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Uso colectivo e direito de propriedade

No documento Bem comum: público e/ou privado? (páginas 197-200)

Os bens ambientais naturais, na sua dimensão imaterial, são sempre bens públicos, no sentido em que existe uma relação de aproveitamento entre as qualidades destes bens e um conjunto de pessoas, uma colecti- vidade, um público16 (Irelli 1983, 20-22). Pode haver coincidência entre 15Neste sentido, Martin Rémond-Gouilloud frisa os condicionamentos que a pro- priedade de bens naturais, por força da sua dimensão incorpórea, impõe aos proprietários, acentuando os deveres de gestão racional e neutralizando os poderes de disposição: «Ainsi, dépourvu à la fois du droit de disposer juridiquement et matériellement des ressources d’environnement que se situent sur son fonds, le propriétaire ne les possède pas à titre de propriétaire. Ses prérogatives sont celles d’un usager» (Rémond-Gouilloud 1985, 32). 16Esta posição, aberta à proliferação de realidades imateriais fruíveis no seio da co- munidade, contrasta com a exposição de Marcello Caetano que, não só não destacava a

propriedade pública do suporte físico do bem natural e uso público das qualidades desse bem, maxime no caso dos bens naturais afectos ao do- mínio público (ver, desde logo, as alíneas a e c do n.º 1 do artigo 84.º da CRP), caracterizados pelo uso colectivo a que estão adstritos.17 Tal como

essa coexistência pode ocorrer, no caso da propriedade colectiva ou cí- vica18relativamente ao reduzido universo de pessoas que compõem a co-

munidade titular do bem e gestora das suas utilidades (Nabais 2001, 223 e segs.). No entanto, quer num caso, quer noutro, a utilidade retirada do bem é sempre material, ainda que não tenha necessariamente expressão pecuniária — pelo menos, no caso dos bens do domínio público.

A nossa preocupação com estas observações é, mais uma vez, frisar a imaterialidade co-essencial ao uso colectivo dos bens ambientais naturais na sua dimensão incorpórea. A potencialidade de uso colectivo das águas de um rio pertencente ao domínio público, pela sua generalidade, igual- dade e gratuitidade (Amaral 1965, 76 e segs.), assemelha-se à susceptibi- lidade de uso de outros bens ambientais naturais não afectos àquele do- mínio por qualquer pessoa; tal constatação não obriga, todavia, à integração no domínio público de todos os bens ambientais naturais. Tão-pouco o aproveitamento agrícola, silvícola ou pecuário da proprie- dade cívica (mais conhecida em Portugal pelo termo baldio)19se identifica

com o uso de bens ambientais naturais — neste caso, ficaria logo excluída pela restrição do público de usuários20—, pois a tónica do uso cívico incide

na dimensão corpórea destes bens e no aproveitamento económico dos seus frutos (Nabais 2001, 248; Irelli 1983, 252 – distinguindo uso público e uso cívico). Enfim, a distinção, em ambos os casos, assenta na inapro-

propriedade (pública) da ideia de domínio sobre coisas corpóreas, como afirmava que «a comunidade e os seus interesses se personificam no Estado e nas outras pessoas colectivas de direito público» (Caetano 1972, 870- 871).

17Sobre o uso colectivo ou uso comum dos bens do domínio público, ver Diogo Freitas do Amaral (1965, 47 e segs), e mais recentemente, Bernardo Azevedo (2005, 203 e segs.) (aderindo à tese de Giannini, que qualifica os bens dominiais como «bens de pro- priedade colectiva [de mero gozo] confiados em gestão legal a entes territoriais»). Veja-se também o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 1 de Maio de 1970 (STA 1972, 535 segs.)

18Sobre a propriedade cívica ou colectiva, ver Desideri (1971, 1082 e segs.); Nabais (2001, 223 e segs.); Irelli (1983, 263 e segs.) e Azevedo (2005, 136 e segs., notas 81 e 82). 19Os baldios encontram o seu enquadramento legal na Lei 68/93, de 4 de Setembro, com as alterações introduzidas pela Lei 89/97, de 30 de Julho.

20Como sublinha Ana Raquel Gonçalves Moniz (2004, 356) os baldios reflectem também uma particular concepção de vida em comunidade», «estão ao serviço das ne- cessidades de uma certa comunidade de vizinhos».

Os bens ambientais como bens colectivos

priabilidade intrínseca dos bens naturais na sua dimensão imaterial, a qual constitui, aliás, pressuposto da qualificação como bens colectivos. Como o uso efectivo das qualidades imateriais dos bens ambientais não pressupõe um contacto directo com o suporte físico destes (a existir), a diferenciação entre propriedade pública (no sentido amplo, que com- preende a propriedade colectiva) e privada (que inclui a propriedade so- cial e cooperativa — artigo 82.º/3 e 4 da CRP) pouco ou nada relevaria.21

Por outras palavras, à primeira vista, o uso individual de bens colectivos é sempre possível, quer estes estejam na esfera de propriedade pública, quer integrem a propriedade privada. Num segundo momento, porém, constatamos que pode não ser exactamente assim, nomeadamente nas situações em que o proprietário — seja ele uma entidade pública, ou pri- vada — descura a conservação do património natural, ou o utiliza com desprezo pelas suas qualidades ecológicas (preferindo a sua utilidade eco- nómica ou outra) (Avanzi 1998, 271).

Ponderando esta hipótese, cumpre desde logo sublinhar que as preo- cupações de protecção ambiental devem coadunar-se, sempre que possí- vel, com as formas de aproveitamento tradicional dos bens naturais. A natureza é, além do habitat de várias espécies, animais e vegetais, fonte de sustento vivencial e económico do homem, o que significa, por um lado, que a proibição de utilização, total ou parcial, de um determinado bem ambiental há-de reservar-se para as situações em que a intervenção atinge níveis de agressão tão insuportáveis que compromete a continua- ção da sua existência ou possibilidade de regeneração.22Na lei ambiental

portuguesa, tais hipóteses correspondem às zonas de protecção integral, nas quais tanto a investigação científica como a monitorização ambiental e a visitação ficam sujeitas a autorização prévia da autoridade nacional e que, caso sejam de titularidade privada, ficam sujeitas a expropriação (cf. o artigo 22.º/1/a e n.º 2 do DL n.º 142/2008, de 24 de Julho).23

Por outro lado, a conformação de especiais deveres de cuidado no tratamento dos suportes físicos dos bens ambientais é, em grande parte 21Já José Carlos Moreira notava que as res communes, pela sua «natureza física», são insusceptíveis de apropriação — daí que não pertençam, nem ao domínio público (do qual se aproximam, em razão da sua incomerciabilidade e susceptibilidade de fruição co- lectiva), nem ao domínio privado (Moreira 1931, 80).

22Cf., aliás, a definição de dano ecológico que exsuda do DL n.º 147/2008, de 29 de Julho: alteração significativa adversa mensurável da qualidade de um bem natural ou dos seus serviços (artigos 2.º e 11.º).

23Segundo Maria Antonia Ciocia, nesta hipóteses, a funcionalização ao interesse am- biental justifica a expropriação, como que veiculando uma «avocação definitiva» do bem pela Administração (Ciocia 1999, 43).

das situações, onerosa, por isso se devendo fazer apoiar por auxílios pe- cuniários ou outro tipo de contrapartidas — em nome da justa repartição de encargos públicos com a manutenção de um bem colectivo —, pelo menos nos casos em que o proprietário não consiga cobrir tais despesas com os proventos da actividade de exploração daqueles bens.24

Em seguida, e caso estejamos perante uma agressão perpetrada por qualquer proprietário que não uma pessoa colectiva pública, ponderada a gravidade e irreversibilidade da continuação de acção ou omissão cau- sadora do dano ambiental, cumpre definir se os deveres impostos para colmatar a situação se coadunam ainda com a manutenção do vínculo da propriedade ou se obrigam à expropriação, total ou parcial, do bem ou do direito de exploração do mesmo, com atribuição do quantum in- demnizatório devido.25A desafectação da propriedade configura um

acto administrativo lícito de ingerência ambiental máxima que, repre- sentando um dano especial e anormal na esfera jurídica do expropriado, deve ser compensado na medida do razoável, em homenagem ao prin- cípio da justa repartição dos encargos públicos (artigo 13.º/1 da CRP).26

É que, conforme recorda Gomes Canotilho, «a defesa do ambiente é uma tarefa solidária e não solitária e não se compadece com a unilateral imposição de vínculos restritivos a uns em favor de outros» (Canotilho 1995, 105).

Seria porventura desejável que a LBA aludisse a um mecanismo espe- cífico de expropriação por razões ambientais, nomeadamente a nível dos institutos da política de ambiente a que se refere o artigo 27.º, ainda que o legislador viesse a remeter a sua regulamentação, no essencial, para a lei geral das expropriações por utilidade pública (ou seja, o Código das Expropriações). Assim se possibilitaria a intervenção estadual em casos- 24Podemos aqui deixar o exemplo da possibilidade de financiamento de projectos de recuperação e promoção a desenvolver pelo proprietário de áreas gravadas pelo inte- resse ambiental por recurso ao Fundo para a Conservação da Natureza e da Biodiversi- dade, criado pelo DL n.º 171/2009, de 3 de Agosto (cf. o artigo 37.º/2).

25Conforme explica José Joaquim Gomes Canotilho, «o conceito de delimitação do conteúdo de propriedade geradora de compensação» vem deste modo ocupar o espaço resultante de um regresso ao conceito de expropriação em sentido restrito. A «delimitação do conteúdo» constituirá uma «restrição do direito geradora de compensação» quando a medida delimitadora-restritiva tiver um peso económico significativo na esfera jurídico-patri-

monial do proprietário» (Canotilho 1974, 79-98) (itálico nosso).

26Cf. o artigo 16.º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro e a teorização de José Joaquim Gomes Canotilho (1974, 87, 103-298 e segs.) (sobre o artigo 9.º da anterior lei da respon- sabilidade civil extracontratual da Administração). Veja-se também, sobre a figura das in- demnizações pelo sacrifício (no âmbito do planeamento urbanístico), Correia (1989, 521 e segs.).

No documento Bem comum: público e/ou privado? (páginas 197-200)

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