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INFRA-HUMANIZAÇÃO VIA ATRIBUIÇÃO DIFERENCIADA DE TRAÇOS

CONTRIBUIÇÕES PARA O ESTUDO DO PRECONCEITO E RACISMO

2.3 P ERCEPÇÃO DE VARIABILIDADE DOS GRUPOS , ENTITATIVIDADE E ESSENCIALISMO

2.3.2 INFRA-HUMANIZAÇÃO VIA ATRIBUIÇÃO DIFERENCIADA DE TRAÇOS

Na psicologia os estudos sobre a infra-humanização se iniciaram com as hipóteses levantas por Leyens e colaboradores (Leyens et al., 2000; 2001; Paladino et al., 2002; Leyens et al., 2003) em que o essencialismo das diferenças entre os grupos foi redimensionado ao paradigma da atribuição de emoções primárias e secundárias às categorias sociais em função da relação endogrupo e exogrupo.

Não obstante, Lima (2003) em uma análise sobre o processo de infra- humanização, destaca que a infra-humanização aparece enquanto substrato em diferentes análises teóricas e empíricas, posto que quando se fala em essencialismo, racismo, hierarquização das diferenças, negação de atributos tipicamente humanos, sejam características, traços ou emoções a alguns grupos, se remete a alguma dimensão do processo de infra-humanização. Segundo este autor, os principais indicadores de infra- humanização utilizados nos estudos são a negação da capacidade do exogrupo a adotar valores tipicamente humanos, a caracterização de categorias raciais através da atribuição de traços naturais em oposição aos traços culturais e a atribuição de emoções primárias.

5 Utilizamos neste contexto os conceitos de desumanização, essencialização e infra-humanização como

semelhantes. Defendemos que os três conceitos possuem diferenças conceituais de ordem teórica e metodológica, porém em termos de aproximações empíricas, estão estreitamente vinculados ao preconceito e discriminação e por isso sua utilização desta forma neste segmento.

A negação da capacidade de aderir a valores tipicamente humanos foi inicialmente analisada por Struch e Schwartz (1989) em um trabalho sobre os preditores da agressão intergrupal. Estes pesquisadores conduziram um estudo com israelenses acerca de sua percepção sobre o endogrupo e sobre um grupo de judeus ultra-ortodoxos. Os participantes demonstraram alto nível de favoritismo endogrupal em suas avaliações, mas este viés não pode prever a agressão. Um indicador da agressão intergrupal que se destacou nesta investigação foi o conflito de interesses existente entre ambos os grupos. Os efeitos do conflito intergrupal na agressão parcialmente se apresentaram como mediadores de dois indicadores de desumanização do exogrupo (percepção de dissimilaridade dos valores e de traços não-humanos). Desta forma, ao passo que para o endogrupo seus valores possuem uma clara diferenciação dos valores do exogrupo, tanto maior será a identificação de desumanização do exogrupo, assim como, a percepção de traços não-humanos no exogrupo prediz a agressão. Contudo, esta relação apenas aparece quando os participantes apresentam uma alta identidade com os valores do próprio grupo.

Struch e Schwartz (1989) e Schwartz et al. (1990) sugerem que determinados valores, como valores pró-sociais, determinam o nível de evolução dos seres humanos em termos de sensibilidade moral, assim, quanto mais os membros de um grupo se desviarem dos princípios morais, mais próximos estarão da condição de desumanização. Schwartz et al. (1990) encontraram resultados semelhantes ao de Struch e Schwartz (1989) ao avaliarem a percepção dos israelenses acerca dos alemães. Na medida em que o povo alemão é caracterizado como uma sociedade que atribui pouca importância aos valores pró-sociais, o que fere as normas dos israelenses, os participantes se dispuseram fortemente antagônicos aos alemães.

Esses, Veenvliet, Hodson & Mihic (2008) em uma recente investigação sobre o processo de desumanização de refugiados no Canadá acreditam que a percepção dos

grupos desumanizados está diretamente associada a inferir baixa adesão desses grupos a valores pró-sociais, apresentando achados consistentes aos encontrados por Struch e Schwartz (1989) e Schwartz et al. (1990). Esses grupos seriam percebidos como injustos e imorais e isto acarretaria em conflitos intergrupais baseados nas atitudes e comportamentos negativos dirigidos aos membros destas categorias. As principais conclusões a que chegaram os autores indicam que o processo de desumanização ocorre em diferentes níveis simultaneamente: no nível da avaliação dos valores do exogrupo em relação ao endogrupo, no nível das imagens atribuídas ao exogrupo e na percepção de violação por parte do exogrupo dos princípios importantes para o endogrupo.

Outra forma de infra-humanizar categorias sociais é através da atribuição de traços naturais e traços culturais (Vilhena, 2007). Os traços naturais são caracterizados como atributos utilizados para referir humanos e animais e os traços culturais são exclusivamente traços utilizados para referir seres humanos (Moscovici & Pérez, 1997; 1999). Na medida em que certa categoria social é caracterizada como possuindo mais traços naturais do que traços culturais, infere-se que sua condição de humanidade é inferior a uma categoria social que possua mais traços culturais. Moscovici e Pérez (1997) acreditam que as representações sociais construídas sobre os grupos racializados estariam ancoradas nestes dois tipos de atribuição. Para testar esse pressuposto, esses pesquisadores realizaram um estudo junto a espanhóis sobre as representações sociais dos ciganos, no sentido de analisar de que forma a percepção de adesão da cultura dominante por parte do exogrupo pode afetar as representações que o endogrupo constrói dele. Os participantes eram convidados a ler um texto acerca da trajetória dos ciganos na Espanha em relação à adesão destes à cultura espanhola em dois cenários, um em que os ciganos não aderiram à cultura dominante e outro em que era informado que houve adesão dos ciganos em relação à cultura dominante. Utilizando uma lista de adjetivos positivos e negativos que refletem

traços naturais e culturais, os participantes emitiram seu julgamento. Os resultados indicaram que os ciganos que não aceitaram a integração cultural foram representados pelos espanhóis através de atributos mais naturais (por exemplo, intuitivo, fisicamente hábil, selvagem) do que culturais (por exemplo, criativo, leal a sua identidade, perverso, mal-intencionado), enquanto que os ciganos que permitiram a integração cultural receberam uma quantidade inferior dos atributos naturais.

Estudos subsequentes analisando o processo de infra-humanização a partir da atribuição de traços culturais e naturais com desenho semelhante aos apontados acima (Lima & Vala, 2005; Vala & Lima, 2002) encontraram resultados consistentes com os de Moscovici e Pérez, o que indica que a atribuição de traços naturais ou a negação de traços culturais a determinadas categorias sociais é um potente catalisador da saliência das diferenças intergrupais que confere a determinados grupos o estatuto de menos humanos do que outros ou de infra-humanizados.

Aguiar e Lima (2001) realizaram um estudo junto a participantes portugueses para verificar em que medida existe uma representação diferenciada entre características exclusivamente humanas e características que não possuem essa exclusividade e, portanto, são utilizadas para descrever tanto seres humanos como animais. As características exclusivamente humanas são definidas por serem flexíveis, maleáveis ao contexto e são aprendidas por meio do processo de interação. As características que podem ser referidas a seres humanos e animais são definidas por serem rígidas, geralmente de ordem biológica e inatas (Quadro 7).

Como referido anteriormente, nos estudos de Moscovici e Pérez (1997; 1999) a este conjunto de atributos de ordem fixa, biológica e inata dá-se o nome de traços naturais e ao segundo conjunto de atributos de ordem maleável e introjetados através da aprendizagem social, dá-se o nome de traços culturais.

Valência Traços Naturais Traços Culturais Positivos Esperto Alegre Intuitivo Espontâneo Fisicamente hábil Livre Dócil Simples Sincero ou leal Inteligente Progressista Sábio Competente Industrioso Civilizado Negativos Agressivo Ruidoso Selvagem Impulsivo Descontrolado Estúpido Feroz Falso ou mentiroso Infantil Supersticiosos Conservador Materialista Desonesto

Quadro 7: Dimensões do conteúdo dos traços naturais e culturais em função da valência (Aguiar & Lima, 2001)

Deschamps et al. (2005) realizaram uma investigação para testar a hipótese de que na atualidade o racismo e a xenofobia se expressam de forma direta e indireta, utilizando dentre outras medidas as medidas de atribuição de traços naturais e traços culturais. Os autores objetivavam especificamente avaliar de que forma os participantes atribuíam traços naturais e culturais ao endogrupo (suíços) e ao exogrupo (negros africanos e muçulmanos), sugerindo que a atribuição de traços naturais aos grupos alheios ou tidos como inferiores em maior grau é um indicador indireto de racismo e xenofobia. Os traços naturais foram codificados em quatro atributos: intuitivo, espontâneo, simples e livre. E os traços culturais foram codificados a partir dos seguintes atributos: competente, inteligente, honesto e civilizado. Os resultados se apresentaram consistentes com a hipótese proposta e os autores puderam concluir que o favoritismo endogrupal e a rejeição exogrupal ocorrem de fato, contudo é importante ressaltar que na percepção de exogrupos que possuem o mesmo estatuto social este fenômeno não se apresenta desta forma. Considerando grupos de mesmo nível social e que se avalie como pertencente às mesmas origens do endogrupo, a avaliação não segue via traços naturais. Neste estudo ainda, foi possível observar que nem

todos os grupos considerados inferiores socialmente são alvos de ontologização (apenas os negros africanos foram ontologizados), o que pode indicar que o processo de percepção tem origem multifocal, ou seja, um conjunto de processos funciona de modo simultâneo na construção das avaliações sociais (Deschamps et al., 2005).

Diante do exposto, observamos que a identificação de semelhanças e diferenças entre os estímulos a que estamos expostos na vida social permite a categorização e a construção de conhecimento. Como enfatizam Costa-Lopes e seus colaboradores (2008), “esses mesmos processos permitem a construção de conhecimento sobre nós próprios, sobre os outros, sobre os grupos em que nos incluímos e sobre aqueles que rejeitamos.” (p. 769). Desta forma, as maneiras pelas quais elaboramos a percepção e o julgamento intergrupal operam segundo a lógica do cruzamento entre o “nós” e o “eles”, de modo que o sentido e o valor atribuído às semelhanças e às diferenças se configuram como aspectos centrais na construção dos processos inerentes às relações intergrupais.

2.4CONCLUSÕES DO CAPÍTULO

A finalidade deste capítulo consistiu em avançar no debate sobre o preconceito considerando que tanto os processos pertinentes a um nível social quanto os processos subjacentes à expressão das atitudes negativas frente os grupos minoritários podem colaborar fundamentalmente para o entendimento do fenômeno do preconceito. Deste modo, exploramos os conceitos de identidade social e sua relação com conceitos correlatos, assim como, exploramos os postulados da percepção de variabilidade grupal, entitatividade e essencialismo. Neste contexto, enfatizamos que uma percepção diferenciada ou desigual de grupos sociais pode levar à infra-humanização de determinados grupos, sendo esse processo discutido algumas vezes como determinante do preconceito e algumas vezes como o preconceito em si.

Neste capítulo, foi possível evidenciar que as teorias que elencam as bases pelas quais a percepção das diferenças intergrupais opera utilizam pressupostos situados em distintos níveis de análise, considerando, sobretudo, as perspectivas que defendem a atualização dos fenômenos e processos intergrupais. Com isso, uma das considerações mais importantes a que chegamos aponta que qualquer que seja o fenômeno situado no quadro das relações intergrupais, trata-se de um fenômeno multideterminado e multifacetado, o que implica em dispor de estudos vinculados a diferentes níveis de análise (Doise, 1982) para uma compreensão mais abrangente. Por esta razão, debatemos os pressupostos da percepção de variabilidade grupal, entitatividade e essencialismo sempre à luz de fatores de ordem social ou cultural.

Podemos salientar, como conclusão, que modelos puramente sociais ou puramente cognitivos são igualmente insuficientes para explicar os enviesamentos na percepção e julgamento intergrupais. Conforme argumenta Cabecinhas (1998), a identidade social tem um impacto significativo na percepção dos grupos sociais, o que conduz a enviesamentos assimétricos relativos ao estatuto dos grupos envolvidos no processo de interação intergrupal, sendo esse processo a base comumente associada ao preconceito (Costa-Lopes et al., 2008; Haslam, Bastian, Bain & Kashima, 2006; Pereira et al., 2011).

Foi possível de se perceber também que a maior parte dos estudos sobre o preconceito considera que a estruturação deste fenômeno se dá por meio do processo de percepção de diferenças grupais (Haslam e Levy, 2006; Morton et al., 2009), mas sua interação com o contexto o define enquanto princípio normativo, seus níveis e formas de expressão (Lima e Vala, 2004b).

Finalmente, tendo discutido o conjunto de teorias e estudos que suportam uma perspectiva integradora no estudo do preconceito, na sequência, a partir desta perspectiva,

são apresentados dois estudos que procuram contribuir para o conhecimento sobre o preconceito de cor no contexto das relações raciais brasileiras.