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Reflexões breves sobre viver em sociedade, hoje

No documento Bem comum: público e/ou privado? (páginas 43-46)

Inebriado pelo gozo consumista, ampliado pelas descobertas tecno- lógicas, e entusiasmado pela negociação de interesses, regra geral com tradução económica, o cidadão do último quartel do século XX, formado

na civilização ocidental, deixou-se adormecer para o bem comum. Con- comitantemente, a tessitura comunitária foi-se esboroando e o acento tónico da sociedade passou a residir nos indivíduos que a constituem, agindo de acordo com as respectivas preferências subjectivas.

Para expressar a nova realidade, o sociólogo polaco Zigmut Bauman fala, algo paradoxalmente, em «sociedade individualizada» (Bauman 2002). A sociedade fragmentou-se, afirma, deixou de ter sentido de coe- são e vive muito mais da soma de indivíduos apresentada em números do que da sua agregação expressa em ideias, valores, comunidade de bens ou interesses.

Neste enquadramento, a questão de saber como se irão resolver os problemas que a todos respeitam torna-se de difícil resposta. Tudo porque os múltiplos prazeres que cada um quer gozar, as expectativas que vai criando junto dos outros, particularmente dos que estão mais próximos, as exigências de sobrevivência dos mais carenciados (Parijs e Arnsperger 2004, 5) contradizem-se, enredam-se, inviabilizam entendimentos, criam nebulosas em redor dos problemas. No entanto, aquela questão é vital, já que, em larga medida, da resposta que se lhe der decorre a qualidade 01 Bem Comum Cap. 1_Layout 1 5/27/13 8:30 AM Page 43

com que a vida pode e deve ser vivida, generalizadamente, na sociedade, presente e futura.

Acresce que o desenvolvimento da sociedade da informação tem vindo a criar desequilíbrios entre as insignificâncias que preenchem o quotidiano de cada um1e a magnitude dos problemas cuja solução im-

plica a conjugação de vontades e o esforço de todos.

É comum falar, a propósito, de crise. Aliás, as referências à crise em que a sociedade está mergulhada surgem dos mais variados quadrantes – crise financeira, sistémica, das instituições sociais e/ou políticas, crise eco- nómica, da educação, da saúde...

A verdade, porém, é que os problemas da sociedade actual não residem fundamentalmente nessas crises, por maiores que sejam. Residem, em nosso entender, na própria sociedade, no seu modo de ser como comu- nidade, na sua identidade feita de pessoas, livres e autónomas, na cons- ciência que têm de si (self) e do que lhes pertence nesse âmbito. Tudo por- que a sociedade, em sentido tradicional, está em decomposição e, nesse processo de decomposição, rarefez-se a faculdade de quem a compõe glo- balmente se pôr em questão, se interrogar e reflectir criticamente.

Há quem veja na globalização e nas novas tecnologias que facilitam a vida em sociedade a fonte dos problemas e, simultaneamente, a origem da dificuldade de os solucionar. E, com efeito, a sociedade global e as significações planetárias se, de um lado, distribuem acriticamente bene- fícios, de outro geram específicos problemas cuja solução não é motiva- dora para os cidadãos, porque a sociedade global, ao alongar a distância entre a solução e o cidadão que para ela contribui, tende a diluir o con- tributo deste no todo da solução, o que o impede de se rever nela. Não se quer com isto dizer que a sociedade global não estreite relações entre as pessoas. Quer-se somente afirmar que o estreitar dessas relações, regra geral, se desenrola em redor de pequenos nadas – o maior espectáculo de música a nível global, a melhor fotografia do ano de 2011, o maior treinador mundial de futebol, o jogador mais bem pago do mundo, o homem mais velho do planeta, a mulher mais rica do mundo... –, pe- quenos nadas sem relevo para a resolução dos problemas globais.

Quanto ao desenvolvimento tecnológico, é exemplar o que acontece com as redes sociais permitidas pelas tecnologias sem fios: criam uma realidade virtual de interligação instantânea, em que o insignificante e o significante são divulgados à mesma velocidade, sem carga valorativa ou 1Sobre este progressivo aumento, no dia-a-dia, do peso do que é insignificante, ver Castoriadis (1996), 81-102.

Despertar para o bem comum!

distinção cultural, qualquer que seja, que diferencie um do outro, o que tudo conduz à perda de sentido do humano. Não admira que as ideias que circulam nessas redes se decomponham, se misturem, tenham vida efémera, e os valores tendam a evaporar-se sob o manto de uma tolerân- cia que esqueceu que ela própria também tem limites ou a exacerbar-se gerando intoleráveis fanatismos.

Ao mesmo tempo, não se vê que a globalização seja acompanhada por um qualquer movimento no sentido de uma tendencial igualização de condições de vida ou de justiça entre os homens a nível global. Pelo contrário. Aliada à sociedade da informação, a globalização tem escan- carado as portas à contemplação impotente e desmobilizadora de mun- dos diferentes e despudoradamente posto a nu a miséria e a tirania com que uns vivem e são tratados e a riqueza e o bem-estar que outros osten- sivamente exibem.

Depois de séculos de inspiração iluminista, em que a esperança orien- tou o percurso histórico do homem e a capacidade de criar fez florescer utopias e converteu em actos a inteligência palpitante do homem na sua relação com o outro, a civilização ocidental entrou em letargia, como se o homem se tivesse esgotado emocionalmente, e racionalmente se sen- tisse desprovido da força de se transcender, dando origem ao que o filó- sofo francês Gilles Lipovestky tornou conhecido como a «era do vazio» (Lipovestky 1989).

Usando uma metáfora, tudo se passa como se o relógio do tempo hu- mano se avariasse e parasse, tornando-se indiferente ao nascer e ao pôr- -do-sol e aos ciclos de vida que este gera, cego perante a abundância de bens e saberes gozados privadamente por uns e as carências de toda a ordem suportadas, também privadamente, por outros.

O discurso dos direitos fundamentais que, em especial depois da II Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas divulgou e a partir daí vem intensificando, procura tecer, a nível global, uma malha agregadora entre os homens por sobre os discursos dos direitos emergentes dos orde- namentos jurídicos estaduais. Mas a necessidade de assimilação desse dis- curso dos direitos fundamentais pela multiplicidade de culturas e identi- dades sociais embacia o discurso, por ele fluindo palavras e mais palavras cujo sentido não é coincidente, o que confunde muito mais do que agrega. É neste quadro que a identificação da sociedade procura ser recriada. Como, no entanto, se abala o entorpecimento em que se caiu? Como se criam as condições para cada pessoa se sentir agente de mudança e, logo, participante na construção de um mundo melhor? Diga-se, em abono da verdade, que, aqui e acolá, se vão ouvindo, no plano intelectual (Cor- 01 Bem Comum Cap. 1_Layout 1 5/27/13 8:30 AM Page 45

tina 2010; Sen 2010), e sentindo, no plano dos factos,2vozes e acções

novas, o que é importante e deve ser interrogativamente acompanhado, com abertura de espírito, no respeito pela essencialidade da pessoa hu- mana, assente que está ser esta, na sua dignidade imanente, o pilar fun- damental da sociedade ocidental.

Neste processo de procura nos inserimos e propomos um olhar sobre o passado a fim de melhor apreender e acompanhar o relançamento que o nosso estar no mundo com os outros impõe, a partir da mundividência jurídica e política que nos caracteriza e situa no Estado de Direito.

Breves reflexões históricas

Da invenção da política à descoberta do direito e à modelação

No documento Bem comum: público e/ou privado? (páginas 43-46)

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