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Que estratégias para a gestão da água?

No documento Bem comum: público e/ou privado? (páginas 149-155)

Todos conhecemos a gravidade da actual crise social e ambiental que enfrentamos à escala planetária, e que exige uma viragem radical do pro- cesso civilizacional. É insustentável a manutenção de um estilo de vida assente na sobreexploração dos recursos naturais, na intensificação do consumo de energia e na explosão da produção de resíduos. A necessi- dade de um novo paradigma ambiental, de um outro modelo de desen- volvimento, de uma outra sociedade, é sentida cada vez com maior pre- mência. O que, em termos de opinião pública, se tornou porventura mais visível com a mediatização do problema das alterações climáticas e da emissão de gases com efeito de estufa.

É conhecido que no mundo se vive uma crise da água. De acordo com dados das Nações Unidas, cerca de 1100 milhões de pessoas no mundo não são servidas, actualmente, por instalações para fornecimento de água potável e 2400 milhões não têm acesso a sistemas de saneamento. Apesar de, nos últimos 20 anos, mais de 2400 milhões de pessoas terem tido acesso a água potável e 600 milhões a sistemas de saneamento melhorados.

Por outro lado e desde 1950 até à presente data o consumo de água, à escala planetária, mais do que triplicou. Em paralelo, surgiram proble- mas relativos à crise ecológica dos ecossistemas aquáticos, verificou-se uma exploração insustentável de muitos aquíferos, ocorreram problemas por vezes muito graves de degradação da qualidade das águas, consta- tou-se a existência na gestão das águas de ineficiências e de irracionalida- des do ponto de vista económico e tornaram-se patentes problemas de governabilidade, por falta de transparência e de participação dos cida- dãos. Em suma, tornou-se evidente a crise dos modelos de gestão da água predominantes no século passado.

Esta crise tem óbvias implicações no que concerne à relação do homem com a água de que dispomos e às relações entre os homens por causa da água.

É portanto indispensável a definição de uma estratégia de longo prazo para a gestão dos recursos hídricos (à escala mundial, à escala nacional e à escala regional e local) que promova a sustentabilidade dos ecossiste- mas, a conservação da água, o seu uso eficiente, a gestão da procura.

Que valores, que visão, que estratégias devem ser adoptadas? Há de facto, no essencial, duas grandes vias para encarar estas questões e para perspectivar o seu tratamento.

De um lado uma via que reconhece expressamente que a água de- sempenha funções sociais que são garantia de direitos do homem, que defende a necessidade de garantir a sustentabilidade dos nossos sistemas aquáticos, que reconhece a existência do «direito à água» e que considera uma responsabilidade colectiva a garantia do seu exercício por todos os cidadãos. Do outro lado a via neoliberal, que não reconhece a existência dos referidos direitos e que centra a sua actividade em torno do «mercado da água», da «indústria da água» e dos «negócios da água». Que valores, que princípios, que opções políticas, sustentam essas propostas? Quem

beneficiaria e quem seria prejudicado com a sua aceitação?

As funções da água, valores e direitos

Na análise comparativa das referidas estratégias uma das questões que vem gerando alguma controvérsia é a de saber se a água deve ser, ou não, considerada primordialmente como um bem económico.

De um lado estão os que defendem que a água deve ser considerada como uma mercadoria como qualquer outra. Segundo eles, o valor de um bem é definido principalmente pelo seu valor económico, ou seja, pelo seu valor de mercado, de troca. É o valor de troca que determina o valor de uso. E, portanto, como qualquer outro bem, a água deve ser considerada como um bem que tem um valor económico.

A consagração da aceitação deste conceito (pela primeira vez de uma maneira formal a nível intergovernamental) teve lugar na Conferência In- ternacional sobre a Água e o Desenvolvimento, organizada pelas Nações Unidas, em Dublin, em 1992. De facto um dos quatro princípios (especi- ficamente o quarto) apresentados na Declaração de Dublin estabeleceu que «a água tem um valor económico em todas as suas diversas utilizações competitivas e deverá ser reconhecida como um bem económico».

Água: bem e/ou serviço público?

Os princípios fundadores desta corrente de pensamento são, segundo Riccardo Petrella, os cinco que a seguir se referem.

O primeiro princípio é o da mercantilização, já referido, e que estabe- lece que a água deve ser considerada principalmente como «um bem tendo um valor económico». Certamente, a água dos rios, dos lagos, dos aquíferos é «um bem comum natural de que o Estado é o proprietário em nome da nação. Mas desde que uma intervenção humana transforma o recurso natural num bem ou num serviço, existem custos, e a água transforma-se num bem económico objecto de troca e de apropriação privadas».

O segundo princípio é o da superioridade do investimento privado. O financiamento privado é o motor principal do desenvolvimento eco- nómico e social. O investimento público, que deve ser reduzido e limi- tado, «deve aspirar, sobretudo, a criar o ambiente mais favorável ao in- vestimento privado».

O terceiro princípio é o da passagem de uma cultura de direitos a uma ló- gica de necessidades. «Não há, no domínio económico, direitos individuais ou colectivos inerentes ao ser humano, universais e imprescritíveis.» Os direitos humanos são unicamente direitos civis. Nos domínios da vida económica e social «existem essencialmente necessidades: de transporte, de energia, de comunicação, de habitação, de água». Consagra-se, assim, a redução da identidade dos cidadãos nestes domínios à de meros con- sumidores ou clientes.

O quarto princípio é o da privatização. Assenta tal princípio numa dupla distinção, à qual é atribuída pelos neoliberais uma importância fundamental: «a distinção entre a propriedade e a gestão de um bem ou serviço, e a distinção entre o poder político de decisão e fiscalização e o poder de execução e gestão».

Considera-se, pois, que o sector privado é intrinsecamente dinâ- mico, produtivo e confiável. E que as instituições privadas são intrin- secamente superiores às instituições públicas para o fornecimento de bens e serviços.

O quinto (e último) princípio é o da liberalização. Segundo ele «a re- partição óptima dos recursos (bens e serviços materiais e imateriais) exi- giria a total liberdade de acesso ao mercado local, nacional e, sobretudo, mundial».

Ora, de facto, a água tem uma dimensão económica mas tem também outras importantes dimensões, como a ética, a social, a cultural, a am- biental, a patrimonial, a política, a simbólica, etc. Ou seja, a água é outra coisa que um mero bem económico.

E, portanto, considerar que a água deve ser considerada como um bem económico, e que por conseguinte as leis do mercado permitiriam resolver os problemas de penúria e de escassez, e até os conflitos entre Estados relacionados com a água, é uma ideia muito simplista. Baseia-se numa opção de natureza puramente ideológica, que consiste em privile- giar, de entre as múltiplas dimensões específicas da água, o valor relativo à dimensão económica em detrimento de todos os outros valores. Pode- -se partilhar ou rejeitar uma tal escolha ideológica. Mas mesmo os de- fensores de tal opção não podem negar que, no ecossistema Terra, não há outras «fontes de vida» como a água (excepção feita ao ar). E que a água é um recurso único, particular, de natureza diferente de todos os outros recursos aos quais os seres humanos recorrem para satisfazer as suas necessidades básicas. O recurso à água não é uma questão de escolha. Todos temos necessidade dela. A água desempenha funções sociais que são garantia de direitos do homem.

Todos sabemos que a água é um recurso escasso. Ora, o recurso aos mecanismos de preço e de mercado permitiria gerir eficazmente a escas- sez, recorrendo a uma gestão economicamente racional, óptima, de um recurso limitado cuja acessibilidade seria regulada pela solvabilidade dos utentes em competição por usos concorrenciais ou alternativos. Não per- mitiria era garantir o acesso à água a todos os seres humanos, a todas as comunidades.

Mas é por reconhecer que a água «é essencial à vida e á saúde», que as Nações Unidas (através de seu Comité dos Direitos Económicos So- ciais e Culturais), reconheceram expressamente num documento publi- cado em 2003, o «Direito à Água» como direito do homem. Direito à água que é definido como consistindo «no fornecimento suficiente, fisica- mente acessível e a um custo acessível, de uma água salubre e de qualidade aceitável para as utilizações pessoais e domésticas de cada um». É ainda salientado que «a noção de fornecimento de água adequado deve ser interpretada de uma forma compatível com a dignidade humana e não em sentido estrito, pela simples refe- rência a critérios de volume e a aspectos técnicos».

Mas, e para além de garantir o direito individual à água para a vida, a água como serviço ambiental garante ainda outros importantes direitos sociais. O direito à sustentabilidade dos ecossistemas de que depende a nossa existência é uma questão fundamental da nossa época. E à susten- tabilidade dos sistemas aquáticos não pode deixar de se atribuir a priori- dade máxima. Tal como afirma a «Carta da Terra», «a humanidade é parte de um vasto universo evolutivo, a Terra, o nosso lar... A capacidade de recuperação da comunidade da vida e o bem-estar da humanidade de-

Água: bem e/ou serviço público?

pendem da preservação de uma biosfera saudável, com todos os seus sis- temas ecológicos, uma rica variedade de plantas e animais, solos férteis, águas puras e ar limpo...».

Tal como admitimos maioritariamente que os bosques não podem ser geridos como simples armazéns de madeira, devemos também chegar a entender que os rios são muito mais que canais de H2O. E esta é a razão pela qual as legislações mais avançadas em matéria de água exigem passar das tradicionais abordagens baseadas na «gestão do recurso» para os modernos enfoques da «gestão ecossistémica»

Será que esta concepção de que «a água não é um produto comercial como outro qualquer, mas um património que deve ser protegido, de- fendido e tratado como tal» (como é referido no primeiro considerando da Directiva Quadro da Água), de que «a água deverá ser considerada como um bem social e cultural e não principalmente como um bem eco- nómico» (como refere expressamente o referido documento das Nações Unidas de 2003 sobre o «Direito à Água»), irá conduzir necessariamente a uma utilização ineficiente do recurso e que, portanto, é susceptível de agravar ou de conduzir a situações de carência de água? Será que a con- sideração da água como um bem social não servirá para justificar a rei- vindicação do fornecimento de água a preços bonificados (ou mesmo a título gratuito) e a subvenção pública generalizada ao fornecimento de água seja para que uso for?

Considero que não, e que a perspectiva apresentada por Pedro Arrojo permite clarificar a questão. Arrojo defende que a nossa atenção se deve centrar não em torno da água, mas sim das suas utilizações. Será pois in- dispensável discernir com clareza as funções da água, distinguindo os se- guintes níveis:

• a água-vida, em funções de vida, que dizem respeito a direitos hu- manos individuais (o acesso à água potável, condição de vida e saúde) e colectivos (o direito das comunidades ao território e seus ecossistemas);

• a água-cidadania, em funções de serviço público ou de interesse geral, que dizem respeito a direitos sociais, tais como os relacionados com a saúde pública, a coesão social e a equidade;

• a água-negócio, em funções de negócios legítimos, que dizem respeito a direitos privados e individuais a melhorar o nível de riqueza e bem estar;

• a água-negócio, em funções de negócios ilegítimos, que devem ser combatidos por lei.

De facto não é a mesma coisa a utilização da água para beber e a uti- lização da água para produzir pasta de papel, energia, ou para fins turís- ticos. E, no âmbito das actividades produtivas, não é a mesma coisa a água de que necessita um pequeno agricultor para cultivar a pequena horta que lhe permite sobreviver, ou a água de que necessita uma grande empresa agrícola nas suas actividades do agro-negócio (agro-business). É pois necessário distinguir, no que respeita às utilizações da água, o que são funções básicas de vida, ou de relevante interesse social, do que se deve considerar como usos económicos lícitos, mas de interesse particular ou privado. Cada uma destas funções respeita a direitos que se encontram em níveis qualitativos significativamente diferentes, que implicam prio- ridades diferenciadas, assim como critérios de gestão claramente distintos.

Um dos reptos que temos de enfrentar, nos dias de hoje, é sem dúvida o da garantia da universalidade do abastecimento de água potável. O que implica a necessidade de construção de todas as infra-estruturas necessá- rias para que, do ponto de vista físico, a água possa chegar a todos os ci- dadãos. E isto pressupõe a disponibilidade dos financiamentos indispen- sáveis, que em determinados casos terão um valor significativo. Mas, para além da acessibilidade física do bem água, é necessário garantir a sua aces- sibilidade financeira, ou seja, que o fornecimento da água potável seja feito a preços acessíveis a todos os cidadãos nas quantidades que garan- tam o direito à vida. O que, e para além do recurso à perequação na de- finição dos sistemas tarifários, implica a construção de mecanismos de solidariedade por parte dos consumidores de um dado sistema e/ou do conjunto dos contribuintes. Com o objectivo de garantir que, mesmo os que não dispõem dos meios suficientes para fazer o pagamento da água que consomem, possam ver assegurada a disponibilidade da água necessária à sua sobrevivência.

Mas se tais mecanismos de solidariedade são indispensáveis na garan- tia do direito à vida, e também de outros direitos sociais, já as utilizações da água em actividades económicas de interesse particular não têm qual- quer justificação para reclamarem idênticos critérios de gestão e, pelo contrário, carecem de ser sujeitas a mecanismos que assegurem a racio- nalidade económica na sua gestão. A consideração do valor económico do recurso água é um dos mecanismos que poderão garantir, nomeada- mente, a sustentabilidade dos ecossistemas naturais e os objectivos bási- cos de equidade social que a sociedade determine.

Pedro Arrojo explicita, ainda, que mesmo a necessária racionalidade económica, que é necessário assumir urgentemente na gestão das águas- -negócio (e estas correspondem, sem dúvida a mais de 60% das utiliza-

Água: bem e/ou serviço público?

ções da água), não exige a introdução de mecanismos de livre mercado, com escassa ou nula sensibilidade para valores sociais ou ambientais. Não se deve confundir racionalidade económica com introdução de merca- dos. Por exemplo, a recuperação de custos, referida na Directiva Quadro da Água, pode certamente ser obtida com critérios privatizadores, por intermédio do mercado. Mas pode também ser obtida com adequadas políticas tarifárias, que permitam gerir objectivos de equidade social ou interterritorial ou de natureza ecológica.

No documento Bem comum: público e/ou privado? (páginas 149-155)

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