• Nenhum resultado encontrado

1 P RECONCEITO : ASPECTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

1.4 N ÍVEIS DE ANÁLISE DO PRECONCEITO

Allport (1954) defende que perspectivas ou “enfoques” distintos sobre o preconceito possuem um caráter mais complementar do que divergente, ponto que beneficia o estudo deste construto uma vez que em conjunto estas perspectivas podem suscitar uma análise mais abrangente e completa do preconceito. Assim, seis enfoques são apresentados por Allport no sentido de proporcionar uma melhor compreensão do preconceito: (1) enfoque histórico; (2) enfoque sócio-cultural; (3) enfoque situacional; (4) enfoque através da dinâmica e estrutura da personalidade; (5) enfoque fenomenológico e (6) enfoque através do objeto estimulador.

O enfoque histórico salienta o poder dos conflitos existentes na larga história da humanidade no desenvolvimento do preconceito (Allport, 1962). Nesta perspectiva, apenas os antecedentes dos conflitos são capazes de fornecer informações sobre o problema, só conhecendo a natureza histórica de um conflito social para poder compreendê-lo totalmente. Acentuando os determinantes econômicos da nossa história teremos que a estruturação da economia é a principal responsável pelo desenvolvimento do preconceito, sendo a exploração de certos povos ou mesmo a divisão dos povos em raças/grupos a gênese da categorização superiores/inferiores (Cabecinahs, 2004; Ferriols, 2003).

A representação hierárquica da natureza das raças por muito tempo foi considerada justa e cientificamente comprovada, com isto, pressupostos científicos eram utilizados para explicar a segregação intergrupal (Cunha, 2000; Wieviorka, 2001). O enfoque histórico possui um notável poder de explicação da origem do fenômeno do preconceito, entretanto, não pode ser utilizado isoladamente como sua única explicação.

Assim, Allport (1962) enfatiza que “(...) apesar de que a história proporciona o amplo „contexto social‟, não pode nos dizer por quê dentro deste contexto uma

personalidade desenvolve preconceitos e outra não. (...) por que não existem preconceitos iguais contra todos os povos explorados” (Allport, 1962, p. 233-234).

O enfoque sócio-cultural, segundo enfoque referido por Allport, ou sociológico, por sua vez, salienta os fatores sócio-culturais como causa da existência do preconceito. A mobilidade social e a dinâmica entre endogrupos e exogrupos, a densidade da população alvo de preconceito, os tipos de contato estabelecidos entre os grupos, são todos fatores situados no contexto social geral responsável pela desordem social e pelo preconceito. Segundo esta linha de pensamento, apesar de haver na raça humana uma tendência a desenvolver relações saudáveis e amistosas entre as pessoas, o processo de urbanização e globalização das sociedades acaba por produzir efeitos nocivos às relações interpessoais, desenvolvendo uma sensação de insegurança, de alta competitividade, de medo, dentre outros sentimentos da mesma ordem, nos atores sociais. Todo o fenômeno do preconceito estaria associado a estas relações inerentes à vida social. Esta noção segue princípios semelhantes aos da perspectiva histórica, pois apesar de articular dois diferentes fatores (social e cultural), ainda assim não contempla os fenômenos situados nas representações mentais e ideológicas dos indivíduos.

Já o enfoque situacional, terceiro indicado por Allport, defende o poder das forças contextuais no fenômeno do preconceito. O preconceito seria um reflexo do que experienciamos em nosso meio.

A criança do sul não possui evidentemente, o conhecimento dos acontecimentos históricos, da exploração, nem dos valores urbanos como tais. Sabe simplesmente que deve adaptar-se aos ensinamentos complexos e incongruentes que recebe. Seu preconceito é assim meramente uma imagem refletida do que vê ao seu redor” (Allport, 1962, p. 238).

O enfoque situacional do preconceito utiliza fenômenos como a competição econômica, mobilidade social, tipos de contato entre os grupos ou até mesmo a densidade relativa dos grupos como base do preconceito. Deste modo, trata-se de uma abordagem

ampla do preconceito que enfatiza os fatores contextuais de modo geral. Poderíamos alocar a este enfoque os estudos acerca da comparação social de Festinger e seguidores, por exemplo, Festinger (1954 citado por Buunk & Gibbons, 2007).

Esta abordagem é criticada por dar pouca atenção aos processos psíquicos e históricos, uma vez que não são considerados os meios pelos quais as representações e valores são construídos, seja a historicidade dos fenômenos sociais, seja o campo ideológico e representacional das pessoas.

O enfoque psicodinâmico do preconceito, quarto proposto por Allport, por seu turno, parte de uma vertente psicológica que enfatiza o instinto, a personalidade, o caráter e a necessidade humana básica de busca de poder social. Em busca de satisfação, de sucesso e de status, surgem as disputas sociais e os conflitos. Através de sentimentos como perda, frustração, insegurança e competitividade, por exemplo, sentimentos como ódio e hostilidade seriam despertos e expressos. Como exemplos desta perspectiva podemos citar os estudos sobre projeção e preconceito (Ackerman & Jahoda, 1950; McClean, 1946) ou sobre frustração-agressão (Dollard et al., 1939) (todos citados em Duckitt, 1992).

Bastante semelhante ao enfoque situacional, o enfoque fenomenológico, quinto enfoque segundo Allport, refere que o comportamento de cada indivíduo é derivado do meio imediato que o cerca, ou seja, a visão de mundo das pessoas é desenvolvida a partir da adaptação destas ao seu meio.

O enfoque que se interessa pelo objeto estimulador de preconceito, o alvo de preconceito, também chamado de enfoque da reputação bem merecida (Allport, 1962), último enfoque, focaliza as diferenças reais entre os grupos como ponto de partida do preconceito. De fato, em termos de diferenças culturais e étnicas podemos perceber que existem determinadas particularidades entre os grupos que provocam sentimentos de antipatia e hostilidade, entretanto, parece um tanto quanto apressado concluir que por conta

destas diferenças determinados grupos sejam entendidos como inferiores. Alguns autores da cognição social (Haslam, Rothschild & Ernest, 2004; Leyens et al., 2003) argumentam que este seria um viés comum inerente aos processo de interação social que teria função de resguardar a imagem do próprio grupo.

Podemos supor que as diferenças entre os grupos possuam um caráter ameaçador da estabilidade social, que diante de certas características pertinentes a um grupo, um outro grupo se sinta ameaçado em seu estatuto social, ou na manutenção de seus valores, desta forma, teríamos dentro deste viés uma possível explicação para os sentimentos de aversão realista (ver McConahay & Hough, 1976; Pettigrew & Meertens, 1995). Ainda neste enfoque, uma outra forma possível de explicar o preconceito é através da teoria da interação. Essa teoria supõe que a interação entre os grupos (reais e não reais) são as fontes do problema. Através deste pensamento, temos que tanto ator como vítima do preconceito são importantes para compreender o fenômeno por completo. A esta perspectiva Allport não faz nenhuma objeção desde que se considere amplamente os fenômenos inerentes e interligados ao preconceito. “Tomemos em conta a ação simultânea de todas as causas de atitudes hostis que foram estabelecidas cientificamente, sem esquecermos de incluir aquelas características do objeto estimulador mesmo que os consideremos” (Allport, 1962, p. 242).

Todos os enfoques guardam em comum o fato de não terem o poder de isoladamente responderem ao fenômeno do preconceito por completo. O mais corriqueiro na literatura é encontrar um misto entre os diferentes paradigmas, na tentativa de assim abordar de forma mais ampla e realista os objetos de investigação (Sidanius & Pratto, 1999).

Uma outra aproximação a estruturação dos níveis de análise dos fenômenos psicossociais é apresentada por Doise (1982). Em linhas geais, este autor defende que

existem quatro níveis de análise através dos quais a psicologia social aborda seus objetos de estudo: (1) nível intraindividual, (2) nível interpessoal, (3) nível posicional e (4) nível ideológico.

O primeiro, o nível intraindividual, refere-se à análise dos processos psíquicos internos responsáveis pela estruturação da visão de mundo dos indivíduos. Segundo Doise (2002), os modelos utilizados neste nível se interessam pela maneira como as pessoas organizam suas experiências com o meio ambiente, por exemplo, as pesquisas sobre o equilíbrio cognitivo (ver Briñol, Horcajo, Bacerra, Falces &Sierra, 2003).

O segundo, o nível interpessoal ou interindividual, analisa o poder da situação imediata de interação social nos processos psicológicos. Os indivíduos são considerados como intercambiáveis e seus sistemas de interação são responsáveis por fornecer as explicações das dinâmicas desse nível. As pesquisas sobre redes de comunicação e as experiências com jogos de motivação podem ser citadas como modelos pertinentes a este nível de análise (ver Freeman, 1978; Terborg & Miller, 1978).

O terceiro nível, o nível posicional ou intergrupal, considera as diferentes posições que os indivíduos ocupam no tecido das relações sociais, características de uma dada sociedade, e analisa de que forma suas posições modulam os processos do primeiro e segundo níveis de análise. As pesquisas que relacionam grupos de estatutos sociais distintos, dominantes e dominados, majoritários e minoritários, podem ser exemplos deste nível de análise (Ellemers, Kortekaas & Ouwerkerk, 1999).

O quarto nível de análise, nível ideológico ou societal, interessa-se pela análise do efeito dos processos e sistemas sociais de crenças nos processos psicológicos. Desta forma, considera os sistemas de crenças, representações, avaliações e normas sociais. De acordo com Doise (2002), as produções culturais e ideológicas que são características de uma sociedade ou de determinados grupos sociais, não apenas têm a função de dar significado

ao comportamento dos indivíduos, mas desenvolvem ou suportam as diferenciações sociais em função dos princípios gerais. “Por exemplo, em nome de uma ideia ingênua de justiça, consideramos que as pessoas têm o destino que merecem” (Doise, 2002, p. 28). Os estudos com base na teoria da identidade social podem ser citados como exemplos de investigações nesta perspectiva (Doise, 2002; Lacerda et al., 2002).

Para Doise (2002), essa distinção em quatro níveis de análise não tem a função apenas de mera estratificação ou classificação, mas deve ser utilizada, principalmente, para facilitar a articulação dos diferentes níveis de análise a fim de análises mais completas. “Análises articulando vários níveis teóricos são mais completas; elas conduzem a uma melhor descrição de um processo conceitualizado em um dos níveis, precisando, prioritariamente, as condições de sua atualização, a partir dos outros níveis de análise” (Doise, 2002, p. 28).

Deste modo, ao pensar no preconceito como objeto de estudo a partir da formulação dos quatro níveis de análise da psicologia social proposta por Doise, podemos de modo análogo, considerar que o preconceito pode ser analisado por meio dos mesmos quatro níveis: no nível do processamento interno de informação (estruturas cognitivas); no nível das relações interpessoais (processos psicossociais); a partir da posição social do indivíduo dentro da sociedade (pertença grupal); e a partir das normas e representações sociais (nível ideológico).

Estas diferentes perspectivas de estudo da psicologia social refletem o contexto em que foram formuladas e, com efeito, determinam as estratégias de medida que foram utilizadas em cada época para avaliar os construtos pertinentes a esta disciplina.