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Parte I Enquadramento Teórico

1. O conceito de “literacia” – breve contributo para uma reflexão

1.4. Do conceito de “literacia” a “literacias”: reflexão e gestão do processo de

1.4.1. O papel dos agentes da literacia

Quando se pensa em aprendizagem, ensino, literacia, alfabetização e outros conceitos associados, pensa-se, frequentemente, em escolarização, considerando-se a escola a principal responsável por todo o processo de desenvolvimento intelectual da criança. Se aprofundarmos a reflexão, percebemos que, para além da escola – considerada, como observa Pinto (2002), a principal instituição responsável pela formação académica da criança –, existem outras instituições e elementos ou grupos da sociedade que apoiam o indivíduo no seu processo de desenvolvimento, no que se refere a uma aquisição eficaz da leitura e da escrita e, consequentemente, da literacia da literatura.

Kleiman (2007b, p. 414-415) propõe a expressão “agente de literacia” (“agente de letramento”, no texto original), considerando que as

“associações metonímicas com o conceito de agente (humano) trazem à mente a ideia de fazer coisas: um agente se engaja em ações autônomas de uma atividade determinada

e é responsável por sua ação, em contraposição ao paciente, recipiente ou objeto, ou ao sujeito coagido”.

Kleiman (2007b, p. 414-415), ao salientar o aspeto humano e social, afirma ainda que “todos somos agentes exercendo nossa ação sobre objetos do mundo, pelo facto de sermos humanos, a agência social é uma condição de poucos, aqueles que agem na coletividade, exercendo sua ação nos outros, em função dos objetivos de um grupo social”. Agente social significa, então, um elemento humano que atua no contexto social através de ações coletivas de uma forma articulada (Archer, 2000, cit. por Kleiman, 2007b, pp. 415-416); o agente social é “o mobilizador primário das capacidades e habilidades do grupo que teriam por objetivo fazer emergir, nas interações com os educandos, seus conhecimentos de livros e outros recursos escritos, assim como aqueles das suas redes comunicativas familiares, religiosas e outras, com o objetivo de ajudá-los a atribuir sentido à palavra escrita” (Archer, 2000, cit. por Kleiman, 2007b, p. 416).

Assim, de entre os vários agentes de literacia, salienta-se a família que, para além da escola, é o meio em que a criança vive, durante grande parte do tempo, tendo, por isso, uma forte influência no seu desenvolvimento. Taylor (1983, cit. por Cruz, 2011, p. 38) usa mesmo a expressão “literacia familiar” para se referir às práticas realizadas em contexto familiar associadas à leitura e escrita. Sabe-se que, quanto mais elevado for o nível de literacia na família, mais eficiente será o contributo deste agente para a construção da literacia do indivíduo. Desse modo, em famílias que têm um baixo nível de literacia e que valorizam pouco a leitura e a escrita, o processo de desenvolvimento da criança será mais prejudicado. Por seu lado, Haney e Hill (2004, cit. por Cruz, 2011) verificaram que o envolvimento dos pais numa determinada atividade de promoção de literacia exerce um impacto positivo no desempenho da criança. Sabemos, além disso, que as atitudes e crenças da família relativamente à leitura estão associadas, de forma direta, à atitude que a criança desenvolve sobre a leitura, influenciando a forma como a família transmite o gosto pela leitura e lhe propicia o desenvolvimento futuro da literacia da leitura (De Baryshe, 1995; Bakernet al., 1995; Spiegel, 1994, cit. por Cardoso, 2009). A aprendizagem em termos gerais está tão interligada com a leitura que, como Solé (1998) observa, através da compreensão daquilo que é lido, o leitor aprende, passando a conhecer mais e a refletir de diferentes modos. Assim, a leitura favorece sempre a aprendizagem

de uma forma geral, ainda que sem intencionalidade, ou seja, ainda que estejamos a ler apenas por gosto, sem objetivos concretos de aprendizagem.

Ao refletir sobre o papel da leitura no desenvolvimento da aprendizagem, Smith (1999, p. 88) preconiza que, na leitura,

“(…) aprendemos não somente a reconhecer novas palavras, mas aprendemos também tudo o que mais se relaciona com a leitura. Aprendemos a fazer uso das correspondências ortografia-som não memorizando as muitas regras e as exceções do ensino formal de fonologia da nossa língua, mas desenvolvendo procedimentos implícitos para distinguir uma palavra de outra quando o número de alternativas está limitado àquelas poucas, mais prováveis. Aprendemos a não nos basear demais na informação visual para evitar a cegueira funcional ou a visão túnel, e para evitar uma sobrecarga da memória. Aprendemos a aguçar e refinar nossa habilidade de prever e construir hipóteses; aprendemos até mesmo a melhorar nossa própria habilidade de aprender”.

De acordo com alguns especialistas (Purcell-Gates, 1994; Stipeket al., 1995, cit. por Cardoso, 2009), em contextos familiares nos quais é veiculada a noção de que a aprendizagem na escola não é importante para outras dimensões da vida dos indivíduos, as crianças tenderão a desenvolver uma atitude de menor interesse e motivação para a aprendizagem da leitura.

Por seu lado, Snow e Tabors (1996, cit. por Cardoso, 2009) referem quatro mecanismos de transferência intergeracional de práticas de literacia: a transferência direta, que remete para atividades como a leitura conjunta, a disponibilização de material impresso e associado à leitura, e o desenvolvimento da importância da leitura e da escrita; o prazer e envolvimento, nomeadamente através da promoção da leitura como entretenimento, e a partir da criação de momentos agradáveis e interações emocionalmente significativas na leitura conjunta; a prática de literacia, ou seja, por intermédio da utilização da leitura e escrita em atividades comuns do dia-a- dia, ressaltar a importância da escrita na resolução de problemas e enquanto prática social; e, por fim, através de mecanismos linguísticos e cognitivos, principalmente, a partir de textos com rimas, do foco em sons, da construção de histórias e de narrativas sobre aspetos comuns da vida (Snow e Tabors, 1996, cit. por Cardoso, 2009).

Hannon (1995/2000, cit. por Cruz, 2011) concebeu um modelo que denominou de ORIM. Este modelo descreve práticas familiares de literacia, distribuindo-as por dimensões: as oportunidades, referindo-se a oportunidades de contacto com material impresso e com práticas de leitura; o reconhecimento, ou seja, os adultos reconhecerem o desenvolvimento e o esforço das crianças; a interação com a linguagem, tanto oral como escrita, e com práticas de escrita e de

leitura; modelos de comportamento que permitam às crianças a interiorização de modelos por imitação.

Segundo alguns especialistas (Sénéchal, Pagan, Lever & Ouellette, 2008, cit. por Cruz, 2011, p. 42), apesar de a leitura conjunta de histórias constituir uma atividade muito comum entre pais e filhos, o treino da escrita está menos presente. Mais adiante, focaremos o conceito de “literacia emergente” e aprofundaremos a relevância da família e das práticas familiares (como é, por exemplo, o caso da leitura conjunta de histórias), no desenvolvimento da criança.

Numa fase inicial de aprendizagem, a família é o principal contexto em que a criança se insere, começando a adquirir e a desenvolver competências. Ao nível da escolarização, é, sem dúvida, o professor responsável pelo processo de alfabetização que exerce um maior impacto sobre a criança.

Como salienta Soares (s/d), considera-se, geralmente, que o processo de alfabetização e o desenvolvimento de competências que compõem a literacia são da responsabilidade da escola e do processo de escolarização. Nesse sentido, quando se verificam situações de insucesso, a escola e os professores são apontados como os principais culpados.

Uma criança ou um jovem não aprende apenas na escola e através do ensino formal; aprende, também, com os seus pares e com a valorização que estes dão à leitura e ao género de leitura, bem como com outros adultos que com ele, mais diretamente, convivem.

Com efeito, a sociedade não é composta por elementos independentes. O conceito de sociedade implica, assim, uma interdependência que sugere a articulação entre os diversos elementos que a compõem.

O mesmo se aplica, aliás, ao desenvolvimento da literacia dos indivíduos. Organizações como as associações recreativas e culturais, grupos de teatro ou dança, partidos políticos, grupos religiosos, são apenas alguns dos exemplos de elementos sociais que participam e influenciam o processo de desenvolvimento da literacia no indivíduo. De facto, numa perspetiva da literacia, que contempla a possibilidade de existirem múltiplas literacias, relativas a diferentes campos de estudo, pode mesmo falar-se em literacia mediática, que a Comissão das Comunidades Europeias (2007, cit. por Lopes, 2011, p. 13) define como “(…) a capacidade de aceder aos media, de compreender e avaliar de modo crítico os diferentes aspetos dos media e dos seus conteúdos e de criar comunicações em diversos contextos”. Numa sociedade onde a informação abunda e é facilmente acessível a todos, parece fundamental, como observa Reia-Baptista (2011), considerar

os diversos meios mediáticos como fontes de influência no desenvolvimento da literacia. Podem mencionar-se, por exemplo, a imprensa, que é, talvez, o método de divulgação de informação e conhecimentos mais tradicional, ainda que tenha sofrido inúmeras alterações, nas últimas décadas, nomeadamente as decorrentes da utilização da publicação em meio eletrónico, mas também a rádio, a televisão e o cinema.

Estes são apenas alguns exemplos de elementos que apoiam ou influenciam, de algum modo, o desenvolvimento da literacia numa criança. Porém, o processo de escolarização destaca- se, necessariamente, de entre todos eles, e, naturalmente, a escola também enquanto instrumento promotor da literacia.