicos de transporte162. Alude-se, a este respeito, a um princípio da equivalência funcional163, por forma a responder às exigências do e-commerce e usufruir dos respetivos benefícios e dar, assim, resposta a um dos principais objetivos das RR: facilitar o comércio eletrónico164.

A este respeito, prescreve o artigo 8.º das RR que a emissão, o controlo exclusivo ou a transferência de um documento eletrónico de transporte têm os mesmos efeitos que a emissão, posse ou transferência de um documento de transporte165. De facto, toda a Convenção, sempre que se refere, ao longo do seu regime, a documento de transporte, refere-se também a documento eletrónico de transporte alternativamente, o que demonstra, mais uma vez, a equivalência substantiva e funcional de ambos aqui acolhida166. Acresce que, também reflexo deste princípio, as RR aludem ainda à possibilidade de substituição de um documento de transporte negociável (em papel, portanto) por um documento eletrónico de transporte negociável e vice-versa se o

161 Assim, as RR criam um novo tipo (“electronic transport record”) numa noção que combina a forma

eletrónica da informação nele contida com as específicas funções de um documento de transporte propiamente dito (no seu sentido tradicional)  cf. MICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA e GERTJAN VAN DER ZIEL,The Rotterdam Rules, cit., p. 49.

162

Cf. artigo 8.º das RR.

163

Cf. SOVERAL MARTINS, “Os documentos de transporte nas Regras da Haia e nas Regras de Roterdão”,

cit., p. 149. Vd., também, PAIS DE VASCONCELOS, Direito Comercial, cit.,, p. 238, referindo que os

documentos eletrónicos de transporte, surgindo numa tentativa de substituir os documentos em papel, não perdem por isso a qualidade de títulos de crédito; M.JANUÁRIO DA COSTA GOMES, “Introdução às Regras

de Roterdão - A Convenção “Marítima-Plus” sobre transporte internacional de mercadorias”, cit.., p. 37, que se refere a uma “perfeita fungibilidade entre os documentos de transporte e os documentos eletrónicos de transporte; SÁNCHEZ CALERO, El contrato de transporte marítimo de mercancías. Regras

de la Haya-Visby, Hamburg y Rotterdam, 2ª ed., Arandazi/Thomson Reuteurs, 2010, p. 644. Sobre os

conhecimentos de carga eletrónicos e as suas funções, vd. H.P.A.K.MARTINS, “The electronic bill of

lading”, Aspects of Marine Law - Claims under bills of lading, Kluwer Law International, 2008, 312-318.

164 Cf. M

ICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., pp. 47 e ss..

165

Face a este expresso reconhecimento da equivalência funcional, torna-se assim meramente teórica a questão de saber se o documento eletrónico de transporte constitui, ao abrigo das RR, um documento de

transporte nos conceitos por si adotados. 166

Cf. MICHAEL F.STURLEY,TOMOTAKA FUGITA,GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p. 50.

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transportador e o portador legítimo do documento nisso consentirem (artigo 10.º das RR)167-168.

Tal como os documentos de transporte (e fazendo jus, novamente, à equivalência funcional), também os documentos eletrónicos de transporte podem ser negociáveis ou não negociáveis169.

5.5.3. Funções

Do exposto resulta que, nas RR, um documento de transporte (ou documento eletrónico de transporte) cumpre, pelo menos, duas funções (necessárias): a função de recibo de entrega das mercadorias e a função probatória. Quanto à função de título de crédito representativo das mercadorias, esta será meramente eventual e dependerá do concreto documento de transporte que for emitido: negociável ou não negociável  revestindo os primeiros aquela qualidade e sendo os segundos dela destituídos.