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AÇÕES AFIRMATIVAS: abordagem histórico-conceitual e jurídica

3 AÇÕES AFIRMATIVAS NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO

3.1 AÇÕES AFIRMATIVAS: abordagem histórico-conceitual e jurídica

Compreendidas como importante conquista democrática para o campo dos direitos e da cidadania de minorias sociais, as ações afirmativas se encontram historicamente ligadas à construção de um espaço público multicultural51 – que teve início, no Brasil, com ativistas do movimento negro do século XX, ao atuarem em contestação ao mito da democracia racial freyreana, buscando chamar a atenção pública para a dimensão racial da desigualdade brasileira e para discriminação racial existente no país.

No início da década de 1920, essas denúncias eram veiculadas publicamente por meio da Imprensa Alternativa Negra (IAN), ensejando a criação de organizações politicamente organizadas na década de 1930, como a Frente Negra Brasileira (FNB), a qual, após importantes conquistas sociais na época, acabou por ser declarada ilegal e dissolvida com a instalação do Estado Novo. Inseridas num contexto de resistência cultural, foram surgindo outras organizações, como o Teatro Experimental do Negro (TEN) – fundado por Abdias do Nascimento em 1944, que trouxeram de volta ao debate público a questão racial, fazendo parte do cenário da Segunda República (período compreendido entre a redemocratização de 1945 e o golpe civil-militar de 1964).

Durante as décadas de 1950, 1960 e 1970, a dimensão racial da desigualdade social e econômica no Brasil passou a ser uma questão levantada não apenas por ativistas negros, como também por intelectuais do meio acadêmico, cujos estudos evidenciavam como essa desigualdade representava obstáculos fundamentais, principalmente, para a construção de normas e instituições democráticas, trazendo à tona a conexão entre democracia política e democracia racial (DOMINGUES, 2019, p. 103).

Dessa forma, a repressão ao debate da questão racial, a negação de sua existência, o não reconhecimento do movimento negro como ator político e das suas demandas, se fazem perceptíveis em governos autoritários ou conservadores. Isso é verificado com o golpe civil- militar ocorrido nos anos 1960, quando ficou proibida a divulgação de matérias relativas aos

51 Baseado na noção de espaço público elaborada por Habermas, a qual está centrada numa visão eminentemente

política da cidadania, Semprini (1999), analisando as especificidades de uma sociedade multicultural, concebe como “espaço público multicultural” aquele em que os conflitos sociais deixam de ser exclusivamente pelo controle dos recursos e dos meios de produção, além do poder político, e passam a abranger também disputas pelo controle da produção e distribuição de símbolos sociais.

indígenas, ao movimento negro e à discriminação racial, por exemplo. De acordo com Siss (2003), os militares se valiam de excessiva propaganda oficial de exaltação ao mito da democracia racial, tachando militantes, ou mesmo artistas, que levantavam o tema da discriminação racial, como “impatrióticos”.

A partir de meados dos anos 1970, porém, organizações do movimento negro retomaram o debate da questão racial no Brasil, passando a conceder prioridade à denúncia, ao questionamento e ao combate ao mito da democracia racial tal como preceituado pelo viés conservador e autoritário. As décadas de 1970 e 1980 passaram a ser marcadas, ainda, por uma série de manifestações culturais do movimento negro, buscando intervir na política de significações (SISS, 2003, p. 104) e introduzindo uma agenda multicultural no cenário político.

De acordo com Santos (2014), a nova oxigenação das entidades antirracistas culminou em um marco fundamental para a história dos movimentos de ativistas negros no Brasil: a criação, no ano de 1978, do Movimento Negro Unificado (MNU), que se deu a partir da articulação e aglutinação de diversas organizações negras presentes no país, num contexto em que o regime de exceção vigente passava por profundas críticas por parte da sociedade civil brasileira.

Desse modo, conforme Siss (2003), paralelamente à rearticulação política do movimento negro no final da década de 1970 e início dos anos 1980, o contexto brasileiro passa a estar caracterizado pela diversificação e expansão da agenda multicultural, fortalecida pelo engajamento de novos sujeitos coletivos históricos, como mulheres, jovens, homossexuais e membros de diferentes confissões religiosas. Para o autor, o Movimento Negro se tornou importante vetor de democratização e de modernização política. Aliado aos demais movimentos sociais, sua força se fez presente principalmente no processo constituinte iniciado em 1987 e concluído em 1988, com a promulgação da Constituição Federal da República do Brasil52.

O movimento pela adoção de ações afirmativas para segmentos sociais minoritários, engendrado principalmente a partir do fortalecimento do movimento negro no Brasil, tomou força no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, tendo como objetivo proporcionar condições reais de superação de desigualdades em diversos aspectos da vida nacional.

52 Para Santos (2014, p. 81), essa trajetória de lutas dos ativistas negros foram “luminares no empreendimento de

formular e executar medidas que, ao se direcionarem contra o racismo brasileiro, acabaram por erguer os pilares de um projeto de Nação onde todos pudessem efetivamente experimentar sua plena humanidade”.

Viera Jr. (2005) afirma que nesse período o mundo já convivia com experiências de iniciativa do Estado em benefício de segmentos discriminados: por questões de classe, como na Índia, em 1949; por questões de raça, como nos Estados Unidos da América, desde a Executive

Order nº. 10.925, de 1961; e por questões de gênero e minorias étnicas em diversos países

europeus, desde os anos 1970.

O autor lembra ainda que o Estado brasileiro, desde o século XIX, tem tido experiências de intervenção, por intermédio da legislação, com o fito de favorecer a integração de determinado segmento da população. Segundo Vieira Jr. (2005), não é novidade para o Estado brasileiro a adoção de políticas voltadas para a promoção de grupos sociais, que, em um dado momento histórico, se quis privilegiar:

Nem a dimensão racial dessa ação estatal é nova para o Brasil. A política imperial de estímulo à imigração de colonos brancos ao longo do século XIX e também a política de imigração da incipiente República brasileira demonstraram que a dimensão racial era priorizada na formulação de políticas públicas, sem que em nenhum momento de nossa história tivesse sido arguida a inconstitucionalidade dessas políticas com fundamento na suposta violação do princípio isonômico. O que é novo para o Brasil é a cor – preta – dos beneficiários da política estatal (VIEIRA JR., 2005, p. 93).

Uma das bandeiras de maior destaque do movimento antirracista do início da década de 1990 no Brasil foi a exigência, a título de reparação, do estabelecimento de políticas compensatórias, e até mesmo de uma indenização pecuniária, pelo Estado, a todos os descendentes de escravos africanizados. D’Adesky (2001, p. 156) cita como exemplo o movimento pelas reparações às vítimas da escravidão, lançado em novembro de 1993, em São Paulo, que tinha por objetivo aprofundar a reflexão sobre a impunidade de autores de atos atentatórios aos direitos dos negros no Brasil, em especial a impunidade do Estado e seus agentes diretos e indiretos.

Este movimento da década de 1990 é considerado por Vieira Jr. (2005) como sendo de grande relevância na construção da hipótese que objetiva caracterizar a adoção de políticas de ações afirmativas como o tipo de reparação mais adequado aos fins que se propõe: “contribuir para a instituição de uma sociedade multicultural, em que se reconheça a identidade, a cultura e os valores de brancos, negros, índios e outros grupos étnicos, sem qualquer espécie de hierarquização” (VIEIRA JR., 2005, p. 93).

Para a jurista Flávia Piovesan, o alvo das políticas de ações afirmativas seria o indivíduo “especificado”, um sujeito de direito que passaria a ser visto em sua peculiaridade e particularidade: “nesta ótica, determinados sujeitos de direito, ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica e diferenciada” (PIOVESAN, 2005, p. 36). Assim, a diferença não mais seria utilizada para a aniquilação de direitos ou como justificativa para o extermínio e a destruição. Ao contrário, a diferença passaria a implicar na promoção de direitos.

No que se refere a definições de ações afirmativas empregadas pela maioria dos estudiosos do assunto, observa-se pouca ou quase nenhuma diferenciação entre elas. Algumas linhas de argumentação possuem como fator diferencial o fundamento filosófico, ora reparador ora distributivo. Também apontam como objetivos dessas políticas a igualdade de tratamento e de oportunidades, além da eliminação ou mitigação das discriminações raciais, sexuais, entre outras. A seguir, serão abordadas algumas definições proferidas sobre ações afirmativas.

Ronald Walters (1995, p. 131) entende ações afirmativas como:

[...] conceito que indica que, a fim de compensar os negros, outras minorias em desvantagens e as mulheres pela discriminação sofrida no passado, devem ser distribuídos recursos sociais como empregos, educação, moradias, etc., de forma tal a promover o objetivo final da igualdade.

O fundamento filosófico utilizado pelo autor é a compensação ou reparação, com o reconhecimento de que o ponto de partida para obtenção dos direitos legais e legítimos na sociedade não foi o mesmo entre discriminadores e discriminados.

Ellis Cashmore (2000, p. 31) também utiliza fundamento filosófico relacionado à compensação, conceituando as ações afirmativas da seguinte forma:

[...] são medidas temporárias e especiais, tomadas ou determinadas pelo Estado, de forma compulsória ou espontânea, com o propósito específico de eliminar as desigualdades que foram acumuladas no decorrer da história da sociedade. Estas medidas têm como principais beneficiários os membros dos grupos que enfrentaram preconceitos.

Calcado, por sua vez, na concepção de justiça distributiva, a qual, segundo, Gomes (2001), concerne “à necessidade de se promover a redistribuição equânime dos ônus, direitos,

vantagens, riqueza e outros importantes ‘bens’ e ‘benefícios’ entre membros da sociedade”, o historiador George Andrews (1997, p. 137-138) diz que a ação afirmativa:

[...] indica uma intervenção estatal para promover o aumento da presença negra – ou feminina, ou de outras minorias étnicas – na educação, no emprego, e nas outras esferas da vida pública [...]. Tradicionalmente foram as pessoas brancas as favorecidas para qualquer oportunidade social ou econômica; com a ação afirmativa, o Estado estabelece certas preferências para as pessoas negras, mulheres, ou membros de outras minorias étnicas.

Gomes (2003, p. 27), oferecendo ampla conceituação a respeito, define as ações afirmativas como:

Um conjunto de políticas públicas ou privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.

Dessa forma, Gomes (2003) afirma que o combate à discriminação não deve limitar-se apenas ao campo normativo meramente proibitivo de discriminação. Seria necessário, segundo o autor, concretizar a “igualdade de oportunidades”. Além deste ideal, existem ainda outros objetivos almejados pelas políticas afirmativas: a eliminação dos efeitos persistentes (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado, tendente a se perpetuar; a implantação de certa diversidade e de uma maior representatividade de grupos minoritários nos mais diversos domínios de atividade pública e privada; e a eliminação das barreiras artificiais e invisíveis que emperram o avanço de negros e mulheres, por exemplo.

Quanto à forma de implementação das políticas de ação afirmativa e às formas que elas têm assumido no contexto da sociedade brasileira, Guimarães (2003) elenca sete tipos de ações afirmativas – o que não esgota as formas pelas quais elas são implementadas. São elas: 1- políticas de combate à pobreza e de distribuição de renda; 2- melhoria do ensino público fundamental e médio; 3- pré-vestibulares para negros e carentes; 4- bolsas de estudo para vestibulandos negros; 5- estabelecimento de cotas de admissão de negros; 6- estabelecimento de metas de absorção e 7- ampliação das vagas nas universidades públicas e gratuitas.

Entendida, pois, como uma modalidade de ação afirmativa, a reserva de vagas para estudantes negros por meio da política de cotas de admissão nas universidades, adquiriu força com a participação do Brasil na Conferência de Durban, na África do Sul, em 2001, tendo sido este um dos compromissos assumidos pelo país – compromisso resultante de um embate entre o Ministério da Educação e Cultura (MEC), que se opunha naquele momento à adoção de tal medida, e as lideranças do movimento negro, que defendiam e reivindicavam esse compromisso, de modo que prevaleceu ao final essa reivindicação.

Esse cenário, aliado a outros fatores inclusive internos às universidades, como a emergência de debates raciais no meio acadêmico, propiciou por parte das mesmas a adoção da política de cotas para negros. Quando não implementadas pela via administrativa, como no caso da Universidade de Brasília (UnB), as políticas surgiram a partir de leis estaduais, o que provocou debates ainda mais acirrados em relação à legitimidade desses programas – os maiores exemplos estão relacionados à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e à Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF).

Ainda assim, a aprovação dessas leis estava respaldada num mínimo de legitimidade advinda da Conferência de Durban, em 2001, e de pesquisas de opinião, como a realizada pelo Data Folha, em 1995 (DATAFOLHA / FOLHA DE S. PAULO, 1995), que indicava que quase metade dos entrevistados concordavam com reserva de vagas para negros no trabalho e no estudo. Percentual este que aumentava consideravelmente quando se analisava apenas a opinião entre aqueles que tinham renda familiar até dez salários mínimos.

O debate, entretanto, entre diversos setores sociais, era crescente e polêmico, mesmo após diversas universidades terem implantado pela via administrativa tal reserva de vagas, como a UFMA, em 2007. Nesse contexto, o partido político Democratas (DEM) propôs junto ao STF a ADPF nº 186, conforme mencionado no capítulo anterior, que questionava os atos administrativos do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da UNB que instituíram o programa de cotas raciais para ingresso naquela universidade53.

Depois de declarada a constitucionalidade das cotas com base em critérios étnico-raciais pelo STF no julgamento da ADPF nº 186, o Poder Legislativo, conforme o que também já foi explanado no capítulo anterior, promulgou a Lei 12.711 de 29 de agosto de 2012, tratando da

53 O DEM questionava ofensa aos seguintes fundamentos constitucionais: a) princípio da dignidade da pessoa

previsão dessa política e sua adoção por parte das IFES, conferindo ênfase, entretanto, à questão da origem escolar e renda, dentro das quais o critério étnico-racial passaria a ser tratado.

No intuito de pensar esse contexto e o reflexo dessas ações no cenário maranhense, retomam-se as políticas de ações afirmativas como objeto de estudo já tratado em outros momentos da minha vida acadêmica como pesquisadora, e que na presente tese tem como campo empírico a Universidade Federal do Maranhão, mais especificamente os cursos de Direito e de Pedagogia do campus de Imperatriz – segunda maior cidade do Estado e uma das primeiras no processo de interiorização e expansão desta universidade, iniciado nos anos 1980.