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Parte I Enquadramento Teórico

1. O conceito de “literacia” – breve contributo para uma reflexão

1.1. Literacia e alfabetização: algumas diferenças e complementaridades

Tendo o presente estudo como um dos alicerces o termo literacia (ver p. 25), é forçoso que comecemos por focar a literacia como um conceito puro, de modo a que este seja plenamente compreendido, no sentido de podermos avançar, a partir daí, para conceitos e enquadramentos teóricos a ele associados.

Refletir sobre literacia é algo complexo, visto que o processo de literacia é caraterizado por uma grande variabilidade, tendo em conta que, de acordo com Pinto (2008, p. 83), o mesmo

varia de pessoa para pessoa e de acordo com o nível de educação formal, e, até mesmo, com o nível de contacto que o indivíduo tem com o texto impresso, durante a sua vida.

Segundo o relatório PISA 2009 Results: Learning to Learn – Student Engagement, Strategies and Practices (OCDE, 2010a, p. 17), a literacia "Refere-se à capacidade de os estudantes aplicarem os conhecimentos e competências em áreas-chave e analisarem, refletirem e comunicarem efetivamente como colocam, interpretam e resolvem problemas numa variedade de situações".

Este conceito sublinha, assim, a aplicação dos conhecimentos a aspetos práticos do quotidiano e salienta, ao mesmo tempo, a questão interativa do indivíduo enquanto parte integrante do meio, com o qual comunica e no qual participa e exerce a sua influência.

Parece existir pouca necessidade de concetualizar o termo “alfabetização”, visto não ser este um conceito polémico (Soares, s/d, pp. 1-2), ao contrário do termo “literacia”, que encerra em si uma pluralidade de conceções que lhe estão associadas (ver p. 4), desde a sua introdução, tem sido objeto de muito debate, reflexão e investigação, faltando, ainda, por isso, chegar a um consenso relativamente ao mesmo.

Cervero (1985, cit. por Harris & Hodges, 1995, p. 140) refere que, apesar da impossibilidade de acordar com uma definição consensual para o termo "literacia", esta não deixa de ser necessária. De facto, o termo "literacia" tem sido objeto de muito debate e várias definições têm sido apresentadas, ao mesmo tempo que diversos fatores e dimensões têm sido contemplados nesta procura por uma conceção mais consensual que enquadre o termo em moldes rígidos que possam ser objeto de literatura específica, clarificando e aprofundando os conhecimentos atuais na área.

Scribner (1984, cit. por Harris & Hodges, 1995, p. 140) recorre a três imagens para nos transmitir a sua conceção de literacia: "A literacia pode ser vista como uma adaptação a expectativas sociais, poder para realizar as aspirações do indivíduo e influenciar a mudança social, ou um estado de graça a ser alcançado por uma pessoa lida e culta" (tradução nossa). Kleiman (1998, p. 181) considera, por seu lado, a literacia "um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos". Soares (2008, p. 3) concebe a literacia da seguinte forma: “Letramento é o estado em que vive o indivíduo que não só sabe ler e escrever, mas exerce as práticas sociais de leitura e escrita que circulam na sociedade em que vive”.

Uma das primeiras reflexões sobre a literacia, que a distingue precisamente, da alfabetização, surgiu com Tfouni (1995 p. 38). Esta autora defende que a literacia é "um processo, cuja natureza é sócio-histórica" (Tfouni, 1995, p. 31), considerando, mais adiante, que "o facto de o letramento poder atuar indiretamente, e influenciar até mesmo culturas e indivíduos que não dominam a escrita", o que "mostra que o letramento é um processo mais amplo do que a alfabetização, porém intimamente relacionado com a existência e influência de um código escrito" (Tfouni, 1995, p. 31).

A distinção entre literacia e alfabetização é realizada com base no caráter individual da alfabetização e o social da literacia, focado em aspetos socio-históricos associados à aprendizagem da escrita e sistema de escrita uniformizado adotado na sociedade (Tfouni, 1995, p. 31).

Os conceitos de alfabetização e literacia distinguem-se também, ao nível da fluidez e da dinâmica, não fosse ser o primeiro referente a “um conhecimento obtido, estável” e o segundo a “um conhecimento processual em aberto” (Silva, 2007, p. 4).

Mais especificamente, a literacia, na linha de pensamento de Sebastião Ávila e outros (s/d, p. 2), poderá ser considerada “a capacidade de processamento, na vida diária (social, profissional e pessoal), de informação escrita de uso corrente contida em vários materiais impressos (textos, documentos, gráficos) ”, caraterizando-se, essencialmente, por dois aspetos “por permitir a análise da capacidade efetiva de utilização na vida quotidiana das competências de leitura, escrita e cálculo” e “por remeter para um contínuo de competências que se traduzem em níveis de literacia com graus de dificuldade distintos” (Ávila e al., s/d, p. 2).

A questão dos níveis de alfabetização é também abordada por Tfouni (1995, p. 16), assim como os níveis de literacia. Em relação a estes últimos, a mesma estudiosa defende que o termo "iletrado" não pode ser usado como antítese de "letrado”. Isto é, não existe, nas sociedades modernas, o letramento "grau zero", que equivaleria ao "iletramento". Do ponto de vista do processo sócio-histórico, o que existe de facto nas sociedades industriais modernas são "graus de letramento", sem que com isso se pressuponha sua inexistência" (Tfouni, 1995, p. 23).

Tal como é salientado por Harris e Hodges (1995, p. 142), a necessidade de criar níveis de literacia levou ao desenvolvimento de termos como "literacia funcional", "literacia marginal", "literacia de sobrevivência" e "semi literacia". Nesta perspetiva, “a literacia seria decorrente da

escrita numa sociedade, passando a escrita a ser o produto cultural por excelência" (Tfouni, 1995, p. 10).

Na visão de Kleiman (1998, p. 181), o termo literacia refere-se às “práticas e eventos relacionados com o uso, função e impacto social da escrita”.

No entanto, se é verdade que a literacia e a alfabetização são termos distintos, importa também salientar a posição de Soares (2004a, p. 16), que considera um erro dissociar alfabetização de literacia, considerando-os processos interdependentes, tendo em conta que, na sua ótica, a alfabetização se desenvolve num contexto de literacia. Assim, Soares (2004b) conclui-se que se deverá

“alfabetizar letrando, ou letrar alfabetizando, pela integração e articulação das várias facetas do processo de aprendizagem inicial da língua escrita, é, sem dúvida, o caminho para a superação dos problemas que vimos enfrentando nesta etapa da escolarização.” (p. 22)

Para melhor ilustrar a diferença entre o conceito de alfabetização e o de literacia, podemos recorrer a Tfouni (1995), que preconiza que a "alfabetização refere-se à aquisição da escrita, já o letramento foca os aspetos sócio históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade" (p. 9). Por seu lado, Soares (2003, p. 16) lembra que, apesar de a alfabetização e a literacia serem conceitos interdependentes, são dois conceitos distintos.

No entanto, esta mesma distinção nem sempre é aceite. Com efeito, alguns autores consideram existir um processo de aprendizagem que, para além de englobar a compreensão do sistema alfabético, implica também ter a noção da sua utilidade em contexto social (Gadotti, 2005; Micarello, Tavares e Santos, s/d).

Nesse contexto, o nosso estudo parte do pressuposto que “alfabetização” e “literacia” são conceitos distintos em vários aspetos. Ou seja, são conceitos diferentes, no que diz respeito aos objetos de conhecimento, aos processos cognitivos e linguísticos envolvidos na aprendizagem e também ao modo de ensino (Soares, 2004b, p. 19).

Micarello, Tavares e Santos (s/d), por seu lado, concebem a literacia, de acordo com o Caderno de Apoio Pedagógico do PTL (2007), como

“um processo contínuo de inserção do sujeito no mundo letrado, isso significa compreender que, independentemente do domínio do código linguístico, todos os sujeitos, em diferentes níveis, constroem suas próprias estratégias de inserção nas práticas sociais, logo, criam seus próprios meios de interpretar os eventos de letramento mediados pela escrita.” (p. 3).

Segundo Soares (s/d, p. 2), a literacia inclui competências, como é, por exemplo, o caso da competência de leitura e escrita, de modo a alcançar objetivos diversos; competências para compreender e produzir textos de vários tipos e géneros; competências relativas à inserção no mundo da escrita, sentindo motivação e prazer na leitura e na escrita, que possibilite, ao mesmo tempo, a adaptação da escrita e da leitura ao contexto do texto, entre outras.

A literacia abarca então as competências de leitura e escrita e, em particular, o conhecimento relativo à associação entre símbolo e som e a consciência fonológica. No entanto, é mais do que isso.

Numa explicação clara e pragmática, Soares (2008, p. 1) observa que "Se uma criança sabe ler, mas não é capaz de ler um livro, uma revista, um jornal, se sabe escrever palavras e frases, mas não é capaz de escrever uma carta, é alfabetizada, mas não é letrada".

Mas, como recorda Soares (2004b, p. 2), apesar de distintos, a literacia e a alfabetização são conceitos “indissociáveis e interdependentes”. Na verdade, a alfabetização só ganha sentido, se ocorrer num contexto de práticas sociais e através dessas mesmas práticas sociais. Isto é, ocorrem num contexto de literacia e através de atividades de literacia. A literacia, por seu lado, depende e é mediada pela aprendizagem da escrita.

1.2. Ensino e aprendizagem da leitura e da escrita e respetiva repercussão no