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Entre o público e o privado: desafios regulatórios

No documento Bem comum: público e/ou privado? (páginas 32-38)

Se as visões disciplinares apresentadas neste livro pretendem contri- buir para o debate disciplinar e interdisciplinar em torno da noção ou sentido do bem comum tendo em vista a sua operacionalização, as di- mensões temáticas situam a discussão em torno de questões objectivas associadas a determinados tipos de bens que, pela sua natureza e impor-

Introdução

tância colectiva, justificam uma reflexão sistemática em torno da sua eventual classificação como bem público, das suas possibilidades de uti- lização e da preservação da sua qualidade, bem como das circunstâncias éticas inerentes à sua utilização e transformação. Neste sentido, os textos apresentados desenvolvem-se, não só em função do bem propriamente dito, mas também da necessidade de criar enquadramentos específicos de natureza jurídica e de políticas públicas.

João Bau começa por nos apresentar uma reflexão em torno da dico- tomia «água: bem e/ou serviço público» que acentua a importância da transição ambiental face à anunciada «crise da água» que observamos à escala global. Enunciando os problemas de sobreexploração de recursos hídricos e suas consequências ecológicas, bem como a irracionalidade que está subjacente à sua exploração económica e a desadequação dos modelos de governação adoptados quando se pretendem garantir con- dições de sustentabilidade. Assinalando ser indispensável definir uma es- tratégia de longo prazo para a gestão dos recursos hídricos (à escala mun- dial, à escala nacional e à escala regional e local), situa esta discussão em torno dos valores que devem estar subjacentes às opções a tomar no fu- turo em torno de duas visões dicotómicas: de um lado uma via que re- conhece o valor social da água e o «direito à água» e afirma a necessidade de instituir formas de responsabilidade colectiva que permitam a partici- pação de todos os cidadãos no exercício desse direito; de outro lado, uma via neoliberal que não reconhece a existência desses direitos e que centra a sua actuação em torno do «mercado da água». Em função destas duas vias propõe uma reflexão centrada nos seus pressupostos e implicações. Em «O domínio do Estado sobre as águas», João Pato e Pedro Serra apresentam uma revisão histórica da classificação pública das águas no direito português moderno e a sua articulação com os pressupostos ine- rentes ao desenho e implementação de políticas públicas da água em Por- tugal desde finais do século XIXaté hoje. Com origem no direito romano,

a tipologia de águas públicas, comuns e particulares é sujeita a uma su- cessão de actualizações entre meados do século XIXe as duas primeiras

décadas do século XX, motivadas inicialmente pela necessidade de clari-

ficar o respectivo regime jurídico e, mais tarde, pela tentativa de expandir o poder de disposição do Estado sobre as águas, nomeadamente através da extinção da categoria de águas comuns, em 1919. Apesar destes esfor- ços, o regime jurídico do domínio público hídrico permaneceu pratica- mente intacto ao longo de grande parte do século XX, e com ele as limi-

tações e imprecisões várias que dificultaram a sua aplicação por parte dos Serviços Hidráulicos.

Na prática, defendem os autores, tratou-se de uma conversão dos pres- supostos clássicos inerentes ao direito romano, que anunciava a necessi- dade de excluir as águas públicas do comércio jurídico privado, para uma tentativa de apropriação pública das águas tendo em vista o seu aprovei- tamento económico, nomeadamente com a intervenção de entidades privadas. Operada na transição do século XIXpara o século XX, os pressu-

postos inerentes a esta interpretação política persistem hoje como refe- rência estruturante ao desenvolvimento das políticas públicas da água em Portugal. Já a partir da década de 1980 assiste-se a uma nova tentativa de conversão, agora orientada para a necessidade de introduzir a com- ponente ambiental no direito das águas e na concepção, implementação e desenvolvimento de políticas públicas da água sem que, contudo, esta transição seja ainda hoje pacífica.

O texto de Carla Amado Gomes acerca dos «bens ambientais como bens colectivos» apresenta uma reflexão estruturada em torno de quatro dimensões: O que é um bem ambiental?; Os bens ambientais como bens de frui- ção colectiva; a relação entre uso colectivo e direito de propriedade; a reparação do dano a bens ambientais. Questionando a visão simultaneamente antro- pocêntrica e ambígua do legislador, expressa na Lei de Bases do Am- biente, propõe ao direito a necessidade de reflectir acerca de uma reali- dade – o ambiente – vista durante séculos como contexto e não como objecto: os bens ambientais constituem uma realidade nova que deve ser vista a par de outros domínios do direito, e não devem ser confundi- dos com outros domínios já regulados pelo direito.

A qualificação jurídica dos bens naturais impõe o desdobramento dos bens em função das utilidades que proporcionam, sendo que umas cor- respondem ao seu aproveitamento económico ou de lazer, outras dizem respeito à susceptibilidade de uso das suas qualidades imateriais. Se as primeiras possibilitam a individualização de uma utilidade, as segundas são diluídas pressupondo o seu aproveitamento colectivo. Daí que pro- ponha a classificação dos bens ambientais como bens colectivos, o que de resto vem ao encontro da tradição do direito romano que previa a existência de bens públicos, comuns e privados e encontrou expressão no Código Civil de 1867. Sustentando esta reflexão, parte depois para as suas implicações: a relação entre uso colectivo e direito de propriedade; a repa- ração do dano a bens ambientais.

Pedro Barata propõe uma reflexão em torno do clima – «o clima como bem comum: problemas de definição e gestão» – centrada na relação entre eco- nomia, ciência e governação relativamente aos problemas que se colocam actualmente às sociedades contemporâneas quando se trata de definir

Introdução

políticas públicas para as alterações climáticas. Apresentando duas acep- ções distintas de bem comum, afirma que a sua aplicação à questão cli- mática tem orientado a definição de políticas para as alterações climáticas à escala global, apesar das limitações e dos problemas graves que daí de- correm. Ao longo do texto desenvolve uma análise crítica do papel das diversas entidades globais envolvidas na produção de conhecimento cien- tífico, nos acordos climáticos globais e na definição subsequente de po- líticas adequadas.

Acima de tudo, refere, torna-se hoje fundamental redefinir o problema como uma questão de cidadania global, reorientando os pressupostos do «bem comum» associados ao problema em torno de uma visão de justiça e transparência à escala internacional e nacional, e através do desenho de novos formatos institucionais capazes de se adaptarem às distintas es- calas de governação em que o fenómeno se manifesta.

Finalmente, Paulo Ferreira Magalhães apresenta-nos o «condomínio da terra» como proposta conceptual, passível de aplicação prática, neces- sária à superação das falhas de mercado inerentes à gestão dos bens am- bientais. Perante o frustrante impasse político das negociações globais em torno do clima ao longo dos últimos vinte anos, salienta a impor- tância do invulgar trabalho de Elinor Ostrom em torno dos Commons. No entanto, refere, apesar de abrir novas possibilidades alternativas à tra- dicional visão dicotómica entre Estado e mercado, a abordagem de Os- trom omite uma possibilidade de gestão integrada de várias formas de propriedade, que usa de forma complementar e subsidiária a propriedade privada, colectiva ou pública, e que reside no instituto jurídico do con- domínio. Ao delimitar diferentes tipos de propriedade sobre um mesmo bem ou recurso materialmente indiviso, organizando as diferentes com- petências na sua gestão, esta forma híbrida de «propriedade complexa» consegue harmonizar os diferentes interesses privados e comuns, tor- nando esta sobreposição de propriedades perfeitamente simbióticas.

Ao longo do texto apresenta-nos assim o trabalho que vem desenvol- vendo desde 2007 em torno da necessária adaptação à escala global de um modelo de organização planetária, a partir das soluções já testadas pelo instituto jurídico do condomínio.

A informação e o conhecimento oferecem-nos exemplos de bens que sendo públicos na acepção da teoria económica, dada a sua intangibili- dade e inesgotabilidade, têm vindo a ser progressivamente objecto de formas de apropriação privada. Os capítulos de Maria Eduarda Gonçalves e Manuel Mira Godinho convergem na análise dessa evolução poten- ciada pelo progresso industrial e tecnológico e largamente encorajada 00 Bem Comum Intro_Layout 1 5/27/13 8:30 AM Page 35

pelos poderes públicos. A principal manifestação do fenómeno tem sido a expansão e o reforço dos direitos de propriedade intelectual e industrial.

Lembra-nos Maria Eduarda Gonçalves que a revolução liberal con- solidou a liberdade da informação nas esferas política e pública ao reco- nhecê-la como um direito fundamental do indivíduo e condição de fun- cionamento de uma sociedade democrática. Na esfera económica, o pressuposto da livre acessibilidade foi sendo, porém, questionado não só pelo reconhecimento das assimetrias reais de informação entre agentes no mercado, mas sobretudo pela apropriação exclusiva de informações relevantes para o exercício da actividade económica e a competição entre as empresas, sob a forma de propriedade intelectual e industrial. Esta ten- dência acentuou-se na era digital com a valorização crescente da infor- mação, assim como da comunicação, como objectos de negócio. Na União Europeia tem-se verificado um movimento legislativo deliberado tendente a expandir e reforçar a protecção das formas de criação intelec- tual e até de produtos de informação que não são sustentados por um esforço criativo original, como é o caso das bases de dados. Maria Eduarda Gonçalves analisa estes desenvolvimentos, ao mesmo tempo que alerta para os riscos inerentes a este processo de «privatização» da in- formação.

Por força das possibilidades de digitalização, tem-se inclusive alargado o próprio âmbito do conceito de informação, o qual abarca hoje todo o tipo de dados mas também imagens, sons, vídeos, filmes, etc., diluindo- -se a distinção entre a noção de dados e as diversas formas de expressão intelectual e artística. Esbate-se do mesmo passo a linha de demarcação tradicional entre informação cultural e informação económica, toda ela objecto de indústrias e serviços baseados na oferta de produtos de infor- mação. Esta evolução poderá até parecer contranatural. Não potenciará a natureza da informação como bem intangível o seu uso público, para mais, na era das redes electrónicas?

É um facto que o ciberespaço tem vindo a abrir espaço a dinâmicas inovadoras de criação partilhada com cedência parcial de direitos de autor (Wikipedia, «creative commons») e de distribuição livre (software livre), re- pondo em debate a questão do equilíbrio entre a informação como bem público e como bem privado na prossecução do bem comum. Também no campo da inovação e da comunicação científica, nota Manuel Mira Godinho, têm emergido movimentos de contestação do sistema de pro- priedade intelectual institucionalizado, quer em países em desenvolvi- mento, quer nas comunidades científicas, reclamando a manutenção do conhecimento científico na esfera pública.

Introdução

Acresce que em domínios abrangidos pelos direitos de autor se insta- lou uma prática liberalizada ou mesmo à margem da lei, com vastas co- munidades de utilizadores P2P partilhando e reproduzindo ficheiros elec- trónicos contendo obras musicais e de vídeo.

Por detrás do dilema entre a informação como bem público ou pri- vado encontra-se o paradoxo das novas tecnologias e da internet, notam os autores. As tecnologias propiciam não só a criação intelectual, mas também a circulação sem limites de tempo e de espaço de quantidades vastíssimas de informação com inegáveis benefícios para a sociedade. Mas precisamente por acentuarem o valor social e económico da infor- mação, têm gerado um reforço das formas de protecção privatística da informação. As dinâmicas em curso abrem, porém, a porta para reequi- líbrios futuros.

Também os progressos científicos nas áreas da genética e da biologia molecular têm suscitado problemas críticos no que toca à dicotomia pú- blico/privado centrados numa outra categoria de informação: a informa- ção genética. É sobre eles que versam os capítulos de Paula Lobato Faria e João Valente Cordeiro, e de João Lavinha.

Com a descoberta da estrutura do ADN, a sequenciação dos genomas e sua caracterização, passou a ser possível não só a validação de novos marcadores de doença facilitando o cálculo probabilístico do risco, mas também a esperança de intervenção terapêutica futura, abrindo caminho a uma nova era na área da saúde: a era da medicina personalizada. A in- formação genética ganhou valor, suscitando interesses económicos e de- safios éticos.

Informação privada porque diz respeito a indivíduos? Ou pública porque interessa à humanidade? Regimes distintos para o material gené- tico, por um lado, a informação genética, por outro? São inúmeras as questões a clarificar, sublinham Paula Lobato Faria e João Valente Cor- deiro, antes de se poder definir juridicamente um estatuto para o genoma.

Lembram os autores que existe no direito um consenso quanto a clas- sificar os seus objectos de acordo com uma visão dual entre público e privado, intimamente ligada à distinção entre «pessoa» e «coisa». A na- tureza complexa da informação genética leva os autores a optar por en- carar o genoma como uma realidade múltipla ou híbrida entre «coisa» e «pessoa», «bem público» e «bem privado», informação científica e infor- mação pessoal.

A análise a que procedem do conceito legal de genoma à luz do di- reito vigente parece indicar que o legislador, quer nacional, quer interna- cional, tem procurado conciliar a protecção da vertente pessoal e identi- 00 Bem Comum Intro_Layout 1 5/27/13 8:30 AM Page 37

tária do genoma humano com o interesse geral no livre acesso aos dados da investigação sobre o genoma e na sua utilização para o bem da hu- manidade. Mas será esse objectivo fácil de alcançar?

Para responder a idêntica questão, «genoma: bem público ou pri- vado?», João Lavinha expõe-nos a complexidade da vida e a relevância da interacção de factores ambientais e genéticos e até das «leis do acaso» na dinâmica vital das espécies e da biosfera no seu conjunto.

O progresso do conhecimento sobre estes fenómenos alterou, acres- centa, o modo como concebemos o papel do genoma no controlo dos processos biológicos, questionando, em particular, a ideia que acompa- nhou os entusiasmos iniciais da investigação genómica, de que o genoma seria uma espécie de «livro (de instruções) da vida» ou de que o ADN possuiria o estatuto de «molécula-mestra» determinante da própria natu- reza dos organismos vivos.

João Lavinha sustenta, apoiado em ampla argumentação, que afinal de contas a informação genética não é fundamentalmente diferente de outros tipos de informação de saúde, desmontando a visão, que consi- dera simplista e reducionista, segundo a qual os traços fenotípicos dos seres humanos são uma consequência directa de factores genéticos. De- fende que, pelo contrário, deveria ser o valor preditivo, as implicações para as pessoas afectadas e o potencial de discriminação ou estigmatiza- ção a determinar se certos tipos de «informação genética» têm de ser tra- tados de forma especial.

São claras as implicações destas novas perspectivas para a definição do estatuto e do regime da informação genética. Neste ponto, as posições de Paula Lobato Faria e João Valente Cordeiro, e de João Lavinha, convergem em parte: importa garantir o genoma como «bem público» recusando o seu patenteamento, a fim de poder servir de base ao desenvolvimento de novas tecnologias de análise genética e a novos fármacos; mas também como «bem privado» na medida em que há que prevenir a potencial es- tigmatização e discriminação social dos indivíduos. Num mundo ideal, conclui João Lavinha, o genoma não teria valor de troca e a informação dele derivada seria de livre acesso com rigoroso respeito pela autonomia e privacidade individual dos dadores dos produtos biológicos.

No documento Bem comum: público e/ou privado? (páginas 32-38)

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