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Ênfases finais

No documento Bem comum: público e/ou privado? (páginas 144-147)

A Shoah, como representação do pior dos mundos possíveis, pode ser considerada na sua historicidade específica como um evento que atingiu um contingente particular e expressivo de seres humanos. Com efeito, tal ângulo parece ser compulsório: como recusar a fenomenologia do so- frimento, os semblantes dos internos nos campos de extermínio, a visão das pilhas de corpos, das câmaras de gás, dos fornos crematórios? Mas, por outro lado, a atenção a tal dimensão fenomenológica – que diz da singularidade e da historicidade específica do evento – deve estar asso- ciada à busca de inteligibilidade de algo que pode ser designado como a forma Shoah, caracterizada por uma perversa combinação entre concen- tração completa de recursos de poder e vitimização, por parte dos per- petradores, e ausência de previsibilidade, tal como nas simulações acima aludidas.

A combinação entre assimetria e imprevisibilidade revela um cenário no qual detentores exclusivos dos recursos de poder e de vitimização podem exercê-los ilimitada e discricionariamente. Tal cenário configura o pior dos mundos possíveis. Em termos históricos, a Shoah foi o primeiro experimento no qual tal combinação se deu de forma continuada, por meio de uma «inovação institucional»: o campo de extermínio, uma forma continuada e sedentarizada de matar.

Compreender a forma lógica da Shoah parece-me fundamental para que se possa detectar no curso regular da vida social – no próprio mundo da

10Cabe, talvez, uma excepção, no quadro do pensamento contemporâneo, para as formas de interpretação da vida social fundadas no modelo da escolha racional, segundo o qual qualquer acção humana é dotada de um selo de racionalidade se atestada pelo cálculo maximizador do próprio agente. Tal paroxismo exibe, a meu juízo, de forma clara a cegueira e a indiferença moral das interpretações do mundo fundadas na chave da es- colha racional. Para uma avaliação crítica e corajosa do paradigma da escolha racional, ver Sciberras de Carvalho (2008).

Modos do bem comum e o vislumbre do pior dos mundos possíveis

vida, como bem o denominava Alfred Schutz – eventos potenciais de supressão de formas de vida, nos quais os dois aspectos acima descritos – imprevisibilidade e assimetria – possam estar presentes.

É possível, pois, imaginar uma estratégia de fixação do bem comum fundada num imperativo categórico de corte negativo. A Shoah é o abismo da diafonía: todo o nosso dissenso em relação às imagens do bem comum colapsa diante da evidência da pior versão possível do Mal Comum. Estão, pois, postas as bases de um imperativo categórico: pensar e agir de uma forma tal que a combinação entre assimetria e imprevisi- bilidade seja assumida como aberração universal.

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Parte II

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