• Nenhum resultado encontrado

É polêmica a escolha entre o “universalismo” e a “seletividade”, dilema enfrentado pelos Estados Liberais. Os adeptos da “seletividade” entendem que o bem estar a ser prestado pelo Estado deve se restringir somente aos necessitados, pelo que o Estado teria deveres meramente residuais para com os indivíduos; já os “universalistas” defendem – superando-se o mero assistencialismo, de solidariedade limitada – que “todos” os cidadãos devem receber prestações estatais, independente de sua condição social, evitando-se criar “cidadãos de segunda classe”, que concorre para a estigmatização dos pobres como dependentes do Estado.259

Conforme exposto em capítulos anteriores, as Constituições brasileiras que precederam a atual declaravam direitos individuais e sociais que atingiam apenas uma pequena parcela da população. Diversamente, a Constituição de 1988, por sua vez, é exaustiva, sobrecarregada de declarações, porém, como observa Marcelo Neves, “a prática política e o contexto social favorecem uma concretização restrita e excludente dos dispositivos constitucionais”260, o que é de

se lamentar, vez que quando se assume o compromisso de defender a Constituição, os órgãos estatais são investidos de competência vinculada à concretização dos direitos fundamentais.

Deveras, em conformidade com as premissas estabelecidas, “o Estado não desfruta do poder na condição de dono ou senhor, mas como representante do titular, que é o povo. Os particulares, embora sofram o poder, não são mero objeto dele. É intuitivo, destarte, que as relações jurídicas entre Estado e indivíduo, conquanto marcadas pelo signo da autoridade – visto estar em causa o exercício do poder político –, não se processa sob o império da submissão. Ainda

259Cf. SANTOS, Marisa Ferreira. O princípio da eletividade das prestações de seguridade social.

São Paulo: LTr, 2004.

260Cf. NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

porque o indivíduo, mesmo em suas relações com o Estado, apresenta-se sujeito livre, munido de direitos”.261

Nessa situação, deve ser reconhecido o fato objetivo de que o Estado detém autoridade central que dispõe de recursos a ser divididos, devendo haver conciliação entre as liberdades e – no que toca ao nosso tema – a ordenação das desigualdades, alocando-se recursos de modo a priorizar aqueles menos favorecidos – ou no caso, aqueles com necessidades especiais tais como o são as pessoas com deficiência –, de modo a redistribuir as oportunidades para o pleno desenvolvimento coletivo.

Como seria ingenuidade esperar uma distribuição espontânea pelo mercado – “laisse-faire” – essa missão cabe ao Estado. Bem por isso é que não se pode negar normatividade ao Preâmbulo da Constituição da República e se deve extrair a máxima prescritividade do seu artigo 3º, cujos dispositivos apontam para prática da remoção das desigualdades e da inclusão social das pessoas com deficiência por meio da tributação. Como observou Tathiane dos Santos Piscitelli, “nossas instituições jurídicas e, em especial, o direito tributário, está desenhado com vistas a garantir a redistribuição de bens e rendas, de forma a atingir uma sociedade mais justa e isonômica”.262

A propósito, tenho que não pode ser oposta à inclusão das pessoas com deficiência a carência da concretização jurídico-normativa da Constituição, porque a remoção das barreiras que impedem o pleno desenvolvimento dessas pessoas insere-se no contexto do “mínimo-existencial”, pelo que não se submete ao princípio da “reserva do possível”, entendida como a limitação orçamentária que resulta em uma indisponibilidade financeira para concretizar direitos263 ou como a uma pretensa “discricionariedade” concedida ao legislador para executar políticas públicas.264

261Cf. SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros Ed.,

2003. p. 109-110.

262Cf. PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Argumentando pelas consequências no direito tributário.

São Paulo: Noeses, 2011/2012. p. 215.

263Cf. SCAFF, Fernando Facury. Sentenças aditivas, direitos sociais e reserva do possível. In:

SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. 2. ed. Porto Alegre: Livr. do Advogado Ed., 2010. p. 151.

264Cf. TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

Deveras, quando estão envolvidas pessoas inseridas em grupos vulneráveis, não existe margem de discricionariedade para a execução de políticas públicas tendentes a protegê-las, tal como já decidiu o Supremo Tribunal Federal em caso envolvendo a proteção das crianças e adolescentes (“cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da ‘reserva do possível’ – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade” – RE 667.745/SC, Rel. Min. Celso de Mello, j. 24-2-2012, DJe 5-3-2012), traduzindo – ainda que não de maneira expressamente assumida – a adoção do princípio da “proibição da proteção insuficiente” (“Untermassverbot”).

Por outro lado, tendo em vista que a Constituição da República prevê uma estrutura mínima de financiamento dos direitos fundamentais no Brasil, forçoso é concluir que a tredestinação de recursos arrecadados por contribuições e as sucessivas “Desvinculações das Receitas da União” retiram respaldo para que se alegue escassez de recursos para a efetivação dos direitos fundamentais, revelando, na verdade, imperícia do próprio Estado em manejar os instrumentos tributários e financeiros que já se encontram disponíveis. “Assim, se fizermos uma comparação ainda que superficial entre o que o governo orça para gastar em saúde e o que gasta pagando a dívida pública veremos que existe uma reserva do possível geral no Brasil que impede os gastos sociais que se chama dívida pública. Enquanto não houver solução para esse problema não haverá como reduzir o esforço fiscal do Estado, a carga tributária e o nanismo nos investimentos sociais”.265

265Cf. SILVEIRA, Paulo Caliendo. Reserva do possível, direitos fundamentais e tributação. In:

SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. 2. ed. Porto Alegre: Livr. do Advogado Ed., 2010. p. 182.