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4. AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

4.1. Terminologia e conceito

A terminologia envolvendo a deficiência – e o conceito daí emanado – vem experimentando constante evolução.

A “Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes”, de 9 de dezembro de 1975, da ONU, para se referir ao segmento humano de que ora nos ocupamos, utilizava o termo “pessoas deficientes” e explicitava: “O termo ‘pessoas deficientes’ refere-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência congênita ou não, em suas capacidades físicas, sensoriais ou mentais”.87 No Brasil, como veremos, o legislador utilizou em seu

ordenamento a palavra “excepcional” e, posteriormente, o termo “deficiente”. O texto da CF/1988 ainda emprega e expressão “pessoa portadora de deficiência”, conquanto a atual Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU e seu Protocolo Facultativo, incorporados ao nosso ordenamento constitucional nos moldes do preconizado no § 3.º do art. 5.º da CF/88, já empreguem a terminologia “pessoa com deficiência”.

No presente trabalho estamos a empregar a terminologia haurida da Convenção da ONU, embora, muitas vezes, utilizemos as expressões tal como positivadas.

Quanto ao que se possa entender por “deficiência”, observa Luiz Alberto David Araujo88 que, segundo o senso comum, “sempre temos presentes a ideia de que a pessoa com deficiência é aquela que sofre de um mal que lhe afeta os movimentos ou os sentidos, olvidando espécies menos frequentes de deficiência, mas de gravidade de mesmo porte”.

87RIBAS, João B. Cintra. O que são pessoas deficientes. São Paulo: Nova Cultura; Brasiliense,

1985. p. 10. (Coleção Primeiros Passos).

88ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas com deficiência. 4. ed.

Brasília: Coordenadoria. Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência - CORDE, 2011.

A Convenção da Guatemala para eliminação de todas as formas de discriminação contra pessoas com deficiência, assinada em 199989, da qual o

Brasil é signatário, define “deficiência” como sendo uma situação ou estado que caracterize “uma restrição física, mental ou sensorial de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico ou social”, cujo conceito incorporou-se, como visto, à nossa legislação. Posteriormente, a Lei 7.853/89 utilizou a expressão “pessoas portadoras de deficiência”, cujo termo ainda é o encontrado no corpo da CF/88.

A diversidade terminológica reflete a dificuldade de se estabelecer um conceito sobre o fenômeno. Tanto assim que o próprio preâmbulo da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (número 5) reconhece expressamente que “a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras atitudinais e ambientais que impedem sua plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”.

Inegável, contudo, que essa evolução conceitual e terminológica apresenta-se repleta de significados, representando importante fator de eliminação da carga de preconceito que envolve o tema.

Antes, o emprego do vocábulo “deficiente” já trazia consigo uma carga de negativa, por encerrar uma ideia preconceituosa, visto que associado a um grupo de pessoas estigmatizadas por uma peculiaridade – a falha, a falta – que o distinguia dos “normais”. Era um grupo de “refugos”, para utilizarmos uma expressão tão cara a Bauman.90 Numa etapa seguinte, passou-se a empregar outra designação que também exprimia um (pré)conceito: “pessoa portadora de deficiência”. Apesar da conotação negativa da expressão, é inegável que representou um avanço, porque já não mais se tinha por referência um grupo de rejeitados, de refugos, mas um grupo de pessoas, essencialmente pessoas, estas dotadas de dignidade humana, atributo inerente aos seres humanos, em decorrência dessa essência sui generis. Apenas que se tratavam de pessoas que,

89Ratificada, por manifestação do Poder Legislativo, e promulgada pelo Decreto n.º 3.956, de

outubro de 2001.

segundo a concepção de então, “portavam”, isto é, carregavam consigo, uma marca estigmatizante que as distinguiam das demais: a deficiência. Por fim, no estágio atual, a designação utilizada, “pessoas com deficiência”, ao situar a identificação no substantivo “pessoa”, sobreleva essa característica intrínseca, de ser dotado de dignidade humana, o que permite que se caminhe em direção à eliminação do preconceito presente no qualificativo “deficiente”, que antes servia para distinguir negativamente o grupo, mas que agora permite identificar uma característica, uma particularidade que, antes de discriminar, caracteriza-se como um farol que sinaliza ao Estado – e à sociedade – o dever de se olhar para esse grupo de pessoas na busca de identificar as barreiras que as impedem a uma perfeita integração socioambiental que lhes permita o desenvolvimento de todas suas potencialidades.

Conquanto, como dito, mesmo que a Constituição Federal de 1988 ainda traga no corpo permanente de seu texto a expressão “pessoa portadora de deficiência”, nosso ordenamento constitucional já incorporou a nova denominação dada pela ONU, através da Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência, porque a introdução dessa norma de direito internacional ocorreu na forma do art. 5.º, § 3.º da CF91, o que lhe dá status de Emenda Constitucional, vez

que se trata de Convenção que versa sobre Direitos Humanos.

Esse documento internacional, agora norma jurídica interna, que revela o propósito da Convenção como sendo “o de promover, proteger e assegurar o desfrute pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por parte de todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua inerente dignidade”, estabelece o conceito atual de pessoas com deficiência, a saber:

“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas”.92

91Trata-se do primeiro documento internacional sobre Direitos Humanos inserido no ordenamento

jurídico brasileiro com dignidade de norma constitucional.

92BRASIL. Decreto Nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm>. Acesso em: 07 jan. 2013.

A par disso, acha-se em tramitação na Câmara dos Deputados o Estatuto da Pessoa com Deficiência, já aprovado no Senado Federal93, que, em seu art.

2.º, reafirma o conceito de pessoa com deficiência, a saber: “Consideram-se pessoas com deficiência aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.94

Logo, segundo o conceito e terminologia atuais, “pessoa com deficiência” é aquela que tem impedimentos de ordem física, mental, intelectual ou sensorial, os quais (impedimentos) – não em si mesmos, mas que – em interação com diversas barreiras (existentes no meio social) podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

Vale dizer, a deficiência se deslocou da pessoa (que não é “deficiente” e nem “porta” (ou carrega) fardo algum) para se alojar na sociedade que, com suas barreiras (as quais se não removidas) impede que uma pessoa com algum impedimento de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, se integre a essa mesma sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

Por essa nova estruturação filosófico-normativa, alicerçada numa visão humanística da questão, com base na dignidade da pessoa humana, “deficiente”, agora, passa a ser a sociedade, se ela se mostrar incapaz de integrar em seu seio, em igualdade de condições com as demais, a pessoa com deficiência, isto é, pessoa com algum impedimento de longo prazo de natureza física, mental,

93Quando já pronto o presente trabalho, em condições de ser depositado, foi publicada, em 6 de

julho de 2015, a Lei 13.146, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (ou Estatuto da Pessoa com Deficiência), cujo diploma incorporou a nomenclatura e os conceitos adotados pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo n.º 186, de 9 de julho de 2008, em conformidade com o procedimento previsto no § 3.º do art. 5.º da Constituição da República Federativa do Brasil, em vigor para o Brasil, no plano externo, desde de 31 de agosto de 2008, e promulgados pelo Decreto n.º 6.949, de 25 de agosto de 2009, data de início de vigência no plano interno.

Segundo referido Estatuto, “Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (art. 2.º).

94SECRETARIA NACIONAL DE PROMOÇÃO DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA.

Estatuto da Pessoa com Deficiência. Disponível em:

<http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/arquivos/%5Bfield_generico_ima gens-filefield-description%5D_93.pdf>. Acesso em: 16 mar. 2015.

intelectual ou sensorial que encontre barreiras socioambientais que impedem ou dificultam sua inclusão.

De se frisar que embora a deficiência decorra de algum impedimento de natureza física, mental, intelectual ou sensorial que acomete a pessoa – essa condição é um pressuposto para que alguém seja classificado com “pessoa com deficiência” –, o que a caracteriza do ponto de vista da necessidade de inclusão é “desvantagem” competitiva decorrente da desequiparação de oportunidades. Ou seja, a desvantagem diz respeito aos obstáculos encontrados pelas “pessoas portadoras de deficiência” em interação com a sociedade: pessoas que “portam deficiência” não conseguem emprego (o mercado de trabalho as exclui), crianças com algum impedimento quanto à saúde física, mental ou sensorial não conseguem frequentar escola porque esta não se adapta a elas (a escola as exclui), pessoas que se locomovem em cadeiras de roda não conseguem utilizar as ruas e logradouros, por causa dos vários obstáculos físicos e arquitetônicos (a arquitetura e o urbanismo as exclui), pessoas “deficientes” não conseguem frequentar determinados locais porque não são ali aceitos (a sociedade as exclui). Chegou-se ao cúmulo de um “deficiente físico” ser literalmente esquecido no interior de aeronave.95

Para efeito de fixação da ideia, registro que por esse atual conceito de deficiência, não se qualificaria como “pessoa com deficiência”, a merecer, em razão dessa característica, a proteção do Estado, o caso de um notório banqueiro brasileiro que embora se desloque em cadeira de rodas, mas não encontra quaisquer dificuldades com os obstáculos arquitetônicos ou sociais que porventura se lhes apresente – porque ele próprio, por sua condição socioeconômica, reúne plenas condições para removê-los –, e nem também um festejado desportista, velejador olímpico, que tendo sido vítima de um acidente ocasionado por um veículo aquático, ainda assim desfruta de uma vida plena e,

95Em julho de 2012, a imprensa noticiou que o escritor Marcelo Rubens Paiva, que é cadeirante,

foi “esquecido” pela tripulação de um vôo que pousou no aeroporto de Congonhas, em SP, somente conseguindo deixar a aeronave depois de algum tempo, por haver pedido auxílio através das redes sociais (MARCELO Rubens Paiva diz ter sido esquecido em avião em SP. Terra, 3 jul. 2012. Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/marcelo-rubens- paiva-diz-ter-sido-esquecido-em-aviao-em-

ademais, ainda desenvolve reconhecidos trabalhos educacionais e desportivos que promovem a inclusão social de pessoas com deficiência.

Isso dá bem a idéia de deficiente, portanto, não é a pessoa. É a sociedade, discriminadora e excludente, por falha do Estado.

Mas essa deficiência da sociedade, essa omissão do Estado, é repudiada pelo ordenamento constitucional. Trata-se de intolerável violação à Constituição que impõe ao Estado o dever de criar estratégias, desenvolver políticas públicas capazes de promover a inclusão das pessoas com deficiência, resgatando dívida histórica para com esse segmento vulnerável. Para isso, esse deslocamento da “deficiência” da pessoa para a sociedade faz aumentar a responsabilidade desta para com a solução do problema, impondo a ela, sociedade, o dever de cobrar atuação positiva do Estado, e com este colaborar na prática da inclusão.

Nesse sentido, Izabel Maria de Loureiro Maior assevera que:

“Ao reconhecer que a deficiência pode estar e, normalmente está, muito mais na sociedade geradora de barreiras físicas, de atividades e bloqueios emocionais, do que nas pessoas rotuladas de deficientes, o grupo social encontra o caminho da garantia dos direitos humanos – políticos, civis, econômicos, sociais e culturais como a melhor e única política pública adequada para propiciar a equiparação de oportunidades aos cidadãos e cidadãs com deficiência de faixa etária, gênero, raça, etnia e classe socioeconômica diferentes. E, para fazer valer os direitos humanos desse imenso mosaico chamado segmento de pessoas com deficiência, cabe ao Estado e à sociedade adotarem ações afirmativas, com o intuito de acelerar a defasagem social e econômica de grande parte desse grupo, adotar políticas sociais, com foco bem definido para evitar o risco do assistencialismo vazio, sem promoção social auto-sustentável. E para a realização dessas ações afirmativas, a Tributação figura como um importante instrumento, capaz não só de financiar políticas como direcionar a sociedade a implementar as práticas que resultem na inclusão da pessoa com deficiência”.96

96MAIOR, Izabel Maria de Loureiro. Deficiência sob a ótica dos direitos humanos. In. SOUSA Jr.,

José Geraldo et al. (Orgs.). Educando para os direitos humanos: pautas pedagógicas para cidadania na universidade. Porto Alegre: Síntese, 2004. p. 242.