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Tentativas de reforma do quadro jurídico da água

No documento Bem comum: público e/ou privado? (páginas 175-180)

Profundamente associado ao paradigma hidráulico que moldou as políticas públicas da água em Portugal desde finais do século XIXaté à

década de 1980, e assente no pressuposto do domínio do Estado sobre os recursos hídricos nacionais como condição à definição discricionária de políticas públicas, o quadro jurídico das águas em Portugal parece ter ficado sempre aquém dos seus propósitos. Ora porque se foram estabe- lecendo objectivos para os quais não eram disponibilizados os necessários meios de concretização, ora porque a legislação que foi sendo publicada apresentava deficiências e incoerências técnicas e conceptuais que torna- vam praticamente impossível a sua aplicação. Para além disso, e com par- ticular intensidade a partir da década de 1940, as diversas tentativas de introduzir medidas de protecção ambiental das águas, consubstanciadas em tantas outras comissões e grupos de trabalho dedicados à revisão da legislação hídrica até à década de 1980, não chegaram a ser reconhecidas no texto da lei.

Num primeiro momento, a necessidade de criar condições ao exercí- cio do domínio do Estado sobre as águas materializou-se numa sucessão questão particularmente sensível no que diz respeito às margens da costa marítima; man- tém-se em actividade a respectiva comissão de delimitação (das parcelas privadas cujos proprietários o reclamem, cabendo-lhes fazer prova) de parcelas sobre as quais impendem servidões administrativas e restrições de utilidade pública.

22 O Decreto-Lei n.º 468/71 veio a sofrer várias alterações, nomeadamente no segui- mento das trágicas inundações de 1968 na região de Lisboa, quando foi definida uma zona ameaçada pelas cheias sobre a qual impendem limitações de vária ordem à cons- trução e outras formas de ocupação, e mais recentemente pela Lei n.º 16/2003, de 4 de Junho, quando a Assembleia da República fez sua uma proposta oriunda da Região Au- tónoma da Madeira no sentido de admitir como de propriedade privada «os terrenos tra- dicionalmente ocupados junto à crista de arribas alcantiladas», entre outras alterações.

de tentativas de articular a legislação que delimitava o domínio público hídrico com o desenho institucional que deveria garantir a a sua imple- mentação: por um lado, procurando-se enunciar e clarificar os critérios de distinção entre o domínio público hídrico e o domínio privado das águas; por outro, procurando-se adequar o quadro institucional de refe- rência da administração pública das águas, e suas respectivas atribuições, à necessidade de aplicação desses critérios à escala de todo o território hídrico nacional. Publicar-se-iam assim diversos diplomas que, entre 1884 e 1919, não só não conseguiram superar as dificuldades colocadas pelos critérios originários do direito romano quando se tratava de garantir uma cartografia exaustiva do domínio público hídrico, como foram confron- tados com as limitações financeiras e de recursos humanos inerentes à realidade do país na transição do século XIXpara o século XX.

A publicação da «Lei de Águas» em 1919 veio fechar um ciclo de apro- ximadamente 35 anos de tentativas de revisão ao fim do qual parece as- sumir-se que o propósito de cartografia exaustiva do domínio público hídrico, e com ele o pressuposto inicial de domínio do Estado sobre as águas, não era exequível com os critérios jurídicos adoptados e com os recursos disponíveis, passando esse domínio a exercer-se caso a caso: sem- pre que se colocassem hipóteses de utilização do domínio público hí- drico justificadas pelo interesse público ou, em simultâneo, sempre que fosse necessário reconhecer a titularidade pública ou privada das águas. Compreendem-se assim as dificuldades e os conflitos inerentes à admi- nistração dos recursos hídricos nacionais à escala de todo o território con- tinental23e que, apesar das tentativas de resolução propostas no Decreto-

-Lei n.º 468/71, da reforma das políticas públicas da água operada entre meados da década de 1980 e meados da década de 1990 ou da revisão da legislação que regula a titularidade das águas operada em 2005, per- sistem ainda hoje. Daí que se possa falar do domínio do Estado sobre as águas como um poder de disposição.

Já no que diz respeito às tentativas de introduzir disposições de pro- tecção ambiental no quadro jurídico das águas, as primeiras tentativas substantivas de revisão observam-se entre a publicação da Lei de Águas de 1919 e a publicação da Lei de Bases do Ambiente em 1987, todas elas sem produzirem resultados práticos. A primeira surge em finais da década de 1940, com a criação de uma comissão que tinha por fim «estudar e codificar as medidas destinadas a evitar a poluição dos cursos de água do 23O mesmo se poderá dizer relativamente ao direito privado das águas presente na codificação civil.

O domínio do Estado sobre as águas

País» (Veiga da Cunha et al. 1980, 460). Constituída por representantes de diversas áreas governativas,24reconheceu «a falta de uma unidade

orientadora da acção a desenvolver pelos organismos que tinham a seu cargo a defesa das águas públicas e a falta de uma organização adequada e de meios de acção indispensáveis ao bom desempenho da missão dos serviços» (idem, 461). Considerava-se à época que a acção a desenvolver seria de carácter preventivo, e que o problema não assumia ainda dimen- sões alarmantes, mas que era fundamental acompanhar a moderna ten- dência legislativa da grande maioria dos países europeus.

Mais tarde, já em 1959,25é criada nova comissão para orientar «o es-

tudo, na generalidade, do problema da poluição fluvial e do solo em todo o território metropolitano» (idem, 462). E embora não fossem utili- zadas as propostas da comissão, «o seu trabalho contribuiu para um me- lhor esclarecimento do problema e para um progresso no plano dos prin- cípios defendidos e das soluções preconizadas» (idem). O que não impediu a constituição de uma terceira comissão em 1962,26que tinha

por objectivo reorganizar a Junta Sanitária de Águas, e de outra ainda em 1970,27que deveria proceder ao estudo das medidas legislativas necessá-

rias à resolução dos problemas da poluição e defesa da qualidade das águas.

Exclusivamente associado aos problemas da progressiva degradação da qualidade das águas, o trabalho destas comissões raramente deu frutos. As tentativas de reforma da legislação não passaram de intenções, e mesmo os resultados dos estudos efectuados não foram tornados públi- cos, nem lhes parece ter sido dada a atenção merecida.

É necessário esperar até 1976 para que o espírito reformista ganhe maior alcance nos seus propósitos, já no contexto da transição democrá- tica, alterando-se a sua natureza e assumindo-se a necessidade, não só de resolver os problemas de natureza jurídica, mas também de criar um novo quadro institucional de referência para a administração dos recursos hídricos nacionais. Confirmavam-se os problemas que já haviam sido enunciados no início do século, agora acumulados ao longo de décadas de práticas políticas e administrativas, assim como de produção legislativa 24«Era constituída por representantes das Direcções-Gerais de Saúde, de Minas e Ser- viços Geológicos, dos Serviços Industriais, dos Serviços Agrícolas, dos Serviços Florestais e Aquícolas, dos Serviços de Urbanização e dos Serviços Hidráulicos» (Veiga da Cunha

et al. 1980, 460).

25Portaria n.º 17 210 de 8 de Junho de 1959. 26Ver Veiga da Cunha et al. (1980).

27Portaria de 27 de Abril de 1970.

avulsa. Através de Despacho,28o então secretário de Estado dos Recursos

Hídricos e Saneamento Básico determinava a criação de uma Comissão de Revisão da Legislação da Água (CRLA) que, tendo em consideração que «a legislação portuguesa referente à posse e uso das águas está desac- tualizada; a legislação sobre poluição não está de acordo com as normas internacionais; ser oportuna a revisão de toda a legislação referente ao regime de águas por virtude de se encontrar em estudo o novo Código Civil», deveria apresentar os estudos necessários a uma reforma profunda do quadro jurídico das águas até 30 de Junho de 1977, ou seja, no espaço de nove meses.

A CRLA, constituída por três engenheiros e um jurista, apresentaria os resultados dos seus trabalhos três anos mais tarde, propondo a inte- gração num único diploma das duas categorias de águas públicas e pri- vadas que deveria conduzir à criação de um «Código da Água»29e onde

se definiriam, não só uma política de gestão dos recursos hídricos nacio- nais, mas também se procederia à revisão da legislação relativa à titulari- dade do domínio hídrico: «preconiza-se, deste modo, que a elaboração de uma lei de águas seja precedida da definição de uma política hídrica com a adopção de princípios fundamentais, entendendo-se que a lei de águas deve ser a tradução de uma política geral, a sua forma de expressão» (Tavarela Lobo 1985, 10).

Daí que fossem fundamentais os contactos e os trabalhos preparató- rios conjuntos com a Comissão de Revisão do Código Civil, tendo em vista a «ligação jurídica» de ambos os processos de revisão, ainda para mais tendo em conta os princípios definidos na Lei Fundamental que, como é sabido, apresentava uma mudança substancial dos fundamentos de organização económico-social em Portugal, materializando a tendên- cia política que se seguiu à revolução de 1974: «A organização econó- mico-social da República Portuguesa assenta no desenvolvimento das re- lações de produção socialistas, mediante a apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais, e o exercício do poder democrático das classes trabalhadoras.»30

28Despacho de 1 de Outubro de 1976.

29Passaria a deixar de estar regulada no Código Civil qualquer matéria de águas. Esta ideia será certamente considerada bizarra do ponto de vista jurídico, uma vez que ignora a natureza distinta dos direitos público e privado e seus respectivos institutos: não será alheia ao facto de ter sido idealizada por uma comissão composta essencialmente por engenheiros, e não vingou apesar de persistirem ainda hoje alguns apologistas da sua con- cretização.

O domínio do Estado sobre as águas

Esta integração não se iria concretizar, contudo, uma vez que se assu- miu na revisão do Código Civil de 1977 que relativamente aos preceitos constitucionais referidos «era cedo para tentar uma definição daqueles novos institutos antes que resultem clarificados pela própria experiência vivida e por legislação especial que vá concretizando o seu conteúdo».31

Consequentemente, prosseguiriam os trabalhos preparatórios de elabo- ração do Código da Água, aguardando-se uma reforma conjunta do Có- digo Civil e da legislação hídrica que, contudo, nunca viria a acontecer. Se a definição de uma política de gestão dos recursos hídricos nacio- nais desenhada com base no espírito do artigo 80.º da Constituição da República Portuguesa encontrou os obstáculos referidos, já a proposta de revisão da legislação que definia a titularidade do domínio hídrico não apresentava grandes desafios de natureza política, nem propunha al- terações significativas na classificação das águas, para além da integração, num só «Código da Água», das águas públicas e das águas particulares até então reguladas no Código Civil. Sucede porém que os resultados do trabalho da CRLA relativos à titularidade do domínio hídrico não foram aproveitados para uma revisão da legislação do domínio hídrico.

Em 1984 é criada nova Comissão para o Estudo das Formas Institu- cionais da Gestão da Água, sob dependência do secretário de Estado do Planeamento, cabendo-lhe a missão de inventariar a legislação portuguesa sobre recursos hídricos, proceder ao estudo comparado dos modelos ins- titucionais e da legislação vigente sobre recursos hídricos nos países da Comunidade Económica Europeia e submeter, no prazo de seis meses, um projecto de diploma relativo à gestão dos recursos hídricos nacio- nais.32Considerando que «a avaliação dos recursos hídricos de superfície

e subterrâneos disponíveis a nível nacional tem sido dificultada pela ac- tual estrutura administrativa portuguesa, geradora de conflitos de com- petência, o que tem levado à dispersão de esforços e à descoordenação de iniciativas e investimentos», e assumindo que era fundamental «dotar o País de instrumentos jurídicos necessários à sua gestão global, de forma a alcançar, a médio e longo prazos, o autofinanciamento dos respectivos investimentos», determinava o Conselho de Ministros que o diploma a ser criado deveria assumir o âmbito do território nacional, definir o esta- tuto dos organismos existentes ou a criar e os regimes de propriedade e de utilização dos recursos hídricos de superfície e subterrâneos, bem

31Decreto-Lei. n.º 469/77 de 25 de Novembro de 1977.

32Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/84 de 5 de Abril de 1984 (publicada em D. R. a 28 de Abril).

como de rejeição de efluentes. No entanto, e como nas anteriores comis- sões e grupos de trabalho, os seus resultados práticos não chegariam ao texto da lei.

A sucessão de grupos de trabalho e comissões de estudo dedicadas à revisão do quadro jurídico da titularidade do domínio público hídrico em Portugal terá tido algum impacto do ponto de vista da tomada de consciência da necessidade de introduzir medidas de protecção ambiental das águas, apesar de não ter produzido efeitos substantivos no que res- peita à revisão da legislação em vigor e dos critérios de distinção entre o domínio público hídrico e o domínio privado das águas. De facto, é ape- nas com entrada definitiva das políticas públicas de ambiente em Portugal através da publicação da Lei de Bases do Ambiente em 1987 e com a criação do Ministério do Ambiente e dos Recursos Naturais em 1990 que se dá início a um processo de transição do paradigma hidráulico que vinha orientando as políticas públicas da água desde finais do século XIX

para um novo paradigma ambiental.

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