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Filosofia política negativa e a evidência do mal comum

No documento Bem comum: público e/ou privado? (páginas 139-144)

Uma das estratégias mais interessantes para a produção de imagens a respeito do bem comum possui analogias fortes – ao menos de natureza formal, senão substantiva – para com a tradição da teologia negativa. O bem comum não se mostra, não sabemos o que pode significar. A sua fisionomia própria, contudo, torna-se mais nítida na medida em que se apresenta de modo inequívoco à do seu oposto absoluto: o mal comum.

(Tal estratégia não é de se desprezar, dadas, por exemplo, as evidências copiosas de males comuns, postas, entre outras, pela perspectiva da tragé- dia dos comuns, voltada menos para a definição axiomática do que seja o bem comum e mais – muito mais – pela enumeração de factores trági- cos: ambiente, população, overfishing, trânsito e, até mesmo, os graffiti).

Dois dos mais importantes filósofos políticos modernos, Maquiavel e Hobbes – cada um à sua maneira – buscaram mecanismos de paz entre os humanos sustentados na certeza de que a ausência dos mesmos con- figura o pior dos mundos possíveis. Para o primeiro deles, a definição da política como factor de vertebração social – por meio de um padrão mínimo de estabilidade nas relações entre soberano e súbditos – aparece como contraponto ao caos, à imprevisibilidade e ao reino do apetite de- senfreado. A terapia, embora com frequência dura, não é de modo algum infalível. O lugar do príncipe – ponto focal da definição do bem comum – será sede também de imensa cobiça e, portanto, factor de ins- tabilidade renovada.

Cabe destaque ao argumento hobbesiano, tal como expresso no prin- cipal texto de filosofia política do século XVII, o Leviatã. Com efeito, tudo

o que Hobbes faz decorre da descoberta do que julga ter a força de um axioma – ou seja, de um fundamento –, a saber: o pior dos males possíveis reside na possibilidade generalizada da morte violenta. Diante do espectro da morte violenta, «a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrute- cida e curta» (Hobbes 1984, parte I, cap. XIII). Tal possibilidade, eviden-

ciada na radicalidade dos actos de predação e retaliação típicos do estado de natureza, produz efeitos milagrosos de esclarecimento. No meio do espectro da morte violenta, são os artigos de paz, inscritos na Lei Natural que, como entes de razão, orientam os humanos na direcção do bem comum. Soberano e bem comum têm, portanto, parte com o medo, um dos mais poderosos mecanismos de configuração – e certamente de des- figuração – social. O fundamento sombrio – possibilidade da morte vio- lenta para todos e para qualquer um – dá passagem a corolário optimista: pelo engenho racional e prático dos humanos, a morte violenta pode ser evitável e reduzida a cenários nos quais é autorizada pela Lei Natural (guerra e desobediência ao pacto fundante da vida social).

Num registo mais contemporâneo, a obra de Hans Jonas parece ocupar espaço semelhante. No seu monumental Princípio Responsabilidade, Jonas, a partir de uma poderosa interpretação a respeito do descontrolo da acele- ração tecnológica, apresenta-nos um desenho sombrio de um futuro ante- cipado pelas nossas piores inclinações (Jonas 2006). A mais grave, e mais radical, de todas seria a de tornar a vida, para os humanos, impossível no planeta. A experimentação cultural e tecnológica dos humanos teria como limite as normas inscritas na natureza que, uma vez violadas, podem fazer da presença humana no planeta, no limite, uma impossibilidade. O vis- lumbre imaginário dessa impossibilidade constitui um fundamento para uma nova ética no tempo presente. E chave ainda mais recente, e no con- texto da reflexão portuguesa, Hermínio Martins vem acumulando uma impressionante e crescentemente sólida reflexão a respeito dos processos de aceleração tecnológica e sobre as formas de reflexão que sobre eles têm sido produzidas no cenário contemporâneo (Martins 2011).6

A lógica da tradição negativa consiste, pois, em indicar o cenário em relação ao qual é imperativa uma clara demarcação. É a própria presença física dos humanos, para além – ou aquém – da qualidade dos seus ar- ranjos sociais que aqui aparece em cena. O vislumbre do negativo suscita, pois, a oportunidade de imaginar e inventar artifícios para que o abjecto 6Ver também interessante entrevista concedida à revista electrónica NOVA (s. d.).

Modos do bem comum e o vislumbre do pior dos mundos possíveis

que ele revela não se converta em potência activa de configuração do mundo.

O século XXpropiciou oportunidade ímpar para a fixação de um vis-

lumbre do negativo, a meu juízo, na radicalidade máxima e inultrapas- sável. Refiro-me à experiência da Shoah e do projecto – em boa parte exe- cutado – de eliminação física e cultural do judaísmo europeu. Julgo importante reconhecer a centralidade do evento, assim como extrair da experiência, sem trivializá-la ou julgá-la facilmente comparável com ou- tros eventos, alguma orientação para os campos da filosofia moral e po- lítica. O tema, como pode ser facilmente imaginado, está submetido a várias querelas interpretativas. Pode a Shoah ser explicada, de acordo com protocolos históricos habituais, ou o seu carácter radicalmente único inibe – cognitiva e moralmente – qualquer tentativa de explicação racio- nal? Trata-se de um evento único na história humana, com implicações igualmente singulares, ou deve ser inscrito numa série maior de eventos, também marcados pela erradicação violenta de grupos humanos? Esses são exemplos de querelas, sobre as quais não me ocuparei, mas que se- guem a envolver os especialistas e interessados no tema. Para não falar da literatura negacionista, dedicada ao apagamento da experiência da Shoah (Lessa 2008b).

Uma aparentemente inusitada reedição da teoria leninista a respeito do elo mais fraco parece-me, a esta altura, cabível: se uma cadeia deve ser avaliada a partir do reconhecimento do seu elo mais fraco, por que não assumir que a experiência humana pode ser interpretada segundo o que nos revela o seu mais alto grau de malignidade?

Um optimista incurável poderia retrucar: e por que não assumir o ponto de vista do mais alto grau de «benignidade», se tal palavra existisse? Parece não haver, infelizmente, simetria ao alcance dos registos históricos: não se tem notícia de evento de «benignidade», com escala comparável à da malignidade da Shoah, e que seja produto de uma decisão de Estado, talvez pela própria dificuldade de encontrar evidências.

Como medir, afinal, em vidas humanas salvas e promovidas o sucesso de políticas deliberadas de extensão das oportunidades de vida? Os pro- cedimentos disponíveis indicam a necessidade de estabelecer taxas nor- mais de mortalidade e compará-las com taxas resultantes da aplicação da política de eliminação de seres humanos. Ou, ao contrário, partir de taxas normais de mortalidade e imaginá-las sem a vigência de políticas e acções de extensão de oportunidades de vida (vacinação pública, tratamento de água, etc...). Mas, ainda que alguma fisionomia minimamente nítida possa disto resultar, o efeito de conhecimento gerado saberá à simulação 06 Bem Comum Cap. 6_Layout 1 5/27/13 8:33 AM Page 141

e à probabilidade, quando não à manipulação perversa de índices e re- sultados. Seguimos, assim, com a evidência dura: a mais bem-sucedida po- lítica deliberada de definir alcances da vida humana segue sendo a que se revelou na Shoah. Nesse caso, infelizmente, o sucesso pode ser detectado no nú- mero de mortes e de vidas com as marcas indeléveis do trauma. Aqui, mais do que um número, temos a visão de um modo claro de lidar com o mundo dos humanos.7

Mas, como enquadrar analiticamente, para além do horror existencial da Shoah, um índice máximo de malignidade? Qualquer analista mediana- mente céptico em relação às perspectivas da humanidade poderá supor malignidades crescentes e subsequentes definições de malignidade má- xima. Aqui, creio, poderemos evitar a fuga para o infinito, com uma es- tratégia analítica de sabor anselmiano, tentando caracterizar um estado de malignidade do qual nada poderá ser pensado como superior (nec puls ultra).8

Como definir um quadro semelhante? O primeiro passo é o de esta- belecer que qualquer contexto no qual interacções entre seres humanos se estabelecem exige a presença de duas variáveis necessárias, a saber: (i) extensão da ordem, no sentido de regularidade e estabilidade na forma das interacções, e (ii) distribuição de recursos de poder entre os sujeitos en- volvidos.

A primeira variável – previsibilidade – diz respeito, em termos polares, à presença ou à ausência de mecanismos de regularidade institucional e comportamental, assim como de estabilidade causal. Os extremos desse mundo indicam os estados díspares, respectivamente, (i) da rotina, regu- lação e institucionalização da vida e (ii) do império do princípio de que tudo é possível.

A segunda variável – distribuição de recursos de poder – diz respeito à fragmentação e dispersão de meios de defesa e de retaliação, à disposição dos humanos nas suas interacções básicas. Nesse gradiente, podemos imaginar diversas posições ao longo de um contínuo, que apresenta num de seus limites um estado de extrema assimetria e no outro uma completa simetria de recursos de retaliação e defesa.

7A literatura sobre a Shoah é incontável. Se apenas um livro a este respeito for lido, que seja o de Levi (1989).

8Refiro-me aqui a Santo Anselmo, pensador medieval do século XII, que propôs em obra de abertura da escolástica a produzir uma prova racional e lógica a respeito da exis- tência de Deus, a partir da premissa da consistência lógica da ideia de uma perfeição acima da qual nenhuma outra é possível (Santo Anselmo 1987)

Modos do bem comum e o vislumbre do pior dos mundos possíveis

A combinação das duas variáveis configura um quadro que contém quatro possibilidades-limite, a saber:

Imprevisibilidade com simetria: combinação entre baixa previsibili- dade e desconcentração de recursos de poder (estado de natureza hob- besiano);

Previsibilidade com assimetria: saída hobbesiana do estado de natu- reza: previsibilidade alta e concentração de recursos de poder (pode ser denominada, ainda, como a cela Jean Bodin);

Previsibilidade com simetria: desdobramento virtuoso – a soberania apresenta-se de modo menos concentrado, enquanto os padrões de previsibilidade permanecem altos;

Imprevisibilidade com assimetria: o pior dos mundos possíveis – con- centração de recursos de poder e alta imprevisibilidade. Aqui a cela dos genocídios contemporâneos e da sua máxima expressão, o campo de extermínio (cela Auschwitz).

A última combinação – imprevisibilidade com assimetria – vale, na verdade, como expressão larvar de uma teoria da injustiça.9À sua moda

ela encerra um nec plus ultra: além dela nada de pior se pode pensar. A nega- tividade de Auschwitz acabou por aparecer, a um só tempo, como fun- dação e fundamento da tipificação do genocídio como crime contra a hu- manidade. De facto, diante de tal grau de malignidade não há mais sentido em distinguir entre fundação e fundamento. A emergência do Mal Absoluto pode ser tomada como ponto de partida para uma das mais relevantes facetas da moderna definição de bem comum (a parte do Direito Público Internacional que trata dos crimes contra a Humani- dade e suas implicações extraterritoriais).

A principal premissa é a de que, se levado a sério na sua amplitude e nas suas implicações, a Shoah desafia todas as concepções de justiça co- nhecidas e produzidas no pós-guerra: não há, com efeito, teoria da justiça que dispense a postulação prévia de um agente individual dotado de algum grau de razoabilidade, ainda que em escala diminuta. Isso exige reconhecer em cada decisão humana, diante dos dilemas da vida, sinais dessa razoabilidade na qual se funda toda a acção significativa. Aqui, uti- litaristas e contratualistas, universalistas e comunitaristas encontram-se, 9Se o enunciado básico da teoria da justiça, em versão rawlsiana, é o da justiça como equidade, o da teoria da injustiça poderia ser injustiça como assimetria e imprevisibili- dade.

simplesmente pelo facto de que os modelos de conduta humana com os quais trabalham não apresentam como traço básico e estruturante a malignidade. Em termos mais duros e directos, os personagens imagina- dos por essas tradições intelectuais dificilmente se reconheceriam na pele de membros de um Einsatzgrupp, como executores de velhos, mulheres e crianças.10

No documento Bem comum: público e/ou privado? (páginas 139-144)

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