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Parte I Enquadramento Teórico

1. O conceito de “literacia” – breve contributo para uma reflexão

1.4. Do conceito de “literacia” a “literacias”: reflexão e gestão do processo de

1.4.2. Literacia versus escolarização

1.4.2.1. Instituições e realidades de ensino: alguns apontamentos

A educação é, sem dúvida, como nos revela Sacristán (2001), essencial na vida das pessoas e, cada vez mais, um meio absolutamente necessário para uma completa inserção no meio social, desenvolvendo nos indivíduos os instrumentos necessários para se tornarem membros ativos da sociedade.

A União Europeia (Doc. 98/C 1/03, cit. por Teixeira & Alves, 2010, p. 159), para além de uma noção de responsabilização da escola enquanto principal instituição de ensino, sublinha a necessidade de a escola "poder dispor (...) de instrumentos e de processos que lhe permitam tomar maior consciência das condições que favorecem o sucesso escolar dos seus alunos" já que "cada escola é responsável (...) pela qualidade do seu próprio ensino (...)".

Com efeito, as instituições de ensino são fundamentais para a sociedade, não apenas pelo papel que desempenham no ensino e no desenvolvimento das novas gerações, mas também por causa das relações de poder que se estabelecem no meio social e onde o ensino assume um papel fundamental. De facto, como refere Apple (2006, p. 7), as instituições de ensino detêm bastante poder, isto é, “a forma como estão organizadas ou são controladas relacionam-se integralmente com as maneiras pelas quais determinadas pessoas têm acesso a recursos de ordem econômica e cultural e ao poder".

Por outro lado, observamos também que, apesar da pedagogia ser, sem dúvida, um tema internacional, encontramos diferenças essenciais, nas diferentes realidades nacionais. No caso específico do contexto brasileiro, por exemplo, vale a pena sublinhar que pensar no ensino da realidade brasileira é uma tarefa complexa, como advoga Oliveira (1993, p. 53):

"a compreensão e a construção do fenômeno do ensino na escola brasileira (...) implica tratá-lo como uma totalidade concreta em movimento, cuja essência tenta captar-se, por meio de aproximações sucessivas, sabendo-a inexaurível ao conhecimento. Implica discuti-lo enquanto uma prática social no dia-a-dia da escola, em suas múltiplas determinações, procurando desvelar-se o seu relacionamento em correspondência e ao mesmo tempo em contradição com outras práticas na formação social brasileira, predominantemente capitalista. Implica revelar os mecanismos que lhe são próprios, enquanto viabilizador da ideologia própria do sistema. Implica descortinar a especificidade de suas contradições internas, em torno de seus elementos e subprocessos (conteúdo-método, professor-aluno, planejamento-execução, fins e controle). Implica discuti-lo como trabalho pedagógico-escolar - práxis - articulado com as bases materiais da sociedade que se pretende transformar. Implica procurar a sua transformação para além dos limites e reducionismos de que dificilmente se consegue escapar no seu tratamento. Implica desvinculá-lo das abordagens positivista e sistêmica, pelas quais ele vem sendo tratado de forma eminentemente fragmentada, ou através de modelos formais e descontextualizados, no cerne do denominado tecnicismo pedagógico" (Oliveira (1993, p. 53).

Saviani (1991, cit. por Castro, 2010, p. 77) descreve, ainda, como perspetivas educativas primordiais, no contexto brasileiro, a abordagem "tradicional", "nova", "tecnicista" e "crítica", assentes em paradigmas progressistas ou de caráter liberal.

Por outro lado, no âmbito, desta vez, da realidade portuguesa, Pacheco e colaboradores (1996, p. 104) salientam que a reforma que ocorreu no ensino, no fim do século passado, “não correspondeu nem aos objetivos propostos nem às mudanças das práticas curriculares e das atitudes dos professores”, visto que apresentavam lacunas ao nível da inovação e do real impacto das suas orientações. Mais concretamente, a decisão curricular, segundo Pacheco (2006), com currículos excessivamente extensos e latos e linhas orientadoras de avaliação, falhou em priorizar a avaliação sumativa em detrimento da avaliação formativa. Além disso, assentou num ensino focado no manual. Tudo isto acabou por desmotivar os docentes (Pacheco, 2006) e por não promover o envolvimento dos encarregados de educação no processo de construção do currículo (Pacheco, 2006).

Nóvoa in Pereira & Vieira, 2006, p. 114) refere três perspetivas essenciais em que a pedagogia moderna assentou, na sequência do processo de mudança educativa registada na viragem do século: crença de que a aprendizagem ocorre segundo um processo linear, uma noção já desacreditada, sendo fundamental que a pedagogia acompanhe esta evolução concetual; a autonomia do aluno, sendo fundamental “traduzir a autonomia em processos de diferenciação pedagógica”, isto porque “A escola não pode ser igual para todas as crianças”; a necessidade de estimular a motivação dos alunos, que tem sido, exageradamente, seguida, por vezes, sendo desejável que nos centremos, antes, na noção do “contrato pedagógico”, que permita à escola assumir o seu papel de instituição de ensino e aprendizagem.

Uma outra perspetiva importante é introduzida por Shavelson (1992, p. 34), que considera que um professor, na sociedade atual, é um “orquestrador de tarefas que possibilitem uma construção criteriosa de conhecimento”, ao invés de, simplesmente, ter como função transmitir informações. Assim, no papel do docente, a promoção do pensamento crítico, que equipe os alunos com as competências necessárias para a utilização dos conhecimentos, de uma forma eficaz, e que possam aprender, ao longo do percurso da sua vida, torna-se central. E, aqui, as universidades, em particular, têm um papel de fulcral importância a desempenhar, nomeadamente no modo como preparam os futuros professores.

No que diz respeito às universidades, Meirinhos (2009, p. 8) afirma que “O que distingue a universidade de outras instituições é a sua natureza, finalidade e organização”. Esta afirmação leva-nos, de alguma forma, a refletir sobre a importância da Universidade enquanto instituição de ensino distinta das que se ocupam com outros níveis de ensino, ainda que uma grande parte da literatura existente, no âmbito das Ciências da Educação, se debruce sobre o ensino não superior. De facto, segundo Esteves (2008), só a partir da última década do século passado parece ter surgido algum interesse no estudo das universidades.

A propósito desse assunto, Esteves (2008, p. 103) considera que “Falar de pedagogia do ensino superior é (…) falar de ciência a ensinar e a aprender, e de ciência sobre o ensinar e o aprender”. Por seu lado, Cerri (2008, p. 343) defende que, ao nível do Ensino Superior, é preciso não esquecer que "se a pesquisa é essencial para o ensino, o ensino é essencial para a pesquisa". Ou seja, uma das tarefas mais importantes da universidade é realizar e articular o ensino com a investigação que está para lá dos muros da própria Universidade.

Santos (s/d) considera ser necessário refletir sobre o conceito de Universidade, tendo em conta que, na sua ótica, têm-lhe sido atribuídas tantas funções que o mesmo acabou, de certo modo, por se esbater. Assim, o autor (Santos, s/d, p. 46) considera que "só há universidade quando há formação graduada e pós-graduada, pesquisa e extensão" e que "Sem uma destas vertentes, há ensino superior, não há Universidade" (Santos, s/d, p. 47). Assim, o autor alerta para a necessidade de se distinguir entre Universidade e Ensino Superior, tão frequentemente confundidos.

Santos (s/d) lembra, ainda, que, na Europa, a maioria das universidades públicas tiveram a possibilidade de lutar contra a crise causada pelo desinvestimento do Estado, ao criar formas de gerar receitas próprias. Isto foi possível, pelo facto de existirem, na maioria dos países europeus, uma predominância das universidades públicas, que, pelo prestígio e pela procura de que são alvo, conseguiram gerar as suas próprias receitas e criar, de uma forma independente, métodos de trabalho em articulação com outras instituições, o que impediu a predominância das universidades privadas. Relativamente à situação portuguesa, ainda que Santos (s/d, p. 13) considere que "essa estratégia (...) fracassou totalmente" no nosso país, a verdade é que, apesar de existirem no mercado diversas Universidades privadas de renome (como é, por exemplo, o caso do ISPA - Instituto Superior de Psicologia Aplicada), verifica-se que as universidades

públicas ainda apresentam muito boas condições, ao nível de reputação, prestígio e contribuição científica.”

Segundo Esteves (2008), na realidade portuguesa, até há relativamente pouco tempo, em período de pré-crise económica, verificava-se um predomínio das universidades públicas e de apoios financeiros, como é, por exemplo, o caso das bolsas de estudo, que apoiavam o ingresso no Ensino superior, permitindo, desta forma, uma maior diversidade dos alunos, no que se refere aos seus contextos de origem, percursos pessoais e académicos e ambições futuras. De acordo com Esteves (2008, p. 104), ainda que esta situação seja a mais desejável, do ponto de vista democrático, é, igualmente, importante ter a noção de que esta é uma realidade que torna também difícil, senão mesmo impossível, desenvolver, a nível pedagógico, processos de ensino focados no aluno, o que obriga os docentes e as instituições a refletir sobre as melhores práticas pedagógicas a adotar.

Esteves (2008), ao refletir sobre o papel central do aluno no processo de ensino, nesta realidade de heterogeneidade, considera que, de modo a que o aluno possa ser, efetivamente, considerado um elemento central no processo de ensino, e, assim, promover o nível de qualidade pedagógica, seria desejável e fundamental que se abordasse a questão, de um ponto de vista crítico, com vista à promoção do sucesso escolar.

Ao traçar a evolução da educação em Portugal, Nóvoa (in Ventura, 1999) observa que, até aos anos 50 do século XX, o centro da educação era o indivíduo e, em particular, as suas dimensões cognitiva, afetiva e motora; entre a década de 50 e 60, focou-se mais a questão da interação e da experiência social que a escola proporciona, numa perspetiva bastante mais social, portanto; entre os anos 60 e os anos 70, focou-se, particularmente, a crítica às instituições educativas, naquilo que se poderá denominar de pedagogia institucional; até à década de 80, surgiu um movimento racionalista que encarava o ensino na perspetiva da sua eficiência, de forma mecanizada; entre a década de 80 e a década de 90, registou-se uma pedagogia focada na escola-organização, com um enfoque nas questões metodológicas e no desenvolvimento da escola enquanto instituição relativamente autónoma.

No que respeita, mais concretamente o ensino universitério, os Estatutos adotados, em 2009, pela Universidade do Porto, e citados por Meirinhos (2009, p. 8), são um bom exemplo do alcance da intervenção das universidades. O documento aponta como compromissos para o desenvolvimento três áreas: “a formação no sentido global”, a “investigação científica” e a

“valorização social do conhecimento”. Uma Universidade, no entender do especialista, deverá, nesse sentido, não apenas desenvolver o conhecimento específico inerente ao escopo essencial de cada curso de formação, mas também procurar formar, globalmente, os indivíduos que a frequentam, dando-lhes a possibilidade de desenvolverem “capacidades e competências específicas e transferíveis” e, numa perspetiva mais ampla, levar à “difusão do conhecimento” (Meirinhos, 2009, p. 8). Neste contexto, a questão da investigação tem também bastante importância, tendo em conta que a Universidade é a instituição mais bem apetrechada e mais apropriada para fomentar a descoberta e desenvolver os conhecimentos científicos que podem representar um importante contributo para a sociedade em geral. A terceira dimensão tem, precisamente, a ver com a importância da Universidade para a sociedade. A universidade, deverá, sem dúvida, preocupar-se não apenas em contribuir para a sociedade, mas também em articular esforços com ela, desenvolver atividades em cooperação e, assim, liderar a mudança social. Com efeito, as universidades são centros de saber e de criação, devendo, por isso, liderar a evolução cultural e social.

Nesta abordagem social, talvez um dos melhores exemplos do impacto que a sociedade teve no Ensino Superior seja o Tratado de Bolonha que, desde que foi implementado, influenciou a construção do currículo em todos os cursos superiores. O desenvolvimento e a implementação destas mudanças visaram, sobretudo, tornar as qualificações adquiridas nas Universidades do espaço da União Europeia “facilmente legíveis e comparáveis” entre si (Leite, 2003a, p. 4), de modo a contribuir para a melhoria da qualidade da educação e a melhorar também as possibilidades de empregabilidade, a nível internacional (Comissão Europeia, 2002, cit. por Leite, 2003a, p. 4) num mundo dinâmico. Possibilita-se, desta foma, a participação plena, no espaço da União Europeia, onde deverá acontecer a livre circulação dos indivíduos e dos bens. Foi nesse sentido e contexto que surgiu o Tratado de Bolonha, um instrumento que pretende “reforçar a cooperação europeia” (Comissão Europeia, 2002, cit. por Leite, 2003a, p. 4), promovendo uma maior uniformização nas qualificações e qualidade de ensino assim como patamares de qualidade mínimos a exigir dos estudantes (Comissão Europeia, 2002, cit. por Leite, 2003a).

O movimento educacional, que provocou e ainda provoca, atualmente, algum debate, a nível internacional, foi desenvolvido numa perspetiva de equidade e verdadeiro “espírito” de União Europeia.

Não podemos esquecer que a Universidade não é apenas um local de conhecimento, mas também de desenvolvimento de competências imprescindíveis a uma vida profissional e social plenas, onde as tecnologias da informação e comunicação têm, igualmente, um papel cada vez mais importante a desempenhar.

Geraldi (2010), ao referir-se às políticas educacionais de avaliação no Brasil, numa perspetiva passível de se ajustar à realidade Portuguesa e não só, refere que as intervenções, ao nível das políticas educacionais, têm procurado remendar apenas, sem considerar as especificidades regionais, inerentes às escolas, professores e heterogeneidade dos alunos. Além disso, muito mais do que a mera transmitissão dos conteúdos ou o ensino de aspetos concretos voltados para as orientações profissionais das escolas, compete à escola a formação integral e multidimensional do indivíduo. Desta forma, a escola influencia a esfera social, cultural, cognitiva, emocional, psicológica, entre outras mais que fazem parte da complexa construção que é o ser humano, habilitando-o, ao mesmo tempo, com as competências necessárias a uma integração plena na sociedade, de uma forma livre e independente, no sentido de uma atuação mais crítica, no meio social (Geraldi, 2010). Pretende-se, assim, uma educação transformadora, escolas com educadores que ajam como atores éticos e foquem a globalidade e heterogeneidade dos indivíduos, equipando-os com conhecimentos e competências que os tornem cidadãos plenos e que possam, simultaneamanente, ser utilizadas nas práticas sociais do quotidiano.

Levanta-se-nos, neste contexto, uma questão: será que a literacia nos remete apenas para a leitura e o texto impresso? Tendo em conta a pluralidade do conceito, como já referimos, no enquadramento teórico do nosso estudo, devemos falar de literacias, isto é, de múltiplas formas de literacia. Nesse sentido, discutiremos, de seguida, os diversos tipos de literacia contemplados na literatura.