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Parte I Enquadramento Teórico

4. O papel e a importância da formação dos professores para a construção de uma literacia mais

4.5. A formação de professores ao serviço da literacia

4.5.1.1. Ética e docência

Conforme observa Estrela (1999), ainda que a ética e a deontologia na prática docente sejam pertinentes, a verdade é que, ao nível da formação, esta questão, se excetuarmos uma breve referência no currículo, é, de alguma forma, descurada, não sendo, a maioria das vezes, contemplada sequer. No entanto, o Decreto-Lei nº 43, de 2007, que regulamenta a habilitação profissional para a prática da docência, uma das raras exceções àquilo que acabámos de referir, destaca como dimensões fundamentais da formação inicial a “formação cultural, social e ética (…) que abrange, nomeadamente: c) a preparação para as áreas curriculares não disciplinares e a reflexão sobre as dimensões ética e cívica da atividade docente” (Decreto Lei nº 43/2007, de 22 de fevereiro, Artigo 14), enquanto relativamente à formação contínua salienta a importância da “formação ética e deontológica” (Decreto-Lei 15/2007, de 19 de janeiro, Artigo 6º, alínea “d”).

A ética é, assim, um aspeto incontornável de ser professor, sendo uma questão presente em todas as tarefas associadas à práxis do ensino. Nesse sentido, é fundamental que este aspeto seja, adequadamente, tido em conta, ao nível da formação e da construção do currículo, sendo, ao mesmo tempo, necessário incluí-lo e contemplá-lo numa reflexão mais séria e aprofundada sobre o ato de ensinar.

Relativamente ao conceito de “docência”, alguns entendem que esta é "o exercício do magistério" (Ferreira, 1975, p. 489), ou seja, é desenvolver a atividade de ensinar. Assim, o docente seria aquele que "está desenvolvendo um processo de ensinar" (Rios, 2011, p. 53).

Porém, ser docente é bem mais do que ministrar aulas. De facto, na sociedade atual, éimportante, na perspetiva de Bizarro e Braga (2005, p. 19), que

“os professores perspectivem o trabalho educativo para além das imposições que a ordem neoliberal dominante apresenta, ao espartilhá-lo entre os valores do mercado e os do estado. Impõe que o crescimento do saber, do saber fazer e do saber ser passem por

uma acção de reflexão e de formação contínuas, na tentativa de fazer o levantamento, a análise e a interpretação dos traços que marcam, hoje e aqui, esta profissão”.

Com efeito, para além de bastante rica e multifacetada, a docência é das atividades mais exigentes, no que se refere ao empenho e à atualização que é necessário investir da parte de quem a deseja praticar com o máximo de dignidade e competência.

A propósito da importância que assume, necessariamente, a formação de professores na qualidade do ensino que se presta, a OCDE publicou o relatório Teachers matter: attracting, developing and retaining effective teachers, onde se salienta que

“Atualmente existe um considerável volume de investigação que indica que a qualidade dos professores e a forma como ensinam é o fator mais importante para explicar os resultados dos alunos. Também existem evidências consideráveis de que os professores variam na sua eficácia. As diferenças nos resultados dos alunos são, por vezes, maiores dentro de uma mesma escola do que entre escolas. O ensino é um trabalho exigente e não é qualquer pessoa que consegue ser um professor eficaz e manter essa eficácia ao longo do tempo” (OCDE, 2005, p. 12).

Este desafio é ainda maior, hoje em dia, se considerarmos as condições e os obstáculos da mais diversa ordem que o exercício da atividade docente é obrigado a enfrentar, nas mais diversas circunstâncias. Apesar da importância e valorização dadas ao professor, continua a registar-se uma cultura de pouco respeito para com os professores, uma situação que parece ter- se agudizado, no Brasil e em Portugal, nos últimos anos.Verificamos, desta forma, que, apesar de ser verdade que “em todas as nações existe um consenso emergente de que os professores influem de maneira significativa na aprendizagem dos alunos e na eficácia da escola” (Cochran-Smith & Fries, 2005, p. 40), a realidade é que a prática nem sempre reflete esta posição.

Na verdade, ser professor implica escolher enveredar por um percurso profissional de grande exigência profissional e pessoal, no qual o indivíduo tem de estar em constante dinâmica de adaptação. A propósito deste assunto, Tardif e Lessard (2005, p. 8), numa abordagem claramente humanista e de forte caráter social, definem o trabalho docente como "uma forma particular de trabalho sobre o ser humano, ou seja, uma atividade em que o trabalhador se dedica ao seu 'objeto' de trabalho, que é justamente um outro ser humano". Esta afirmação torna, efetivamente, visível a extrema complexidade de que se reveste a carreira docente. Ao mesmo

tempo, concordamos com Tardif (2008, p. 17, cit. por Souza, 2010, p. 43) quando este afirma que o professor "constituíria a chave para a compreensão da sociedade atual".

Atualmente, uma das questões a salientar relativamente à formação e ação dos docentes é, como já referimos, o facto de estes terem demasiados papéis e funções a desempenhar. De facto, ser professor não é apenas chegar à sala de aula e transmitir conhecimentos, durante três quartos de hora ou noventa minutos (e isso já seria uma função de valor, se bem levada a cabo). Na realidade, espera-se que os professores estejam envolvidos, ativamente, em diversas atividades escolares; que participem na construção do currículo, ao nível dos projetos curriculares de escola e de turma; que estejam, permanentemente, atualizados em relação às alterações legislativas e às atualizações de âmbito científico e tecnológico; que participem, ativamente, na comunidade escolar e não só; que sejam modelos de comportamento; que se preocupem com cada aluno enquanto indivíduo, de tal modo que, frequentemente, se espera, também, que sejam verdadeiros psicólogos; que saibam lidar com toda e qualquer necessidade especial de ensino; que sejam, ainda, em particular, no caso do ensino superior, reputados investigadores, competentes para publicar, periodicamente, os seus trabalhos científicos em revistas científicas que possam orgulhar e prestigiar as instituições de ensino a que pertencem. Estes são apenas alguns dos exemplos de funções que foram e têm sido atribuídas pela sociedade e pelo Estado aos professores e que, segundo Nóvoa (2006, p. 6, cit. por Souza, 2010, p. 40), têm sido

"apropriadas pelos professores com grande generosidade, com grande voluntarismo - o que tem levado em muitos casos a um excesso de dispersão, à dificuldade de definir prioridades, como se tudo fosse importante" esquecendo-se que “a prioridade primeira dos docentes é a aprendizagem dos alunos”.

Como já referimos, as condições de trabalho oferecidas, atualmente, aos docentes representam, de um modo geral, verdadeiros obstáculos a um ensino de qualidade. Registam-se, nesse sentido, vários aspetos que agravam, ainda mais, a situação, nomeadamente, como observa Pacheco (2000, p. 73-74), os que foram identificados por professores do ensino básico no exercício das suas funções, ou seja, "a mentalidade dos professores é a da uniformização”; “desmotivação dos professores” e “desinteresse dos encarregados de educação”; “falta de espaços físicos para a organização dos projetos extracurriculares”. Os professores apontam, ainda, fatores como “o número de alunos por turma e professor”; “os conteúdos desfasados da realidade dos alunos”; “a falta de coesão entre os professores em termos de trabalho docente”; “o

tom expositivo dos professores determinado pelas condições escolares”; “a desarticulação horizontal e vertical entre os três ciclos do ensino básico”; “a falta de métodos e hábitos de trabalho dos alunos” e “a falta de liderança curricular". É nesta realidade, que os docentes vão desempenhando a docência, nem sempre com o nível de excelência que seria desejável, mas, quase sempre, ao mais alto nível das suas competências que lhes é possível (Pacheco, 2000, p. 73-74).

Goodson (2007, p. 108) descreve a competência dos professores do seguinte modo: “um pequeno grupo de incompetentes, um grande grupo de profissionais altamente competentes, que inclui, também, aqueles que pensam de maneira mais profunda e mais estratégica sobre o futuro da profissão e da sociedade”. O autor destaca, como é óbvio, o grupo de profissionais competentes, que considera existir em larga maioria, evidenciando-se nele, na perspetiva do especialista, aqueles que vão para além do essencial e refletem sobre aspetos importantes para o progresso da profissão, isto é, aqueles que são capazes de verdadeiras práticas reflexivas.

Face ao exposto, podemos, assim, definir o ensino "como a mobilização de vários saberes que formam uma espécie de reservatório no qual o professor se abastece para responder a exigências específicas de sua situação concreta de ensino" (Gauthier, 2006, p. 28); por outro lado, o professor define-se, de acordo com Moreira (2006, cit. por Souza, 2010), como o profissional que deverá ter um excelente domínio numa determinada área científica, bem como as competências necessárias para usar as estratégias mais eficazes no sentido de transmitir o conhecimento aos seus alunos. O docente, para além de saber ensinar, tem, igualmente, de ter conhecimentos sobre aquilo que está a ensinar. Como sugere Duarte (2001, p. 126), “por melhor que seja a formação psico-pedagógica de um professor, ele não conseguirá nunca ensinar o que não sabe”. O papel de docente é, assim, bastante complexo e abrangente. Conforme observam Rockwell e Mercado (1986, p. 69), "Este (o docente), como sujeito, se encontra em uma situação objetiva que o obriga a lançar mão de todos os recursos possíveis, técnicos e pessoais, intelectuais e afetivos para poder seguir perante o grupo".

A vertente social da docência assume, também, uma certa primazia, no âmbito desta questão, particularmente se considerarmos que, de certo ponto de vista, a docência é, necessariamente, um aspeto político. Paulo Freire (1980, p. 78), autor baluarte para as Ciências da Educação, corrobora esta noção, ao afirmar que

"Toda a prática educativa requer a existência de sujeitos que ensinam e aprendem os conteúdos, por meio de métodos, técnicas e materiais, e implica em função do seu caráter diretivo, objetivos, sonhos, utopias, ideais. Daí a sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não poder ser neutra".

Assim, desde a construção do currículo até à transmissão dos conteúdos e à prática pedagógica propriamente dita, todo o processo educativo se reveste de uma orientação política incontornável.