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Parte I Enquadramento Teórico

3. O currículo da conceção à implementação no Brasil e em Portugal

3.4. O currículo e a literacia

Nesse sentido, Gimeno (2000, p. 46) argumenta que a visão de Tyler "foi decisiva e estabeleceu as bases do que tem sido o discurso dominante nos estudos curriculares e nos gestores da educação (...), da inspeção, da formação de professores, etc.", sendo de sublinhar também que a gestão e a implementação do currículo não devem perder de vista a literacia, sob pena de não cumprir, de forma eficaz, as diversas metas que se propõe alcançar no ensino.

A este respeito, a OCDE no documento A escola e a qualidade. (1992, p. 126) salienta que se pretende

"professores que velem pelo desenvolvimento geral das crianças, tanto psicológico, físico e social como puramente intelectual, ainda que esta exigência varie de país para país, como o mostraram vários estudos comparativos recentes".

Esta afirmação mostra-nos que é preciso que a literacia seja mais do que um conceito teórico, ao mesmo tempo que necessita de ser inscrita nos currículos, de uma forma demarcada, como exige a sociedade atual. Além disso, a afirmação mostra-nos, ainda, a complexidade da responsabilidade do docente, que, para lá de transmitir conteúdos associados à sua área científica particular, apoia o aluno no seu desenvolvimento global, preocupando-se com o seu bem-estar psicológico, físico e social. Não é, por exemplo, possível aceitar que professores se foquem apenas no ensino da multiplicação, completamente alheios a um ambiente familiar violento, a situações de maus tratos ou à vivência de experiências de “bullying”.

De um ponto de vista mais multicultural, podemos também salientar a abordagem da educação de indivíduos de outras etnias e culturas, que, frequentemente, critica a pouca motivação dos alunos, a falta de empenho, o absentismo significativo e, logo, o mau aproveitamento, sem considerar a especificidade de cada cultura. Compete, por isso, aos docentes, à comunidade escolar e ao Governo esforçarem-se mais por compreender e abarcar estas particularidades nos seus currículos. Mais concretamente, o docente deve ser mais dinâmico e promover estratégias e metodologias de ensino que possam ter impacto numa população para quem o conhecimento tem um papel muito diverso do dito conhecimento normativo.

A preocupação com a literacia verifica-se também, por exemplo, nos princípios basilares do ensino básico: a universalidade, no sentido de todos os cidadãos terem direito a determinado nível de educação; a obrigatoriedade, no sentido de ser necessário que o cidadão tenha um nível de educação considerado essencial para que possa desempenhar os seus papéis no meio social em que se insere; a sociabilidade, que foca, em particular, a questão da escola enquanto lugar de sociabilidade, de aprendizagem de valores e normas sociais, fundamentais para uma plena cidadania (ver Pacheco, 1995).

De acordo com Moreira e Candau (2003), na atualidade, numa sociedade consciente e focada no multiculturalismo, nomeadamente em países onde a diversidade cultural é significativa

como é, por exemplo, o caso do Brasil –, é importante que a definição do currículo tenha em consideração uma grande diversidade de aspetos, que obrigam, em particular, o professor a repensar as suas atitudes e comportamentos pedagógicos, e a adaptar-se, constantemente, às exigências que lhe surgem, na sala de aula.

Segundo Moreira (2001a), o currículo tem sido encarado de diversas formas. Ou seja, salienta-se quer a questão dos conteúdos, quer a das experiências de aprendizagem, quer a planificação, os objetivos, as competências, e, até mesmo, a questão da avaliação.

Moreira (2001a, p. 5) associa a questão do currículo, no Brasil, à formação de identidades, afirmando, a esse propósito, que “O currículo é visto como território em que ocorrem disputas culturais, em que se travam lutas entre diferentes significados do indivíduo, do mundo e da sociedade, no processo de formação de identidades”. Ao mesmo tempo, o autor questiona-se sobre essas mesmas identidades que se pretende que os currículos desenvolvam, nomeadamente se estas são uniformizantes ou devem ter em conta a multiplicidade cultural existente.

Moreira (2001b) salienta alguma literatura científica na área do currículo e do multiculturalismo, particularmente estudos sobre a educação a vários níveis, em indivíduos negros (Candau & Anhora, 2000; Gomes, 1996; Santana, 2000; Santos, 1997; Silva, 1999; Souza, 1997, cit. por Moreira, 2001b, p. 68); na população indígena (Campos, 2000; Côrtes, 1996; Gomes, 2000; Monte, 2000; Silva, 1999, cit. por Moreira, 2001b); na população cigana (Ferreira, 1998; Gomes, 1999, cit. por Moreira, 2001b).

Moreira destaca, também, o estudo de Paraíso (1997, cit. por Moreira, 2001b) que foca o debate sobre o racismo na formação dos professores, em quatro trabalhos sobre a formação do professor com um foco no multiculturalismo (Canen,1997, 1999; Gomes, N. L., 2000; Pinto, 1999, cit. por Moreira, 2001b, p. 70) e o estudo de Valente (1998, cit. por Moreira, 2001b) sobre a educação e o papel que a amesma desempenha na diversidade étnica.

Sobre esta questão da multiculturalidade, Moreira e Candau (2003, p. 161) lembram que “a escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneização e a padronização. No entanto, abrir espaços para a diversidade, a diferença e para o cruzamento de culturas constitui o grande desafio que é chamada a enfrentar”.

Os dois autores (Moreira & Candau, 2007, p. 41) acrescentam, ainda, que é importante “tornar o currículo um espaço de crítica cultural”, sendo, para isso, necessário introduzir manifestações de cultura popular na escola.

Dir-se-ia que, em sociedades tão multiculturais como o é a brasileira, para além dessa abordagem não ter em conta o estado de arte rico, relativamente à educação multicultural, que se tem desenvolvido na área das Ciências da Educação parece também um contrasenso fomentar uma uniformização. Assim, tendo em conta que o currículo tem necessariamente uma caraterística uniformizante, é importante que esta não seja preponderante nem impeditiva da valorização de identidades pessoais, sociais e culturais diversas.

De acordo com Santos (2003a, p. 33), contudo, não se verifica, no desenvolvimento dos currículos, uma abordagem multicultural progressista e "as versões emancipatórias do multiculturalismo baseiam-se no reconhecimento da diferença e do direito à diferença e da coexistência ou construção de uma vida em comum além de diferenças de vários tipos".

No caso da classe social, Moreira (2001b, p. 71) salienta o estudo de Hage (1996, cit. por Moreira, 2001b, p. 71), que abordou um projeto pedagógico voltado para crianças de estrato social baixo e argumentou a necessidade de “uma prática educativa transformadora e emancipatória”, onde a comunicação e a empatia sejam fomentados, numa perspetiva democrática e de articulação com outras instituições e elementos da sociedade.

Nota-se, portanto, uma lacuna naquilo que Connell (1993, cit. por Moreira e Candau, 2003, p. 157) descreve como justiça curricular, considerando que esta forma de justiça deverá estar alicerçada em três bases: os interesses dos mais desfavorecidos; a participação e ensino escolar comuns; os resultados do percurso histórico em prol da igualdade. Assim, a justiça curricular seria avaliada pela capacidade ou não das estratégias e práticas de ensino originarem menor desigualdade no âmbito da rede social em que o sistema educativo se insere. Moreira e Candau (2003, p. 157), por seu lado, sugerem uma maior abrangência do termo 'justiça curricular': "a proporção em que as práticas pedagógicas incitam o questionamento às relações de poder que, no âmbito da sociedade, contribuem para criar e preservar diferenças e desigualdades".

Pode, então, compreender-se de que modo o currículo é um instrumento da literacia, ao delinearem-se percursos educativos e ao construí-lo de acordo com aquilo que se espera que sejam as competências necessárias para que os alunos se tornem cidadãos completos e capazes

de mobilizar os seus conhecimentos no quotidiano, com vista a interagirem socialmente e, assim, tornarem-se elementos ativos da sociedade em que se inserem.

Para garantir, o mais possível, o alcance deste e de outros objetivos, é importante mobilizar diversos mecanismos e procedimentos, no ensino, que possam, de alguma forma, contribuir para o sucesso escolar. É o caso, por exemplo, da avaliação da prática docente, que visa, sobretudo, apurar e regular a qualidade de ensino.

A atividade docente é de tal forma complexa que Le Boterf (1997, pp. 37- 94) descreve seis competências, apoiadas no saber e no conhecimento, que devem ter os profissionais de profissões mais difíceis, como é, por exemplo, o caso dos professores: saber agir adequadamente; saber mobilizar conhecimentos adequados ao contexto; saber articular conhecimentos; saber transpor; saber aprender; saber realizar as suas tarefas com empenho.

4. O papel e a importância da formação dos professores para a construção de uma literacia