tração Pública recorre para desenvolver a sua actividade, se encontram os bens, próprios e alheios. Mas que actividade é essa, e a que fins con- corre? Quando se fala em Administração Pública «tem-se presente todo um conjunto de necessidades colectivas cuja satisfação é assumida como tarefa fundamental pela colectividade, através de serviços por esta orga- nizados e mantidos» (Amaral 2003, 29). A satisfação destas necessidades exige avultados meios materiais e humanos, pelo que «onde quer que
Do bem comum aos bens públicos: uma visão jurídica
exista e se manifeste com intensidade suficiente uma necessidade colec- tiva, aí surgirá um serviço destinado a satisfazê-la, em nome e no interesse da colectividade». E, independentemente de esses serviços poderem ter naturezas ou origens distintas, «todos existem e funcionam para a mesma finalidade – precisamente, a satisfação das necessidades colectivas» (idem, 31), e estas são, fundamentalmente, de três espécies: «a segurança, a cul- tura e o bem-estar económico e social» (idem, 39).
Freitas do Amaral, ao explicitar desta forma os fins da Administração Pública em sentido material, enumera aquilo que vem mais tarde a definir como o motor da Administração: a «Administração actua, move-se, fun- ciona, para prosseguir o interesse público. O interesse público é o seu único fim» (Amaral 2003, 33). Princípio constitucionalmente definido,18
a prossecução do interesse público é o fim supremo da administração que deverá ser exercido com igualdade, proporcionalidade, justiça, im- parcialidade e boa fé.19
Mas em que consiste precisamente esta noção? Se numa perspectiva abrangente se pode definir «o interesse público como o interesse colec- tivo, o interesse geral de uma determinada comunidade, o bem comum – na terminologia que vem já desde São Tomás de Aquino» (Amaral 2003a, 34), a circunscrição do conceito pode ajudar-nos na sua com- preensão.
Jean Rivero define-o como correspondendo às «necessidades a que a iniciativa privada não pode responder e que são vitais para a comunidade como um todo e para cada um dos seus membros» (Rivero 1981, 14). Se, como nos diz, «o motor normal da acção dos particulares é a prosse- cução de uma vantagem pessoal – ganho material, realização humana, ou para os mais desinteressados concordância dos seus actos com um ideal», já o «motor da acção administrativa, pelo contrário, é essencial- mente desinteressado: é a prossecução do interesse geral, ou ainda da uti- lidade pública, numa perspectiva mais filosófica, do bem comum» (idem).
Rogério Soares distingue entre interesse público primário – cuja defi- nição e satisfação compete aos órgãos governativos do Estado – e interesse pú- blico secundário20– cuja definição é feita pelo legislador, mas cuja satisfação
cabe à Administração Pública –, associando o primeiro ao bem comum na- 18N.º 1 do artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa: «A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses le- galmente protegidos dos cidadãos» (CRP 2003).
19N.º 2 do mesmo artigo.
20É o caso da segurança pública, da educação, da saúde pública, da cultura, dos trans- portes colectivos, etc.
cional. Partindo do pressuposto que «o primeiro interesse do Estado que a legislação realiza é o da esquematização típica da vida segundo critérios de justiça distributiva» (Soares 1955, 101), diz-nos que se trata, no domí- nio dos interesses públicos, de «interesses que o legislador reconheceu como tendo instrumentalidade imediata para a actualização do bem comum, e a sua definição e tipicização significa ineludivelmente a afir- mação da necessidade imperiosa de serem prosseguidos pelo agente que lhes foi proposto» (idem, 118). E assim se pode distinguir o interesse pú- blico do interesse privado: «o interesse público tem sempre que ser satis- feito; o interesse privado só tem que ser satisfeito quando o particular o desejar» (idem).
Em qualquer dos sentidos, refere Freitas do Amaral, «é a lei que define os interesses públicos a cargo da Administração», instituindo-se assim como elemento que «delimita a capacidade jurídica das pessoas colectivas públicas e a competência dos respectivos órgãos: é o chamado princípio da especialidade, também aplicável às pessoas colectivas públicas» (Ama- ral 2003, 37).
Mas se o interesse público corresponde a necessidades colectivas, ao pressupormos que estas variam no tempo e no espaço, não se pode deixar de assumir que a «noção de interesse público é uma noção de conteúdo variável: o que foi ontem considerado conforme ao interesse público pode hoje ser-lhe contrário, e o que hoje é tido por inconveniente pode amanhã ser considerado vantajoso. Não é possível definir o interesse pú- blico de uma forma rígida e inflexível» (idem, 37).21
Torna-se evidente, neste sentido, a necessidade permanente de comu- nicação entre o legislador e o legislado na definição do interesse público em diferentes escalas e contextos da vida social, que vem a repercutir-se mais adiante na relação entre o administrador e o administrado. Se o bem público é um meio ao dispor da Administração, ele subscreve os valores que a lei define como constituindo a orientação fundamental do interesse público, podendo assim dizer-se que os bens públicos, para além de meios de que a Administração se serve, são também portadores de uma determinada forma de valorização que é autónoma da Administra- ção: o bem público é em si mesmo um veículo simbólico que manifesta o interesse público junto da Administração, representando quer a visão
21Rivero diz-nos também que «a delimitação do que entra no interesse geral varia com as épocas, as formas sociais, os dados psicológicos, as técnicas; mas se o conteúdo varia, o fim continua o mesmo: a acção administrativa tende à satisfação do interesse geral» (Rivero 1981, 15).
Do bem comum aos bens públicos: uma visão jurídica
do legislador quer as necessidades colectivas material e socialmente ma- nifestadas. E esse valor é de natureza eminentemente sociológica.
Do bem comum ao bem público
A distinção referida por Cabral de Moncada, e que explicitámos ini- cialmente, entre o plano espiritual e o plano material, parece encontrar na distinção entre bem comum e bem público uma expressão relativa- mente clara. O bem comum é, na terminologia do autor, um objecto ideal. O bem público será, na terminologia do direito administrativo, um objecto material.22Esta noção de bem público como suporte material
do bem comum é sustentada, com um sentido relativamente aproxi- mado, por diversos autores.
Cretella Júnior (1969) define bens públicos como «as coisas materiais ou imateriais, assim como as prestações, que pertencem às pessoas jurí- dicas públicas, objectivam fins públicos e estão sujeitas a um regime ju- rídico especial, derrogatório do direito comum» (Cretella 1969, 18), sendo sujeitos a um regime jurídico especial que «envolve a determinação do fim a que se destinam, na medida do interesse colectivo» (idem, 21). Rogério Soares, na distinção que já referimos entre interesse público pri- mário e secundário, sugere que ao primeiro se associa, «acentuando o elemento objectivo, o bem público» (Soares 1955, 118). E Marcello Cae- tano, como já verificámos, explicita o sentido de bem público associado à ideia de bens que a Administração utiliza para concretizar os seus fins, doutrina que Freitas do Amaral (1978) subscreve, acrescentando a fór- mula clássica que os classifica como inalienáveis, impenhoráveis e im- prescritíveis.23
Mas se a noção de bem público é recorrentemente associada a uma ex- pressão material de suporte para a realização de um fim, ela confunde-se necessariamente com a ideia de bem económico, uma vez que se pressupõe a possibilidade de aproveitamento individual ou colectivo que permite si- tuações de gozo ou fruição. Galvão Telles sugere-nos, ao procurar uma de- finição do conceito de universalidades, que «o equívoco resulta do em-
22Materializa-se em objectos físicos, relações sociais e relações jurídicas.
23Sugere-nos ainda a classificação dos bens dominiais: (i) quanto ao titular do direito: domínio público do Estado, da região autónoma, do concelho, da freguesia; (ii) quanto à sua função: domínio público da circulação, cultural, militar, etc.; (iii) quanto ao processo da sua criação: domínio público natural e artificial; (iv) quanto à sua consistência material: domínio público hídrico, terrestre e aéreo.
prego da palavra bens para designar as coisas, consideradas já na sua con- figuração jurídica de objectos de direito», uma vez que «as coisas, como objectos de direito, chamam-se bens», mas «o termo não pertence ao Di- reito, pertence à Economia» (Galvão Telles 1940, 10).
Independentemente de concordarmos ou não com o autor no que diz respeito à origem da expressão, ela torna evidente a confusão con- ceptual que se materializa também na definição de bem público. O bem público aproxima-se claramente de uma noção económica porque detém um conjunto de propriedades que o definem enquanto bem sujeito a fruição e gozo individual e colectivo, incluído num regime de proprie- dade e capaz de satisfazer necessidades colectivas. Mas afasta-se desta quando é subtraído ao comércio privado e exposto na doutrina como expressão material de valores ideais. Mas serão as duas dimensões sepa- ráveis? Ou estaremos apenas a evidenciar uma separação analítica que recorta o sentido total da questão?
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