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Parte I Enquadramento Teórico

1. O conceito de “literacia” – breve contributo para uma reflexão

1.5. Tipos de literacia

1.5.2. Literacia emergente

O conceito de “literacia emergente” é fruto de um processo evolutivo, que Sulzby e Teale (1991, p. 727) focam bem, no nosso entender. Ambos os especialistas sublinham a necessidade

de encontrar um acordo relativamente a uma expressão que pudesse incluir os conceitos denominados por diversos autores de formas distintas, designadamente “literacia precoce”, “consciência metalinguística” ou “literacia antes da escolarização” (Teale, 1991, p. 727).

Neste contexto, surge a expressão “literacia emergente”, que se torna um tema de investigação predominante na área da literacia e que apresenta, até aos dias de hoje, bastante potencial ao nível da pesquisa e, mais importante, ainda, talvez, uma forte aplicabilidade prática. Silva (2010, p. 141) salienta que o “processo de aquisição da leitura tem sido investigado à luz de perspetivas diversificadas, atraindo para si a atenção de pesquisas das áreas psicológica, psicolinguística, linguística, e sociolinguística”.

A noção de literacia emergente contraria a abordagem “Reading readiness”, inspirada no trabalho de Arnorld Gesell (1940, cit. por Cardoso, 2009, p. 15), que vigorava, até aos meados dos anos 70 do século passado. Esta abordagem, de acordo com Teale e Sulzby (1986, cit. por Goelman, Andersen, Anderson, Gouzouasis, Kendrick, Kindleret al, 2003), postulava que o ensino da leitura só faria sentido quando a criança atingisse um certo nível de desenvolvimento perceptual e motor e alcançasse uma determinada idade mental, defendendo, ao mesmo tempo, que o ensino da escrita só seria possível depois de a criança aprender a ler (Goelman, et al., 2003). Assim, antes de a criança atingir este nível de desenvolvimento, alcançado por volta dos seis anos de idade, qualquer tentativa de leitura iria desmotivá-la através da frustração (Cardoso, 2009).

O trabalho de Ferreiro e Teberosky (1985), assente numa perspetiva piagetiana, verificou que as crianças formulam hipóteses sobre a representação do discurso através da escrita, num processo que varia, gradualmente, em consonância com o desenvolvimento de conhecimentos. Porquê “literacia emergente”? Sulzby (1985, cit. por Cardoso, 2009, p. 16-17) procura explicar o uso da expressão da seguinte forma: “Optei por usar os termos literacia emergente, escrita emergente e leitura emergente para os distinguir da literacia escrita e leitura convencionais. Usei o termo emergente para indicar que os comportamentos precoces são importantes e são comportamentos verdadeiros de escrita e leitura, que se desenvolvem na direção da escrita e leitura convencionais”.

Nesse sentido, no âmbito da “literacia emergente”, afigura-se, no entender de Roskos e Christie (2007, cit. por Pinto, 2010a, p. 28), a necessidade de uma educação precoce, pré-escolar, de modo a que, aquando da entrada na escola, a criança já tenha não apenas motivação para

aprender, mas também competências desenvolvidas que a conduzam a uma aprendizagem de sucesso. Assim, literacia emergente é descrita por Sulzby (1989, cit. por Sulzby & Teale, 1991, p. 728, tradução nossa) como “Os comportamentos de leitura e escrita que precedem e se desenvolvem em literacia convencional”.

Esta concetualização baseia-se na crença de que o processo de literacia começa bastante cedo na vida da criança, podendo mesmo iniciar-se no primeiro ano de idade, de acordo com Sulzby e Teale (1991). De facto, como salientam ambos os autores, podemos compreender a importância da literacia emergente, se adotarmos uma abordagem que considere apresentar a criança, desde cedo, uma predisposição específica para a literacia, sendo o papel do adulto apenas o de apoiar e orientar o processo. Desta forma, evidencia-se que a criança tenha ao seu dispor artefactos e atividades que levem ao desenvolvimento da literacia. No âmbito da aprendizagem da leitura precoce, é, assim, importante fomentar o gosto pela leitura, sendo vários os exemplos de práticas que poderão facultar à criança o desenvolvimento de emoções positivas, relativamente à leitura.

Segundo Girolami (2006), Girolami-Boulinier (1993) e Pinto e Veloso (2006) (cit. por Pinto, 2010a), o contacto com o texto impresso é fundamental para que a criança se prepare para as atividades de leitura, o que poderá influenciar todo o seu desenvolvimento intelectual, posteriormente. As práticas de leitura precoce deverão acompanhar aquilo que interessa e motivar a criança.

No entender de outros autores (Girolami-Boulinier & Cohen Rak, 1985; Pinto, 2005b; cit. por Pinto, 2010a), um dos exemplos de práticas de leitura eficazes parece ser a leitura indireta, que consiste em ler um texto com respeito a grupos de sentido e a um ritmo que permita a compreensão plena da significação. Segundo Girolami-Boulinier (1993, cit. por Pinto, 2010a), para que a criança possa repetir aquilo que ouve, importa que se mantenham as doses de leitura (repetição) de acordo com aquilo que a criança é capaz de reter e com uma duração que não permita que a criança se aborreça ou fique cansada, acabando, deste modo, por perder a motivação (Pinto, 2010a).

Na perspetiva de Pinto (2010a), a prática da leitura indireta permite trabalhar a articulação das palavras, graças, sobretudo, ao feedback recebido pelo adulto/ professorrelativamente aos aspetos fonológicos, e à experiência de articular vocabulário desconhecido. Nesse sentido, o feedback recebido é, ainda, mais importante para enriquecer o

vocabulário da criança. Pinto (2010a) sublinha que outros aspetos, tais como a perceção das normas gramaticais e as competências narrativas, são, também, contemplados nesta prática de leitura.

Outros estudiosos sublinham alguns aspetos de particular relevância para a concetualização da literacia emergente, designadamente a ”consciência fonológica”, a “orientação para o material impresso”, “a compreensão das histórias” e a “motivação para a leitura” (Baker, Serpell & Sonnenschein, 1995, cit. por Cruz, 2011, p. 28). São ainda, de acordo com a sistematização feita por Justice e Kaderavek (2002, cit. por Cruz, 2011, p. 28-29), destacados os seguintes pontos na literacia emergente: “i) as funções do impresso enquanto mecanismo de comunicação; ii) a estrutura dos sons da linguagem oral, também denominada consciência fonológica; iii) o nome das letras e as convenções da escrita; iv) o vocabulário utilizado para descrever os construtos literácitos, tais como a noção de palavra e de frase” (Justice e Kaderavek, 2002, cit. por Cruz, 2011, pp. 28-29).

Além disso, a literacia emergente é entendida por Gomes e Lima Santos (2005) como um processo de pré-escolarização que permite instituir as bases para o desenvolvimento posterior do conhecimento e das competências, valendo-se, para isso, de experiências e interações associadas à linguagem, como é, por exemplo, o caso da leitura de livros de histórias infantis. Nesse sentido, é esta, no entender de Smith e Dickinson (2002, cit. por Gomes & Lima Santos, 2005), a primeira etapa no desenvolvimento da literacia, que permite não apenas o primeiro contacto com a linguagem, falada e escrita, mas também o desenvolvimento de aptidões ligadas às tarefas de leitura e de escrita. A criança começa, assim, a tomar consciência do material impresso, podendo desenvolver comportamentos de leitor e escritor, a refletir sobre a linguagem escrita e a sua associação com a linguagem oral e a começar a compreender a linguagem como um meio de comunicação (Commission Scolaire Marie-Victorin, 2004, cit. por Gomes & Lima Santos, 2005).

A linguagem escrita e oral estão, necessariamente, interligadas nessa etapa, e a criança apercebe-se rapidamente disso. Como afirmam Roskos, Christiee Richgels (2003, p. 54), “As crianças precisam da escrita para as ajudar a aprender sobre a leitura, precisam da leitura para os ajudar a aprender sobre a escrita e precisam da linguagem oral para as ajudar a aprender sobre ambas” (tradução nossa). O estado de arte exitente (Roskos, Christie & Richgels, 2003) tem,

efetivamente, verificado a importância que estas experiências de literacia têm no desenvolvimento da aprendizagem.

Smith e Dickinson (2002, cit. por Gomes & Lima Santos, 2005) sistematizaram a literacia emergente com a introdução de quatro pressupostos, alegadamente, subjacentes ao processo: a literacia é um processo contínuo que se inicia precocemente na ausência da instrução formal; as competências associadas à linguagem falada, leitura e escrita são desenvolvidas gradual e concomitantemente, visto estarem fortemente interligadas; a literacia desenvolve-se com a utilização da fala, leitura e escrita, em diversas situações, nomeadamente ao interagir com o outro; as competências desenvolvidas, precocemente, antes de instrução formal, influenciam o desenvolvimento da literacia, ao longo do percurso de vida do indivíduo. Assim, a literacia emergente estabelece, como observa Rosenkoetter e Barton (2002, cit. por Gomes & Lima Santos, 2005), as bases que permitirão à criança adquirir as competências necessárias para as duas tarefas fundamentais necessárias ao desenvolvimento da literacia, isto é, a descodificação/codificação e a compreensão.

No entanto, importa salientar que a literacia emergente não é nem deverá ser entendida como um método formal de ensino, que deve acontecer apenas na fase de escolarização. Aquilo que o conceito de literacia emergente visa será, antes, apoiar e orientar o processo de aquisição de competências e o desenvolvimento natural da criança, procurando que este seja, o mais possível, positivo e rico, com vista ao sucesso escolar, aquando da efetiva escolarização. Encarar o processo de literacia emergente como um processo de ensino formal poderá, segundo Gomes e Lima (2005), ser nocivo para o progresso da criança. Estas duas autoras (2005) sistematizam dez aspetos que consideram estar na base da leitura e da escrita e, portanto, da literacia emergente: conhecimento geral; conhecimento de linguagem falada; compreensão de linguagem descontextualizada; compreensão de textos de vários tipos; consciência fonológica; consciência do impresso; conhecimento do código; competências de escrita, tais como a pré-escrita e a escrita do próprio nome; competências de leitura, nomeadamente a leitura em voz alta; jogos de literacia.