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6. A PESSOA COM DEFICIÊNCIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

6.2. Ações afirmativas

Ações afirmativas – lembram David Araújo e Serrano Jr mencionando o Grupo de Trabalho Interministerial – GTI População Negra - podem ser definidas como as “medidas especiais e temporárias, tomadas pelo Estado e/ou pela iniciativa privada, espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidade e tratamento, bem como de compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização, por motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros”.173

Vale dizer, são medidas que, levando-se em conta a realidade histórica de marginalização social ou de hipossuficiência associada a determinados fatores são adotadas, visando a concretizar o princípio da igualdade em sua vertente substancial.

Segundo os estudiosos, os Estados Unidos são considerados a principal referência para a discussão sobre as ações afirmativas relativas à questão racial.

Sabe-se pela história que aquele país viveu longo período de segregação racial, que se iniciou na década de 1890 e atingiu o seu auge no final da primeira década do século XX. Ao que se sabe, durante esse período vigorou uma severa separação entre brancos e negros nas escolas e em outras diversas áreas174 e

173ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JR., Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, cit. 174Em 1896, um caso questionando uma dessas leis segregacionistas chegou até a Suprema

Corte: o Caso “Plessy vs. Ferguson”. No referido caso, a Suprema Corte, com apenas um voto contrário, decidiu que a reserva de acomodações “separadas, mas iguais” para negros nos transportes ferroviários seria compatível com o princípio da igualdade, já que essa teria sido a intenção dos legisladores que aprovaram a cláusula da igualdade. A partir daí, foi desenvolvida a

somente durante a Guerra de Secessão, no período chamado de Reconstrução175, é que ali foi abolido o sistema escravista, ante a aprovação da

Emenda n. 13, de 1865, seguidas da Emenda n. 14, de 1868, que determinou a garantia de direitos civis e o implemento do due process of law e da Emenda n. 15, de 1870, que estendeu o direito de voto para os ex-escravos.176

Durante o período de “Reconstrução”, que vigorou de 1865-1877, várias foram as tentativas de se implantar medidas que unificassem os antigos servos na sociedade sulistas, mas com a reação do Sul, em 1865, grupos clandestinos de brancos criaram as sociedades secretas terroristas dos Cavaleiros da Camélia Branca e a da Ku Klux Klan, grupos defensores da segregação racial, que empregam a violência para perseguição dos negros, o que dá bem a idéia da dificuldade que é a transmudação de uma situação ideal, desejada, projetada mediante a positivação de princípios e regras jurídicas, para realidade social.

Daí a necessidade da implantação pelo Estado de ações afirmativas tendentes à concretização de um dado objetivo, e a persistência na sua manutenção, mesmo diante das dificuldades e resistências enfrentadas, consubstanciadas, muitas vezes, em preconceitos ou em interesses contrariados.

No sistema jurídico norte americano, a primeira referência à expressão "ação afirmativa" pode ser encontrada na legislação trabalhista daquele país de 1935 (National Labor Relations Act). Referida lei instituiu procedimentos para os direitos dos trabalhadores à representação sindical e defesa contra práticas trabalhistas injustas. Em sua Seção 10 (c) havia a previsão de que qualquer

doutrina “iguais, mas separados” (“equal but separate”). LIMA, George Marmelstein. As piores decisões da Suprema Corte dos EUA II – Caso Plessy vs. Ferguson. Disponível em: <http://direitosfundamentais.net/2008/10/23/as-piores-decisoes-da-suprema-corte-dos-eua-ii- caso-plessy-vs-ferguson/>. Acesso em: 02 maio 2015.

175Também surgiram no Sul os códigos negros, blacks codes, leis estaduais que lhes vedaram a

propriedade das terras, e os deixaram relegados ao oficio no trabalho agrícola, muitas vezes trabalhando para os seus antigos senhores, sob um sistema de endividamento, tirando qualquer possibilidade de tornarem-se cidadãos. A LUTA pelos Direitos Civis: de Abraham Lincoln a Martin Luther King. A reconstrução e a segregação. Disponível em: <http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/martin_king4.htm>. Acesso em: 18 maio 2015.

176“Os principais fatos históricos que antecederam imediatamente o término do regime escravista

são conhecidos: a eleição de Abraham Lincoln, em 1860, pelo Partido Republicano; a decretação da emancipação; a oposição dos estados sulistas, a tentativa de Secessão e o início da Guerra Civil; a vitória da União ratificada em 1865 e a consagração do abolicionismo”. PIRES, Julio Manuel; COSTA, Iraci Del Nero da. O capital escravista-mercantil: caracterização teórica e causas históricas de sua superação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 145, n. 38, jan./abr. 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103- 40142000000100006>. Acesso em: 21 out. 2014.

vítima de uma prática trabalhista injusta poderia denunciá-la ao Conselho Nacional das Relações de Trabalho (NLRB), que deveria adotar ações afirmativas para neutralizá-la, incluindo reintegração de funcionários com ou sem pagamento.177

A partir da década de 1950, em decorrência ao Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos, o sentido da expressão passou a aparecer muito mais ampliado nas leis e nos discursos proferidos por autoridades públicas. Assim, em 1961, o presidente John F. Kennedy, editou a Ordem Executiva 10925, que criou o Comitê para a Igualdade de Oportunidades no Emprego e determinou que “projetos financiados com recursos federais deveriam incluir ações afirmativas para evitar discriminações nas contratações e promoções no emprego”. Em 1965, o presidente Lyndon Johnson178, através do Civil Rights Act de 1964 e da Ordem Executiva 11246 estabeleceu metas de inclusão de minorias e definiu a ação afirmativa como uma política garantidora de igualdade formal entre os cidadãos, destinando recursos a fim de implantar programas de inclusão.179 Do Estado passou-se a exigir que para além de editar leis anti-segregacionistas, viesse

177“... The act established frameworks and procedures for workers' rights to union representation and

defense against unfair labour practices, as well as a mandate for unions to behave responsibly with this new franchise. Section stunfair labour practices, as well as a mandate for unions to behave responsibly with this new franchise. Section 10(c) provides that any victim of na unfair labor practice report it to the National Labour Relations Board (NLRB), which may then "take such affirmative actions, including reinstatement of employees withor with out back pay”. RUBIO, Philip F. A history of affirmative action: 1619-2000. Miss.: University Press, 2001. p. 92. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=wCl_aXzDjZAC&printsec=frontcover&dq=history+of+affirmati ve+action&hl=pt-BR&sa=X&ei=d1BZVcTWD8a1sQTj8YHwCQ&ved=0CB0Q6AEwAA>. Acesso em: 21 out. 2014.

178“Coube, então, a partir daquele momento, àquela autoridade norte-americana inflamar o

movimento que ficou conhecido e foi posteriormente, adotado, especialmente pela Suprema Corte norte-americana, como a affirmative action, que comprometeu organizações públicas e privadas numa ova prática do princípio constitucional da igualdade no Direito. A expressão ação afirmativa, utilizada pela primeira vez numa ordem executiva federal norte-americana do mesmo ano de 1965, passou a significar, desde então, a exigência de favorecimento de algumas minorias socialmente inferiorizadas, vale dize, juridicamente desigualadas, por preconceitos arraigados culturalmente e que precisavam ser superados para que se atingisse a eficácia da igualdade preconizada e assegurada constitucionalmente na principiologia dos direitos fundamentais. Naquela ordem se determinava que as empresas empreiteiras contratadas pelas entidades públicas ficavam obrigadas a uma “ação afirmativa” para aumentar a contratação dos grupos ditos das minorias, desigualados social e, por extensão, juridicamente”. ROCHA, Carmen Lucia Antunes. Ação afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica, cit., p. 285.

179GRUPO DE ESTUDOS MULTIDISCIPLINARES DA AÇÃO AFIRMATIVA – GEMAA. Ação

afirmativa no mundo: Estados Unidos. Instituto de Estudos Sociais e Políticos. Universidade do

Estado do Rio de Janeiro – UERJ, 2011. Disponível em:

<http://gemaa.iesp.uerj.br/dados/experiencias-internacionais/item/87-estados-unidos.html>. Acesso em: 30 mar. 2014.

também a assumir uma postura ativa para a melhoria das condições daquela minoria.

Nos anos 60, os norte-americanos viviam um momento de reivindicações democráticas internas, expressas principalmente no movimento pelos direitos civis, cuja bandeira central era a extensão da igualdade de oportunidades a todos. No período, começam a ser eliminadas as leis segregacionistas vigentes no país, e o movimento negro surge como uma das principais forças atuantes, com lideranças de projeção nacional, apoiado por liberais e progressistas brancos, unidos numa ampla defesa de direitos. (...) é nesse contexto que se desenvolve a idéia de uma ação afirmativa, exigindo que o Estado, para além de garantir leis anti-segregacionistas, viesse também a assumir uma postura ativa para a melhoria das condições da população negra.180

Nas décadas de 1970 e 1980, a política das ações afirmativas americanas esteve muito em voga, mas começou a se enfraquecer e ser frequentemente contestada já a partir dos anos de 1990. Em 2003, a Suprema Corte, decidiu por “admitir o uso do critério racial como um dos fatores a serem considerados na admissão às universidades, mas considerou inconstitucional o sistema de adição de pontos até então praticado pela Universidade de Michigan. Em adição, nos anos seguintes alguns estados, como a Califórnia e Michigan, aprovaram leis em referendo popular banindo a ação afirmativa. O sistema de metas e prazos instituído para o setor de construção sob contrato com o governo federal pela Ordem Executiva 11246, no entanto, continua vigente. Sua efetividade, contudo, tem variado significativamente ao longo do tempo de acordo com o ocupante da cadeira presidencial”.181

Mas a história das ações afirmativas não se restringiu aos Estados Unidos. Experiências semelhantes ocorreram em vários países da Europa Ocidental, na Índia, Malásia, Austrália, Canadá, Nigéria, África do Sul, Argentina, Cuba, dentre outros. Na Europa, as primeiras orientações nessa direção se deram em meados da década de 1970, com a freqüente utilização da expressão “Ação ou

180MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de Pesquisa, n.

117, nov. 2002. SciELO Brasil. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cp/n117/15559>. Acesso em: 22 nov. 2014.

181GRUPO DE ESTUDOS MULTIDISCIPLINARES DA AÇÃO AFIRMATIVA – GEMAA. Ação

afirmativa no mundo: Estados Unidos, cit. “A ação afirmativa, tal como aplicada nos Estados Unidos, de onde partiu como fonte de outras experiências que vicejaram nas décadas de 70 e 80, é devida, em grande parte, à atuação da Suprema Corte”. ROCHA, Carmen Lucia Antunes. Ação afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica, cit., p. 286.

discriminação positiva”. Em 1982, a discriminação positiva foi inserida no primeiro Programa de Ação para a Igualdade de Oportunidades da Comunidade Econômica Europeia (Centro Feminista de Estudos e Assessoria, 1995, Estudos Feministas, 1996).182

Vê-se, pois, que da mera adesão passiva de não discriminar, as ações afirmativas tomaram dimensão global, levando o Poder Público a adotar medidas tendentes a promover a inclusão social de minorias, conferindo, desse modo, novo conteúdo jurídico ao princípio da igualdade, como observa Carmem Lúcia Antunes Rocha:

“A mutação produzida no conteúdo daquele princípio, a partir da adoção da ação afirmativa, determinou a implantação de planos e programas governamentais e particulares pelos quais as denominadas minorias sociais passavam a ter, necessariamente, percentuais de oportunidades, de empregos, de cargos, de espaços sociais, políticos, econômicos, enfim, nas entidades públicas e privadas”.183

E complementa a doutrinadora mineira observando que acompanhando essa mudança, “é que se entronizou, no sentimento jurídico dos povos, a consciência de uma necessária transformação na forma de se conceberem e aplicarem os direitos, especialmente aqueles listados entre os fundamentais. Não bastavam as letras formalizadoras das garantias prometidas; era imprescindível instrumentalizarem-se as promessas garantidas por uma atuação exigível do Estado e da sociedade”.184

Dentre nós, a própria Constituição de 1988 já prevê algumas ações afirmativas destinadas a superar desigualdades e a ampliar o acesso de certos grupos sociais a determinados bens e direitos.

Assim, por exemplo, o artigo 37, VIII da Constituição de 1988, regulamentado pelo artigo 5°, §2°, da Lei n° 8.112/90, instituiu a reserva de vagas para pessoas portadoras de deficiência em concursos públicos.

182MOEHLECKE, Sabrina. op. cit., p. 199.

183ROCHA, Carmen Lucia Antunes. Ação afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da

igualdade jurídica, cit., p. 285.

Com o mesmo escopo, a Lei n° 9.213/91, em seu artigo 93, também criou uma ação afirmativa em prol dos deficientes físicos ao determinar que as empresas deveriam empregá-los em percentuais mínimos que variam de acordo com o porte da empresa e a quantidade de empregados. Semelhantemente, a Lei n° 8.666/93 em seu artigo 24, inciso XX estabelece a dispensa de licitação nos casos em que a Administração Pública desejar contratar associação de portadores de deficiência física, sem fins lucrativos, para a prestação de serviços ou fornecimento de mão-de-obra. Trata-se de inegável política afirmativa de inclusão da pessoa com deficiência.

Além das ações afirmativas em prol das pessoas com deficiência, a Constituição de 1988 também prevê em seu artigo 5°, inciso XX, o direito fundamental de proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei.

Ou seja, percebe-se que a Constituição Federal de 1988 é generosa em termos distributivos, vez que contém um amplo rol de direitos e garantias individuais, enuncia um extenso capítulo dedicado aos direitos sociais, bem como contém outras normas de natureza redistributiva.

Dentre as leis existentes que visam à superação das desigualdades entre homens e mulheres no Brasil, cabe citar a Lei n° 9.504/97, a qual em seu artigo 10, § 3° estabelece que cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo, de modo a possibilitar que o patamar mínimo seja preenchido por mulheres.

Também podemos mencionar a Lei n° 9.029/95, a qual proíbe a adoção de práticas discriminatórias e limitativas para acesso à relação de emprego por motivo de sexo, incluindo a proibição de exigência de atestados de gravidez e esterilização para efeitos admissionais ou de manutenção da relação de trabalho.

PARTE II

O PAPEL DO ESTADO NA REALIZAÇÃO DOS OBJETIVOS DA

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

1. CARACTERÍSTICAS DO ESTADO FEDERAL

1.1. Colocações iniciais

Sabemos todos que a característica básica de uma federação reside na existência de uma ordem soberana de poder, composta por outras ordens de poder dotadas de autonomia, ou seja, de capacidade de autodeterminação, por meio de auto-legislação, auto-organização e auto-administração exercitáveis, sem subordinação à ordem central de poder, no âmbito das competências que lhes foram conferidas pela lei fundamental do Estado Soberano que integram.

A descentralização é, pois, o traço marcante do Estado Federal. Ela demanda a partilha de competências entre as esferas de poder componentes, o que, ao mesmo tempo em que colabora para evitar a concentração do poder estatal num único ente, o que tende a fazer surgir terreno fértil para o autoritarismo, com o aniquilamento das liberdades públicas e da própria democracia, também concorre para a busca da eficiência da atuação estatal, por meio da multiplicação dos centros de decisão política e de atuação administrativa.

Assim, a atribuição de competência aos entes autônomos, além de constituir característica do estado federal e figurar como exigência de harmoniosa coexistência entre eles, é também uma maneira de conferir substância à autonomia recíproca, de tal sorte que todos sejam chamados, por responsabilidade própria, à concretização dos objetivos do Estado.

Vale dizer, a existência de várias ordens autônomas de poder, além de concorrer para a prática da democracia, pela não concentração excessiva de competências num único centro de poder, também conduz à eficiência do estado

à vista da colaboração e da co-responsabilização dos entes parciais, vez que todos são conclamados à realização de uma obra comum.