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Parte I Enquadramento Teórico

1. O conceito de “literacia” – breve contributo para uma reflexão

1.5. Tipos de literacia

1.5.1. Literacia convencional

Como facilmente se compreende, a partir do que já referimos, a literacia apresenta-se como um conceito multidimensional, influenciado por diversos elementos, nomeadamente aspetos individuais, educacionais, sociais e culturais, entre outros (Commission Scolaire Marie- Victorin, 2004, cit. por Gomes & Lima Santos, 2005). Nesse sentido, ao contrário do que se poderia pensar, caso se optasse por uma abordagem do senso comum, a literacia não é um termo para utilizar isoladamente, devendo, antes, utilizar-se, por exemplo, a expressão “literacia da leitura”. Ainda que esta expressão pareça uma redundância, a verdade é que o termo “literacia” é um conceito mais complexo do que “leitura” ou escrita”, simplesmente.

O conceito de “literacia da leitura” é concebido no documento PISA 2009 Results: Learning to Learn – Student Engagement, Strategies and Practices (Volume III) (OCDE, 2010a, p. 26) como "O leque de situações nas quais as pessoas leem as diferentes formas como o texto escrito se apresenta, e a variedade de abordagens que os leitores têm relativamente aos textos" e ainda no relatório PISA 2009 (Results: Students On Line: Digital Technologies and

Performance) (Volume VI) (OCDE, 2010b, p. 40, tradução nossa) como “(…) compreender, utilizar e refletir sobre textos escritos, de modo a alcançar objetivos próprios, a desenvolver os próprios conhecimentos e potencial, e participar na sociedade” (tradução nossa), ressaltando-se, desta forma, a dimensão social da literacia. Smith (1989, p. 202) refere que “deve haver um ponto no qual os leitores e escritores interagem. Este ponto é o texto (...)". Como verificamos, esta conceção não deixa, também, de sublinhar a vertente social inerente ao fenómeno.

Por outro lado, ser capaz de aprender de forma eficiente é um processo complexo que tem a ver com diversos elementos. Podemos, nesse sentido, citar o relatório PISA 2009 (Results: Learning to Learn – Student Engagement, Strategies and Practices) (Volume III) (OCDE, 2010a, p. 97) que refere o seguinte:

"Para se tornar um aprendiz eficiente, os estudantes precisam de ser capazes de descobrir o que têm de aprender e como alcançar os seus objetivos de aprendizagem. Devem também dominar um largo repertório de estratégias de processamento de informação cognitivas e metacognitivas para serem capazes de desenvolver eficazmente formas de aprendizagem" (tradução nossa).

Mas o mesmo relatório sublinha que isto "Não deverá acontecer à custa do prazer do estudante na leitura e aprendizagem, visto a proficiência ser o resultado de prática e dedicação, ambas associadas a altos níveis de motivação para ler e aprender" (OCDE, 2010a, p. 97, tradução nossa). Assim, é preciso que evitemos focar-nos sobre a aprendizagem formal e o desenvolvimento apenas de competências técnicas de uma forma obsessiva. É, antes, importante ressaltar sempre a relevância da motivação do indivíduo no processo de aprendizagem e de desenvolvimento da literacia.

O estudo PISA 2009 (Results: Learning to Learn – Student Engagement, Strategies and Practices) (Volume III) (OCDE, 2010a) definiu, com base nos dados encontrados sobre hábitos de leitura, nos diversos países participantes, seis perfis de leitores: o primeiro grupo engloba leitores que leem, frequentemente, vários tipos de texto, tendo, ainda, os mesmos, consciência das estratégias de compreensão e resumo de informação; o segundo grupo refere-se aos indivíduos que leem regularmente, mas revistas ou jornais apenas, embora tenham, também, consciência das estratégias de compreensão e resumo de informação; o terceiro grupo, apesar de apresentar também consciência das estratégias de compreensão e resumo da informação, têm práticas de leitura muito limitadas; o quarto grupo conjuga práticas de leitura abrangentes com baixos níveis de estratégias de compreensão e resumo de informação; o quinto grupo conjuga a

leitura regular de revistas e jornais com baixos níveis de estratégias de compreensão e resumo da informação; e, por fim, o sexto grupo apresenta baixos níveis de estratégias de compreensão e resumo de informação, assim como práticas de leitura muito limitadas.

O relatório PISA 2009 Results: Learning to Learn – Student Engagement, Strategies and Practices (Volume III) sobre a literacia da OCDE (2010a) corrobora a relevância da literacia para o progresso social, mostrando que os níveis de iliteracia ao nível da leitura, matemática e ciências estão diretamente relacionados, ao nível de desenvolvimento humano, com aspetos como a democracia e as assimetrias sociais. Como salienta Pinto (2010a, p. 27), o termo “literacia” abarca aspetos como a preocupação com o futuro, isto é, com as competências para lidar com os desafios do futuro e com o desenvolvimento da aprendizagem ao longo da vida.

De acordo, ainda, com o mesmo documento, desenvolvido pela OCDE (2010a, p. 26, tradução nossa), "a capacidade de transmitir informação por escrito e oralmente é um dos grandes feitos da humanidade". É, assim, destacada a importância das tarefas na evolução das sociedades.

Por outro lado, Pinto (2010a, p. 27) refere que, no documento “Measuring student knowledge and skills: A new Framework for assessment”, lançado pela OCDE em 1999, a escolha do termo “literacia” é justificada, ao contrário do que acontece com a palavra “leitura”: “A leitura é frequentemente percebida como simplesmente descodificar, ou ler em voz alta, enquanto a intenção deste estudo é medir algo mais abrangente e profundo. O foco encontra-se na aplicação da leitura em várias situações para diversos propósitos” (2010a, p. 27). Podemos, assim, concluir que “literacia”, para além de ter um valor multidimensional, é um termo mais abrangente do que “leitura”.

Nas últimas décadas, a literacia tem sido objeto de muito interesse, na literatura científica. Toda a literatura que introduziu este conceito, a nível científico, apresentou diferenças culturais significativas. Assim, os países desenvolvidos como os E.U.A. e a França trataram questões para lá da mera alfabetização, tendo, nesse sentido, procurado conhecimentos que promovessem a leitura e a escrita para as práticas sociais. Por seu lado, a investigação no Brasil focou-se, essencialmente, na questão da alfabetização, isto é, no domínio das competências de leitura e escrita, a tal ponto que Soares (2004a, p. 7) afirmou que “os termos alfabetização e letramento se superpõem e até se confundem”. Esta concetualização levou a que a investigação sobre a

literacia na comunidade científica brasileira tenha sido, de alguma forma, limitada pela associação e, até mesmo, sobreposição do conceito à alfabetização.

Na realidade brasileira, a maioria dos estudos centraram-se, inicialmente, na alfabetização pura, concebida como “ensino-aprendizado do sistema alfabético de escrita” (Micarello, Tavares & Santos, s/d, p. 2), com a preocupação com aspetos como a utilização de métodos sintéticos ou analíticos, descritos, também, como métodos tradicionais (Rego, 2006).

Ao mesmo tempo, a noção tradicional da alfabetização, fortemente vigente, até aos anos 80, na sociedade brasileira, e, ainda hoje, presente em muitas abordagens educativas, previa a utilização de estímulos externos para o ensino da escrita, tendo como objetivo central a aprendizagem do sistema escrito, que assim lançaria as bases sobre as quais a criança poderia então desenvolver as suas competências de leitura e escrita. Assim, desenvolver as competências necessárias para a compreensão do sistema linguístico precederia a atribuição de sentido e compreensão de textos, que, no fundo, seria a verdadeira leitura (Soares, 2004b).

O trabalho de Emília Ferreiro (Ferreiro & Teberosky, 1985) foi um dos primeiros passos fundamentais para desvanecer esta separação rígida entre aprender a ler e a escrever e compreender textos, tendo, desta forma, estendido o horizonte a novas concetualizações do processo de aprendizagem. Foi então possível compreender melhor o processo de alfabetização e reconhecer que as condições ótimas para o desenvolver abrangem, de acordo com Soares (2004b), a valorização da interação da criança com materiais e práticas comuns de leitura e de escrita, que contextualizem estas aprendizagens no seu quotidiano normal.

Na realidade portuguesa, o termo “literacia” conheceu ampla divulgação, durante a última década do século XX, com diversos trabalhos (Benavente (org) et al., 1996; Costa & Ávila, 1998) que fugiram à tendência, predominante, até então, de analisar somente a escolarização e a alfabetização. Destaca-se, aqui, o estudo “A Literacia em Portugal: Resultados de uma pesquisa extensiva e monográfica”, coordenado por Ana Benavente, cuja linha orientadora é o objetivo de averiguar sobre a utilização de conhecimentos em situações do quotidiano, assentando o estudo na perspetiva de literacia enquanto “capacidade de processamento da informação escrita na vida quotidiana” (Benavente (org) et al, 1996, p. 4).

Este estudo (Benavente et al., 1996, p. 396) concluiu que “muitos adultos têm sérias dificuldades de processamento da informação escrita, que lhes diminuem a capacidade de participação na vida social, em planos como os do exercício da cidadania, das possibilidades

profissionais e do acesso à cultura”. De facto, ao considerar a diferença entre a alfabetização e a literacia, Ávila (2007, p. 308) entende, a esse propósito, que

“os défices de escolarização que afetam a grande maioria da população são reforçados e agravados por níveis de literacia desses mesmos indivíduos ainda mais baixos do que aquilo que seria de prever, o que leva a que as desigualdades sociais neste campo específico sejam das mais elevadas entre os países estudados”.

A abordagem cognitivo-psicológica foca-se no indivíduo e nas suas competências, pelo que os estudos realizados, na perspetiva desta abordagem, maioritariamente assentes nos métodos quantitativos, permitiram-nos a compreensão de perfis de literacia. Por seu lado, a abordagem social, de acordo com Ávila (2008), baseia-se na noção do indivíduo, no seu contexto social, sendo a metodologia qualitativa a preferida. Apesar das distinções de relevo entre os dois estudos, vale a pena recorrer a ambos para melhor compreender não apenas o enquadramento teórico alargado, que contextualiza estes temas, mas também as realidades cruas existentes em diversas culturas.

Assim, os primeiros estudos de caráter quantitativo realizados nos E.U.A. concluíram que cerca de 30 milhões de cidadãos apresentavam dificuldades ao nível da literacia. Esta situação deu origem a uma declaração da National Comission on Excellence in Education, denominada “A Nation at risk” (1984), que descreve e analisa a realidade que o estudo havia verificado.

Outro estudo, denominado International Adult Literacy Survey (IALS), realizado com o apoio da OCDE, iniciado em 1994, cujo relatório foi publicado, em 2000, abrangeu vinte e dois países (Canadá, Alemanha, Irlanda, Holanda, Polónia, Suécia, Suíça, EUA, Austrália, Bélgica, Grã-Bretanha, Nova Zelândia, Irlanda do Norte, Chile, República Checa, Dinamarca, Finlândia, Hungria, Itália, Noruega, Eslovénia e Portugal) e analisou aspetos relativos à literacia em prosa, literacia documental e literacia quantitativa, tendo permitido a criação de perfis de literacia comparativos entre os diversos países. Esses resultados, presentes no relatório Literacy in the Information Age: Final Report of the International Adult Literacy Survey (2000), permitem concluir pela existência de divergências significativas não apenas ao nível da comparação de países, mas também dentro dos próprios países.

Enquanto no relatório PISA 2009 (Results: Learning Trends: Changes in Student Performance Since 2000) (Volume V) Portugal apresentou um dos valores mais baixos de desempenho na leitura dos países contemplados no estudo (OCDE, 2010c), a análise comparativa realizada com os dados de 2009 indica que as reformas educativas, implementadas, desde então,

nomeadamente a avaliação no 6º e 9º anos, a promoção de mais cursos profisionais, entre outras políticas, denotam um processo de melhoria educacional, referindo-se o relatório, em particular, ao facto de ser o único país no estrato da média da OCDE ou acima desta média que apresentou melhorias nas três áreas de avaliação contempladas no PISA: leitura, ciência e matemática. De facto, o estudo PISA 2009 (Results: LearningTrends: Changes in Student Performance Since 2000) (Volume V) (OCDE, 2010c) verificou que vários países apresentaram melhorias ao nível da leitura, quando comparados com os valores encontrados no estudo em 2000. Na verdade, metade dos vinte e seis países passíveis de dados comparativos (isto é, os dados válidos analisados, no estudo, em 2000, e os dados analisados, agora, em 2009) apresentou valores superiores aos encontrados, em 2000, sendo de sublinhar o aumento particularmente significativo, a esse nível, do Chile, Israel, Polónia, Perú, Albânia, e Indonésia; o aumento um pouco inferior, mas, ainda assim, bastante significativo de Portugal, Coreia, Hungria, Alemanha, Brasil e Liechtenstein. Em particular, as melhorias em Portugal verificaram-se nos estudantes com baixos níveis de sucesso, tendo-se registado a respetiva manutenção nos estudantes com altos níveis de desempenho na leitura; no Brasil, verificou-se uma melhoria nos estudantes com altos níveis de desempenho e a manutenção nos alunos com um baixo nível de proficiência.

Pode refletir-se sobre se e quando é que estes processos de desenvolvimento da literacia começaram a apresentar-se mais morosos e difíceis nesses indivíduos que apresentam dificuldades evidentes, registadas pelos estudos como o PISA. Nesse sentido, importa, assim,relembrar que a literacia se constrói, desde cedo, até mesmo, desde o nascimento. A criança aprende, continuamente, num processo gradual que tanto apoiado e encorajado, como negligenciado pode ser vítima, inclusivamente, de obstáculos que marcarão o percurso de literacia do indivíduo, de uma forma significativa.

Para se pensar, mais aprofundadamente, sobre as questões relativas à literacia, que se inicia cedo no desenvolvimento da criança, assim como sobre os aspetos que giram em torno dela, é necessário refletir sobre o conceito de literacia emergente.