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A classificação pública das águas: do direito ao interesse público

No documento Bem comum: público e/ou privado? (páginas 159-163)

A classificação pública das águas decorre de um valor fundamental: pela sua importância relativamente à subsistência e desenvolvimento de qualquer comunidade humana, a grande maioria das águas deve ser ex- cluída do comércio jurídico privado. Tendo origem na Antiguidade Clás- sica, a sua primeira e mais relevante sistematização jurídica surge com o direito romano que as classificava por essa mesma razão em três catego- rias distintas: públicas, comuns e particulares (Moreira 1920,16). As águas comuns (res comunis omnium) poderiam ser utilizadas por todos e não se constituíam como objecto de direitos de propriedade, sendo sujeitas a direitos de uso (Caponera 1992). As águas públicas (res publicae) perten- ciam ao Estado, a uma comunidade ou município, podendo a sua utili- zação ser concedida a terceiros. Particulares eram as águas susceptíveis de apropriação individual, representando uma pequena parte das águas disponíveis no meio: água da chuva, águas subterrâneas1 e pequenos cor-

pos de água cujo uso era limitado à época (poços, nascentes e charcas) por falta de meios.2

1Não se conhecia ainda a enorme riqueza qualitativa e quantitativa dos recursos hí- dricos subterrâneos.

2Tal como na classificação de águas públicas, que surge do reconhecimento da sua utilidade pública, a ausência dessa utilidade justificou a existência de águas privadas. Par- ticularmente ilustrativa é a classificação privada das águas pluviais que caiam num terreno e das águas subterrâneas: ambas são vistas como fruto do prédio de onde brotam ou onde afloram e por isso pertencem ao seu proprietário até ao limite que lhe aprouver; passam a ser públicas uma vez que ultrapassem abandonadas (leia-se, não canalizadas) os limites desse prédio.

Delimitando os contornos essenciais de uma expressão valorativa que persiste ainda hoje no direito português,3o direito romano contemplava

ainda duas outras categorias de bens que, revestindo-se de particular sig- nificado no contexto das políticas ambientais contemporâneas, não são habitualmente mencionadas nos estudos de direito das águas ou nas afir- mações políticas que reclamam a sua propriedade pública ou privada: a res derelictus e a res nulius. A primeira representava os bens que ninguém pretende possuir, a segunda os bens que não pertencem a ninguém: na primeira categoria apresentam-se os esgotos (águas residuais) ou os lixos, que não são reclamados como propriedade pública ou privada e que o Estado, por inerência de protecção do interesse público, se vê forçado a «recolher e tratar»; as segundas representam tipicamente massas de água muito valiosas, como é o caso das águas subterrâneas.4

Sofrendo modificações e adaptações ao longo de dois milénios de história, a tipologia definida no direito romano persistiu como referência essencial dos sistemas jurídicos civis (que adoptaram ou seguiram os princípios do Código Napoleónico de 1804), dos sistemas jurídicos da lei comum (common law, que deriva da aplicação britânica do direito ro- mano original) ou mesmo das doutrinas de apropriação, uso benéfico e direitos correlativos características do direito norte-americano das águas (Caponera 1992), tratando-se assim de um pressuposto ancestral e trans- versal à cultura ocidental que o direito português antigo manteve in- tacto, fazendo persistir alguns dos problemas de aplicabilidade derivados da imprecisão dos critérios, ou do reduzido número de disposições le- gislativas sobre a matéria que abriu o campo a interpretações diversas (Moreira 1920).

Enunciados pela primeira vez no âmbito dos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1867, estes problemas não encontraram resolução no respectivo texto final, que manteve imprecisões significativas e impediu uma clarificação dos critérios de distinção. Neste contexto, quando se iniciaram os primeiros processos de classificação, demarcação e cartogra- fia de águas públicas, comuns e particulares nas bacias dos rios Tejo e Mondego nesse mesmo ano,5determinando-se que esses trabalhos fos- 3 Apesar da eliminação da categoria de águas comuns operada na transição da década de 1910 para a década de 1920.

4E que em Espanha serviram de justificação, depois de o respectivo Tribunal Cons- titucional as ter classificado como res nulius, para que fossem convertidas em águas pú- blicas sem qualquer tipo de indemnização aos proprietários rurais aquando da publicação da Lei de Águas espanhola em 1985.

O domínio do Estado sobre as águas

sem realizados por comissões distritais constituídas pelo respectivo go- vernador civil, pelo delegado de saúde, por um engenheiro designado pelo Governo e por dois proprietários rurais,6 antevia-se um processo

lento, complexo e conflituoso.

Não só pela dimensão do trabalho a realizar, pelas dificuldades ine- rentes à aplicação de normas pouco claras ou pela falta de preparação ju- rídica e escassez de recursos humanos afectos ao exercício da função, mas também porque o próprio processo de classificação implicava a expro- priação de propriedade privada, factor potencial de conflito entre Estado e proprietários marginais que iria efectivamente materializar-se em tantos outros processos judiciais ao longo de grande parte do século XX.

A segunda metade do século XIXcomeçava a tornar evidentes os con-

tornos essenciais de uma formulação de políticas públicas que iria insti- tucionalizar-se a 6 de Março de 1884 com a criação dos Serviços Hidro- gráficos e que assumia como propósito essencial a concretização de um vasto programa de intervenções hidráulicas ao longo do território nacio- nal continental tendo em vista a melhoria das condições sanitárias das povoações, a defesa contra o efeito devastador de cheias e, sobretudo, o aproveitamento económico das águas.

Assente no pressuposto de que a intervenção do Estado dependeria de um processo de apropriação pública das águas, procuravam-se criar condições à sua administração e à regulação dos seus usos atribuindo-se aos Serviços Hidrográficos a responsabilidade pelo diagnóstico, planea- mento técnico e execução das intervenções, a realizar em articulação com proprietários marginais, pela coordenação dos trabalhos de policiamento do domínio público hídrico, a desenvolver por mestres e guarda-rios, e pela regulação do uso de águas públicas por parte de particulares, através de contratos de concessão ou licenças de utilização. Neste sentido, e como condição prévia fundamental ao exercício destas funções, deter- minava-se a expansão a todo o território nacional continental dos pro- cessos de demarcação, classificação e cartografia do domínio público hí- drico que vinham sendo desenvolvidos no vale do Mondego e na bacia do Tejo desde a década de 1860.

A inadequação dos critérios jurídicos de distinção entre águas públi- cas, comuns e particulares relativamente à forma como a água se apre- senta no meio, às utilizações que lhe são dadas e à sua relação com a pro- priedade dos terrenos onde está presente, contudo, criou problemas significativos que seriam reconhecidos pouco mais tarde com a publica-

6 Artigo 4.º do Decreto com força de Lei de 26 de Dezembro de 1867.

ção do decreto n.º 8 de 1 de Dezembro de 1892. No entanto, se este di- ploma procurou clarificar o regime jurídico do domínio público hídrico e rever o quadro institucional de referência das políticas públicas da água, mantiveram-se aí imprecisões decorrentes de uma visão preponderante- mente jurídica sobre os processos de classificação.

Na verdade, e perante a declaração de bancarrota do Estado português nesse mesmo ano de 1892, começava a tornar-se evidente uma interpre- tação política do pressuposto de apropriação pública das águas, não tanto como condição necessária à sua exclusão do comércio jurídico privado, à administração púbica dos recursos hídricos nacionais ou à garantia de uma regulação justa das suas possibilidades de utilização por parte de particulares, mas sobretudo como poder de disposição do Estado sobre o território hídrico nacional que viria a ser exercido de forma discricio- nária ao longo de grande parte do século XX. Não só através da identifi-

cação de domínios de intervenção de políticas públicas considerados prioritários,7mas também pela promoção da utilização privativa das

águas enquadrada no regime jurídico da concessão.

Se esta hipótese interpretativa encontra sustentação na análise histó- rica das políticas públicas da água em Portugal entre finais do século XIX

e o início do século XXIque já tivemos ocasião de desenvolver,8ela ganha

igual consistência através da análise da evolução do regime jurídico do domínio público hídrico em Portugal ao longo desse período, que trata- remos agora em função de quatro dimensões distintas.

Uma primeira diz respeito aos critérios de classificação das águas: enunciados pela primeira vez no âmbito do direito português moderno em 1892, a revisão operada com a publicação da Lei da Água de 1919 fez expandir ainda mais o domínio material do Estado através da elimi- nação da categoria de águas comuns9 e da clarificação jurídica das suas

possibilidades de utilização privativa através do regime de concessão. Per- sistindo intactas até hoje no que respeita aos seus pressupostos funda- mentais, estas disposições configuram o suporte jurídico essencial ao exer- cício do poder de disposição do Estado sobre as águas, em nome do interesse público.

7 O investimento público em infra-estruturas hidráulicas acentuou sempre a utilização das águas para fins económicos em detrimento da resolução dos problemas de saúde pú- blica decorrentes da inexistência de sistemas de distribuição de águas e drenagem de águas residuais capazes de garantir condições sanitárias adequadas.

8 Ver a este propósito Pato (2008).

O domínio do Estado sobre as águas

Uma segunda diz respeito à articulação entre a Lei Fundamental e a legislação ordinária: se a Constituição de 1933 foi a primeira a incluir um artigo exclusivamente dedicado ao domínio público (art. 49.º), esta consagração marca o início de um novo período de evolução do seu re- gime em Portugal, coincidente com o período histórico do Estado Novo: o autoritarismo político do período da ditadura via reforçado logo à par- tida o seu poder com a consagração constitucional das águas como bem público.

A terceira relaciona-se com as distintas tentativas falhadas de revisão do regime jurídico das águas públicas observadas entre a década de 1940 e a década de 1980, essencialmente concentradas na tentativa de intro- duzir a componente de protecção ambiental das águas no corpo jurídico nacional. Finalmente, a quarta diz respeito ao período que decorre entre a extinção da Direcção-Geral dos Recursos e Aproveitamentos Hidráuli- cos em 1987 e a publicação de cinco diplomas que, entre 1990 e 1994, enunciaram pela primeira vez os pressupostos essenciais do modelo de políticas públicas da água actualmente vigente.

No documento Bem comum: público e/ou privado? (páginas 159-163)

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