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Parte I Enquadramento Teórico

4. O papel e a importância da formação dos professores para a construção de uma literacia mais

4.5. A formação de professores ao serviço da literacia

4.5.1.2. Perspetivas de alguns autores

Fernandes (1977, cit. por Stoer, 2008, p. 91), ao refletir sobre o ensino, após o fim da ditadura, em Portugal, afirmou que "O professor deveria ser, além do docente, na aceção verdadeira da palavra, um dinamizador cultural do seu meio em ordem à reconstrução da nação que o fascismo deixara devastada” (Fernandes, 1977, cit. por Stoer, 2008, p. 136). Pinto (2009, p. 58), por seu lado, defende um ensino que seja implementado como um “programa vivo” para o português, isto é, que encare a linguagem como um fenómeno vivo, dinâmico, e que potencie a competência dos alunos para se tornarem elementos autónomos e ativos na sociedade. Destaca- se, assim, a importância do professor enquanto agente de transformação social (Pinto, 2009). Stoer (2008, p. 93) argumenta, nesse sentido, que "o professor não actua num vácuo, actua dentro de um contexto social". Podíamos acrescentar também que o contexto social “actua” no professor e no ensino.

A propósito da importância e complexidade do papel do professor e da sua formação, Silva (2008, p. 32) observa que

"o profissional, formado por uma escola contextualizada e repensada numa dimensão globalizante, não deve ser mais aquele indivíduo apenas detentor de um saber e especialista em áreas específicas. Precisa necessariamente desenvolver qualificações e competências que possam contribuir, intervir e mudar a sociedade para melhor, atendendo as suas demandas e expectativas".

Na verdade, é preciso que o professor de hoje seja mais do que aquele que ensina e obriga a memorizar os nomes dos rios, deve ser aquele que desperta nos alunos a vontade de conhecer o rio, de saber onde este desagua, de conhecer as populações que vivem à sua volta e as produções que o circundam.

Nessa medida, para que tenha capacidades para desempenhar, com qualidade, o seu papel, é importante que o professor se mantenha em constante desenvolvimento profissional. Sobre esta questão Rudduck (1991) defende que o desenvolvimento profissional pode ser entendido como “a capacidade do professor em manter a curiosidade acerca da sua turma; identificar interesses significativos nos processos de ensino e aprendizagem; valorizar e procurar o diálogo com colegas experientes como apoio na análise de situações” (Rudduck, 1991, p. 129). Neste contexto, a prática reflexiva na docência afigura-se como essencial na construção e gestão de um ensino com qualidade e, nessa perspetiva, orientado para o sucesso escolar.

Heideman (1990, p. 4), por exemplo, destaca a questão da mudança, ao afirmar que “O desenvolvimento profissional dos professores vai para além de uma etapa meramente informativa; implica adaptação à mudança com o fim de modificar as atividades de ensino-aprendizagem, alterar as atitudes dos professores e melhorar os resultados escolares dos alunos”. Bredeson (2002, p. 663), por seu turno, destaca a criatividade, ressaltando, para isso, a importância e a necessidade de “oportunidades de trabalho que promovam nos educadores capacidades criativas e reflexivas, que lhes permitam melhorar as suas práticas”. Mais centrados na prática e na carreira docentes, Oldroyd e Hall (1991, p. 3) referem que o desenvolvimento profissional do professor “implica a melhoria da capacidade de controlo sobre as próprias condições de trabalho, uma progressão de status profissional e na carreira docente”. De todas estas abordagens, talvez a mais completa seja a de Day (1999), que argumenta que, para além de incluir as experiências de aprendizagem natural, o desenvolvimento profissional do professor é “o processo mediante o qual (os professores) revêem, renovam e desenvolvem o seu compromisso como agentes de mudança (...) desenvolvem conhecimentos, competências e inteligência emocional, essenciais ao pensamento profissional, à planificação e à prática com as crianças, com os jovens e com os seus colegas (...).” (Day, 1999, p. 4).

Perante uma diversidade tão grande de abordagens, somos levados a questionar o que deve, efetivamente, ser o conhecimento do professor. Para Pacheco e Flores (1999, p. 16), o conhecimento do professor deve constituir

"um saber (ou um conjunto de saberes) contextualizado por um sistema concreto de práticas escolares, correspondendo ao conceito aristotélico de sabedoria, reflectindo as suas conceções, perceções, experiências pessoais, crenças, atitudes, expectativas, dilemas, etc.".

Ambos os autores definem, assim, o conhecimento do docente como "um saber ou (...) uma multiplicidade de saberes com regras e princípios práticos, expressos nas linhas de acção docente". Ainda a propósito deste assunto, Tardif (2007, p. 255, cit. por Souza, 2010, p. 59) defende ser necessário "o estudo do conjunto dos saberes utilizados realmente pelos profissionais em seu espaço de trabalho cotidiano para desempenhar todas as suas tarefas". Ou seja, no entender deste especialista, é preciso refletir sobre a questão dos saberes do docente, sendo, assim, segundo o especialista (Tardif, 2000, p. 7), necessário propor como epistemologia da prática profissional docente o objetivo de

"revelar (os) saberes, compreender como são integrados concretamente nas tarefas dos profissionais e como estes os incorporam, produzem, utilizam, aplicam e transformam em função dos limites e dos recursos inerentes às suas atividades de trabalho. Ela também visa compreender a natureza desses saberes, assim como o papel que desempenham tanto no processo de trabalho docente quanto em relação à identidade profissional dos professores".

Tardif (2000), a quem se atribui a introdução, na comunidade científica brasileira, da questão dos saberes do docente, foca os saberes para explicar as questões centrais relativas à profissionalização e à formação de professores. O especialista levanta, nessa perspetiva, algumas questões: Quais os saberes utilizados pelos professores, no exercício da sua atividade docente? Como se distinguem estes saberes, de caráter profissional, dos saberes universitários, que orientam o trabalho dos investigadores, no âmbito das ciências da educação? Quais as relações mais desejáveis entre os saberes profissionais e os universitários, relativamente à profissionalização e à formação de professores?

Gauthier (2006) lembra que existem dois aspetos específicos que têm representado um entrave para a pedagogia: o ofício sem saberes, ou seja, a visão do ensino como uma simples transmissão de conhecimentos e o saber sem ofício, isto é, o conhecimento académico desenvolvido que não contempla as necessidades específicas, quer dos docentes quer dos discentes. Como resolução para este problema, o autor apresenta a possibilidade de um "ofício com saberes", isto é, um “"reservatório de vários saberes" que serviria de apoio aos professores nas diversas situações mais específicas (Gauthier, 2006, p. 28), e incluíria “saberes disciplinares relacionados com os conteúdos a ensinar; saberes curriculares, referentes à "transformação da disciplina em programa de ensino”; saberes das ciências da educação, que não estariam, necessariamente, associados à prática pedagógica; saberes de tradição pedagógica, relativos ao

desenvolvimento das aulas, e adaptados aos conhecimentos obtidos através da experiência; saberes de experiência, relativos às experiências e respetivos juízos de valor; saberes de ação pedagógica, relativos aos saberes da experiência enquanto saber validado por outros.

Carr e Kemmis (1998, cit. por Pacheco & Flores, 1999) sistematizaram, também, vários tipos de conhecimento que os professores deverão ter. Assim, distinguiram entre outros, aspetos relativos à prática; ao saber popular; às destrezas; aos saberes associados ao contexto; aos conhecimentos sobre aspetos concretos do ensino, tais como estratégias educativas e currículo e saberes ligados a teorias morais e sociais e as reflexões filosóficas.

Outras sistematizações (Shulman, 1987; Wilson, Shulman & Richert, 1987; Sockett, 1989; cit. por Pacheco & Flores, 1999, p. 19) fazem a distinção em sete dimensões essenciais: "conhecimento dos conteúdos da disciplina; "conhecimento pedagógico geral"; "conhecimento curricular"; "conhecimento do conteúdo pedagógico"; "conhecimento dos alunos e das suas características"; "conhecimento dos contextos educativos" e "conhecimento dos fins educativos". A estas dimensões Sockett (1989, cit. por Pacheco & Flores, 1999) acrescenta, ainda, o conhecimento pessoal e o conhecimento de outros conteúdos.

Tardif (2010), da sua parte, descreve os saberes do professor como aqueles saberes que são utilizados pelos profissionais, na sua prática diária, ao mesmo tempo que sistematiza a sua classificação, dividindo-os em saberes da formação profissional, relativos aos saberes na área das ciências da educação e pedagogia, veiculados durante o período de formação; saberes disciplinares, relativos às áreas de conhecimento específicas de atuação de cada professor; saberes curriculares, relacionados com os programas instituídos pela escola, onde são definidos objetivos, conteúdos a transmitir e metodologias; saberes da experiência, adquiridos e comprovados pela experiência de vida.

Deste modo, concluimos, com Rockwell (1986, p. 32), que os saberes adquiridos quer na formação quer através das experiências que o professor vai tendo, "acumulam e consolidam na prática (...) em torno do ensino que forma a base real de funcionamento das escolas e que abre o espaço possível para o apoio à transformação da experiência escolar".

Se considerarmos, como já referimos, a multiplicidade de funções do professor, os obstáculos que este encontra na sua prática profissional, a importância do docente enquanto mobilizador social e, ainda, os saberes que o mesmo deverá ter para um ensino de qualidade, parece natural falar de um “Super Professor”, como refere Formosinho (1992, p. 33) que reflete

sobre o que denomina de "discurso do super professor". De acordo com esta mesma visão do professor, este deverá apresentar "maturidade e formação" (Formosinho & Machado, 2010a, p. 80), ser um "perito nos conteúdos e no modo de os transmitir", ser capaz de atuar enquanto facilitador de aprendizagens e dinamizador do trabalho de grupos, realizar avaliações, desenvolver relações humanas e "ensinar para o aluno aprender e ensinar a aprender a aprender" (Formosinho & Machado, 2010a, p. 80). No fundo, aquilo que podemos concluir, é que, na atualidade, se espera que o professor desempenhe múltiplos papéis, recorrendo, para isso, a múltiplas competências e conhecimentos, sem uma formação adicional (Formosinho & Machado, 2010a).

Segundo Formosinho e Machado (2010, p. 82), a impossibilidade desta perspetiva ser aplicável à realidade da docência tornou clara a necessidade de se fomentar a especialização como forma de cumprir os múltiplos papéis que são esperados da docência e que a escola tem, portanto, de preencher.

Por seu lado, Formosinho e Ferreira (2009), no capítulo "Concepções do Professor" (pp. 19-36), apresentam cinco "cartas" redigidas por professores imaginários, que ilustram a complexidade inerente às conceções que existem relativamente ao ser professor. Estes tipos de docentes são definidos por Formosinho e Ferreira (2009, pp. 30-31) com base em indicadores, tais como "a definição formal de professor, o acesso à ocupação docente, os modelos de formação inicial de professor, os modelos e tipos de formação contínua, os papéis do professor, a especialização docente, a avaliação dos professores e a carreira docente”. Mais concretamente, os cinco tipos descritos pelos autores são o missionário, o militante, o laboral, o burocrático e o romântico.

O tipo missionário encara o ensino como uma vocação, sendo, assim, vivido com paixão e empenho, e atribui importância ao reconhecimento social da sua influência nos alunos, encarando-o como uma "recompensa" pelo seu empenho. Por seu lado, o militante é um professor que se considera um agente social, valorizando, assim, o seu compromisso com a escola e com a comunidade, pelo que avalia o seu trabalho, de acordo com a apreciação dos seus pares e da comunidade onde está inserido. O laboral ilustra um docente com inclinações sindicais, que se considera um trabalhador qualificado, com saberes especializados. Considera, por isso, que a avaliação não faz sentido, uma vez que se esperaria que a mesma, tendo em conta estas competências, fosse sempre positiva. Para além disso, uma avaliação assenta em critérios

mensuráveis e objetivos definidos, conjuntamente, pelos sindicatos e pelo Ministério da Educação. Por seu lado, o professor burocrático é aquele que cumpre, escrupulosamente, as normas e os regulamentos, considerando, assim, que a avaliação baseada na inexistência de dados negativos no processo do professor é a adequada. Assim, este tipo de professor aceita como critérios aspetos mensuráveis e aspetos que se encontrem registados, como é, por exemplo, o caso do tempo de serviço. Por fim, o professor de orientação romântica é aquele que encara a docência como uma arte, onde a relação entre professor-aluno é particularmente predominante; não considera, além disso, que haja lugar para avaliações formais, que tenderão a constranger a prática criativa do professor, aceitando-as apenas apenas no caso de estas eliminarem os docentes incompetentes; valorizam, acima de tudo, a avaliação informal realizada pelos alunos.

Uma outra perspetiva preconizada por Formosinho e Machado (2010a, p. 78), considera, ainda, que "Bom professor é aquele que se empenha naquilo que faz, sempre e em qualquer lugar, na sala de aula e fora dela, com os alunos e com os colegas, com as famílias e com a comunidade". No entanto, os dois autores interrogam-se se não seria utópico atribuir a avaliação de “Excelente” apenas aos docentes que atingem, raramente (caso existam alguns), este nível de perfeição e que, para além da dedicação profissional, também se entregam em termos pessoais? Se é certo que se gostaria de desenvolver a docência assente nesta visão "militante e missionária" (Formosinho & Machado, 2010a, p. 78), a realidade é outra, o que nos obriga a refletir com os "pés assentes na terra".

O professor é também um ser humano, falível e com limitações da mais diversa ordem: físicas, psicológicas e até cognitivas, Mas o professor é também parte da comunidade e tem o seu seio familiar, tendo, por isso, interesses para além do ensino. Este professor tem, pois, o direito, de valorizar a sua dimensão pessoal e familiar, reservando para a dimensão profissional a docência e o que esta, necessariamente, implica. Nesse sentido, Nóvoa (1995a, pp. 33-35) afirma que

“(...) não há dois professores iguais e (...) a identidade que cada um de nós constrói como educador baseia-se num equilíbrio único entre as características pessoais e os percursos profissionais. (...) É possível desvendar o universo da pessoa por meio da análise da sua acção pedagógica: diz-me como ensinas, dir-te-ei que és (...) e vice- versa”.

Além disso, são muitos os professores que se empenham para lá da sua função profissional. Oliveira-Formosinho (2010, p. 25-49), por exemplo, ilustram a preocupação de

alguns professores não apenas com o seu bem-estar e qualidade do ensino, influenciado pela mobilidade constante que lhes é exigida, o que gera dificuldades no estabelecimento de laços com os alunos. Os professores refletem, assim, sobre uma importante dimensão sócio afetiva que se encontra presente na prática do ensino, mostrando-se preocupados com a questão. Oliveira e Formosinho (2010, p. 37) citam, a título de exemplo, num dos seus estudos, o relato de uma das educadoras de infância: "É muito difícil as pessoas ligarem-se, fazerem tudo (...) pelas crianças, dedicar o máximo às crianças, depois é muito difícil as pessoas estarem naquela instabilidade e dizerem "Será que vamos embora?". Mesmo para as crianças, uma pessoa ter de falar com elas, ter de lhes dizer determinadas coisas (que provavelmente não continua com elas) é muito chato, é muito difícil... Eles ficam tristes é lógico, nós ficamos tristes, os pais ficam tristes, é muito difícil...". Este lado humano está, sem dúvida, presente na educação, revestindo-o de uma dimensão que não pode ser descurada, sob pena de omitirmos uma parte importante da essência que define o ensino.

Nessa ótica, um aspeto do ensino que não pode ser negligenciado é a sua orientação ética e a respetiva necessidade de ser “universal e humana” (Freire, 2000, p. 59), aspetos difíceis, apesar de tudo, de controlar, numa sociedade motivada pelo lucro e pela competitividade, onde a globalização levanta sérios obstáculos à prática reflexiva e ética.

Freire (2000, p. 60) salienta a importância e a necessidade de ocorrer uma “reinvenção do ser humano, de si mesmo, que passa pela superação da economia de mercado”. Da sua parte, Goodson (2007, p. 75) argumenta que, nesta sociedade capitalista e competitiva, onde os valores parecem ser negligenciados face ao lucro, cabe aos educadores encontrar um modo de “reinventar a ordem moral”, ou seja, “re-educar as pessoas sobre seus compromissos morais com outras pessoas, suas responsabilidades sociais, suas responsabilidades cívicas e, particularmente, suas responsabilidades com as pessoas ao seu redor.”

Como salientam Caetano e Silva (2009), ao analisar as conceções que os professores portugueses têm da prática da docência, é possível notar que estes encaram a profissão com um sentido profundamente ético. Esta contextualização ética verifica-se em duas frentes: o professor tem uma prática ética e assenta a sua práxis em bases éticas; o professor pode e deve estimular o desenvolvimento de ética nos seus alunos. Assim, como refere Silva (1994, p. 93), no que respeita ao modo como os professores concebem a docência, “assume particular relevo a função de educar, formar os alunos e contribuir para o desenvolvimento pessoal e social das crianças e

jovens”. Isto se, como observa Seiça (2003, p. 37), a educação for pensada na sua vertente ética e de preparação para a cidadania plena, isto é “como formação global do indivíduo para a cidadania e, indiretamente, como construtora da coesão da cidade, sendo, nessa medida, um verdadeiro instrumento político (…) uma ação política”. De facto, a educação tem o poder de equipar os indivíduos com vista à sua participação ativa na sociedade, incutindo-lhes princípios e valores fundamentais para que estes sejam membros plenos da sociedade.

A educação é também influenciada pela situação política do país. Na verdade, os princípios subjacentes à cultura política estão, claramente, presentes nas políticas curriculares. Em contrapartida, a educação também influencia a política, na medida em que forma os cidadãos de amanhã.