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PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL

Finalmente, releva notar que a cultura constitucional no Brasil avançou a ponto de concretizar o “princípio da proibição do retrocesso social”266, acolhido no

âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal267 como vetor axiológico para conferir uma eficácia substantiva às normas programáticas que concretize os fins sociais, as exigências do bem comum, priorizando-se o dever de progressiva implantação dos direitos fundamentais e ampliação da cidadania inclusiva (art. 3º, I e III, art. 5º, par. 2º; art. 7º da Constituição da República), legitimando-se o Poder Judiciário para controlar as políticas públicas quando constatada qualquer tendência de exercício de função legislativa – reformadora/constitucional ou infraconstitucional – que resulte em reduzir os direitos já conquistados: “inconstitucional é exatamente gerar omissão inconstitucional que já não existia [... ] Mora inconstitucional quando inexiste a lei integradora; quando esta já existe, não se pode voltar ao status quo anterior de vazio normativo e de ineficácia consequente da norma constitucional [...] quer dizer que a implementação da Constituição não pode sofrer retrocesso” (trechos da manifestação do Ministro Sepúlveda Pertence, nos debates no julgamento da ADI 2.065/DF, j. 17-2-2000, p. 141-142 do acórdão); “a nova Constituição traz uma conquista política, social, econômica e fraternal, de que natureza for, e a petrealidade passa a operar como uma garantia do avanço, então obtido. Uma interdição ao retrocesso” (trecho do voto do Ministro Carlos Ayres Britto, no julgamento da ADI 3.104/DF); “a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua

266Cf. SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed., 3. tir. São Paulo:

Malheiros Ed., 2009. p. 84,158; BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 152; FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Um Projeto de Código Civil na contramão da Constituição. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, ano 1, v. 4, p. 249, out./dez. 2000; STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 706; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livr. do Advogado, 2011. p. 433-452; DERBLI, Felipe. O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 210-249; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; CORREIA, Erica Paula Bacha. Curso de direito da seguridade social. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 93-101; MIGUEL, Daniel Oitaven Pamponet. O direito como integridade comunicativa: uma compreensão histórica do princípio da proibição de retrocesso social. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011. p. 190-191.

267Há literal e expressa menção pelo Supremo Tribunal Federal ao celebérrimo precedente do

Tribunal Constitucional de Portugal, Acórdão 39/2014, no julgamento das ADI 3.105-8/DF e ADI 3.128-7/DF.

concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional [...] de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos, exceto nas hipóteses – de todo inocorrente na espécie – em que políticas compensatórias268 venham a ser

implementadas pelas instâncias governamentais” (trecho do voto do Ministro Celso de Mello, no julgamento das ADI 3.105-8/DF e 3.128-7/DF); “[as cláusulas pétreas] na Constituição de 1988 não cumprem uma função conservadora, mas, sim, impeditiva de retrocesso, ou seja, garantem o progresso [...] o progresso então obtido é preciso ser salvaguardado” (trecho do voto do Ministro Carlos Ayres Britto, no julgamento das ADI 3.105-8/DF e 3.128-7/DF); “o princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. [...] Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever de não só torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados” (trecho do voto do Ministro Celso de Mello, no julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário 639.337/SP).

Sendo assim, no que toca à efetiva e concreta proteção estatal à pessoa com deficiência e sua inclusão social por meio de políticas públicas e ações afirmativas tendentes à remoção das barreiras que têm, ao longo de nossa constitucional, impedido essa inclusão, o caminho nessa direção até aqui percorrido – embora não da forma coordenada como preconizado pela Carta Magna – não pode sofrer retrocesso, cabendo ao Poder Judiciário velar para que os benefícios fiscais, assim como as exonerações tributárias, a exemplos das várias isenções até aqui concedidas em favor das pessoas com deficiência, visando a mais plena possível inclusão social, não sofram retrocesso mas, ao contrário, avancem até que elas atinjam a igualdade material “no ponto de partida”.

268Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra:

CONCLUSÕES

Vemos, finalmente e, depois de tudo, que a Constituição da República de 1988 elegeu valores, estruturados em torno da dignidade da pessoa humana, impondo ao Estado a tutela, a proteção, de grupos vulneráveis e, mais do que isso – quanto ao que importa ao tema de que tratamos –, a promoção, por meio de ações afirmativas, da inclusão social das pessoas com deficiência as quais, em face de um impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, e à vista das barreiras socioambientais que se lhes apresentam, não logram alcançar a plena realização de suas potencialidades, não conseguindo, em consequência, desfrutar na plenitude da vida social.

Importa destacar que por muito tempo, o Estado Constitucional, inicialmente de feições liberais, pouco se preocupara com o reconhecimento de direitos sociais, e mesmo quando passou a fazê-lo, já no estágio de Estado Social, as normas jurídicas positivadas mal ultrapassavam o nível da retórica.

Com o advento do Estado de Direito e máxime com o Estado Democrático de Direito plasmado em na vigente Constituição promulgada em 1988, foram solenemente reconhecidos, declarados, inúmeros direitos sociais a grupos vulneráveis específicos ou a pessoas em situação de eventual vulnerabilidade como a criança, o adolescente, o jovem, o idoso, a gestante e a pessoa com deficiência, entre outros, passando a proteção dessas pessoas a ser um dever imposto ao Estado que, assim, vê-se na obrigação de manejar – e não só de manejar, mas de fazê-lo com eficiência – todos os instrumentos postos à sua disposição para a efetivação daquilo que passou a revestir a natureza de direito subjetivo dos respectivos indivíduos desses grupos vulneráveis, entre cujos instrumentos se acha a tributação.

Sob tais premissas, associamo-nos à lição do Professor Paulo de Barros Carvalho, segundo quem “adotando o pressuposto de que o sobreprincípio da dignidade da pessoa humana é um direito fundamental, podemos dizer que se encontra permeado por todo o sistema jurídico prescritivo, incluindo o tributário, em diferentes feições. (...) é possível associar o direito à dignidade da pessoa humana com a igualdade de tratamento, apresentando-se no ordenamento

jurídico brasileiro sob diferentes formas: igualdade de todos (Preâmbulo e art. 5º, caput, da CR/88); objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (art. 3º, caput, CR)”.269

Por outro giro de linguagem, queremos dizer que sendo cada ser humano dotado da mesma dignidade, fica o Estado Brasileiro, mercê do que estabelecido na Constituição da República, obrigado não só a proteger a pessoa com deficiência como integrante de um grupo vulnerável, mas como também a agir para remover os obstáculos eventualmente encontráveis na sociedade para que essa pessoa usufrua das oportunidades a todos oferecidas em igualdade de condições em relação às demais pessoas. E, para isso, a tributação tem importante papel a cumprir.

Contudo, cabe remarcar que somente será possível vislumbrar essa instrumentalidade da tributação para a efetivação dos direitos fundamentais com uma reeducação da mentalidade diante das normas tributárias, substituindo-se a concepção de um “direito de defesa do Estado Fiscal” pela perspectiva dos “direitos fundamentais dos contribuintes”.

Esta é uma abordagem que possui uma exposição tradicional no discurso jurídico ao se referir à cláusula geral “dignidade da pessoa humana” como freio ao exercício da competência tributária, observado o limite à tributação do “mínimo existencial” e à vedação do confisco (“primum vivere, deinde tributum solvere”), traduzida na linguagem prescritiva nas regras que prevêm os direitos fundamentais genéricos da legalidade, igualdade (previstos no artigo 5º da Constituição) e à proteção do “mínimo existencial” (art. 7º da Constituição), assim como nas “limitações constitucionais ao poder de tributar” relacionadas à capacidade contributiva (art. 145, par. 1º), à proibição do confisco (art. 150, inc. IV da Constituição) e à garantia das imunidades (artigos 149, par. 2º, 150, inc. VI, par. 2º, 153, par. 2º, inc. II, par. 3º, inc. III, par. 4º, inc. II, 155, part. 2º, inc. X, alíneas “a”, “b”, “c”, “d”, par. 3º, 156, inc. II, par. 2º, inc. I, 184, par. 5º, 195, par. 7º).

269CARVALHO, Paulo de Barros

. A ‘Dignidade da Pessoa Humana’ na ordem jurídica brasileira e no direito tributário. In: CARVALHO, Paulo de Barros. Derivação e positivação no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2011/2012. v. 1, p. 62.

No caso com o qual nos preocupamos neste trabalho, o da inclusão das pessoas com deficiência – que constitui imperativo constitucional – concluímos que diversos instrumentos tributários ou de política fiscal podem (e devem) ser utilizados como instrumentos para proteção desse grupo vulnerável, cujas medidas devem se voltar prioritariamente à acessibilidade como pressuposto para alcançar todo e qualquer outro direito como saúde, educação, trabalho etc., e envolver a proteção do emprego, saúde e educação e estender a rede de proteção aos cuidadores não profissionais (como a própria família da pessoa deficiente em grau elevado). É dizer, não só o sistema tributário, mas este no cenário maior em que situado, qual seja o sistema tributário-financeiro- orçamentário desenhado de modo tal a ser dotado de instrumentação a serviço dos fins extrafiscais que estejam conformados com os valores que inspiram a finalidade do Estado Brasileiro, conforme estabelecido em sua carta Magna.

Deveras, a pesquisa sobre a evolução da doutrina especializada na concretização dos direitos fundamentais presidiu as reflexões deste trabalho, das quais emerge a constatação de que não bastam as limitações, as abstenções do Estado (princípio da proibição do excesso), mas são devidas prestações positivas dos entes estatais para que sejam cumpridos deveres de efetivação dos direitos fundamentais (princípio da proibição da proteção insuficiente).

A “proibição da proteção insuficiente” emerge do art. 3.º e mesmo do Preâmbulo da Constituição da República, cuja prescritividade – que, conquanto não conte com a unanimidade da opinião dos doutos – é defendida no seio da doutrina do Direito Tributário pelo Professor Paulo de Barros Carvalho270 e, ademais, referendada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Para a realização dos deveres constitucionais, com vistas a observar o “princípio da proibição da proteção insuficiente”, concretizando-se a inclusão social das minorias e grupos de pessoas vulneráveis, especialmente aquelas com deficiência, o Estado – União, Estados, Distrito Federal e Municípios, porque a competência neste tema é concorrente – deve atuar através de políticas públicas seja pela via de prestações estatais de cunho pecuniário ou de serviços, ou ainda

270CARVALHO, Paulo de Barros. O preâmbulo e a prescritividade constitutiva dos textos jurídicos.

In: CARVALHO, Paulo de Barros. Derivação e positivação no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2011/2012. v. 1, p. 5-27.

através de indução de comportamentos através da manipulação de tributos com vocação extrafiscal.

Neste ponto, é triste constatar que as pessoas com deficiência estão totalmente desassistidas de uma política pública através de prestações de cunho pecuniário – via subvenções, transferências financeiras diretas ou indiretas – para as pessoas físicas, seus familiares ou para as instituições que se ocupam de eliminar as barreiras da desigualdade que existem em nossa sociedade, não podendo haver escusa para a omissão estatal a alegação de ordem de restrição orçamentária, a reclamar a necessidade de novas fontes de custeio (cláusula da “reserva do possível”), sobretudo porque a Constituição da República prevê uma estrutura mínima de financiamento dos direitos fundamentais no Brasil ao destinar o produto arrecadado com impostos (artigo 167, inciso IV, segunda parte) e contribuições para determinadas finalidades – entre elas, para o Fundo Nacional de Saúde (artigo 198, parágrafos 2º e 3º da Constituição, combinado como o artigo 77 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) e para o Fundo Nacional de Educação (artigo 212) –, contudo, 20% dos recursos “com destinação” são desviados para outras finalidades que não aquelas constitucionalmente previstas, por força da “Desvinculação das Receitas da União” (prevista no artigo 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, modificado originariamente pela Emenda Constitucional 27/2000 e atualmente pela Emenda Constitucional 68/2011) e de iterativos contingenciamentos das despesas através de Decretos do Poder Executivo, autorizados pelo artigo 9º, parágrafo 3º da Lei Complementar 101/2000, representativos da inobservância pelo Brasil do princípio da “proibição da proteção ineficiente” e da própria “solidariedade social” que respaldou o abastecimento dos cofres públicos.

No campo empírico-tributário verifica-se que as políticas públicas voltadas à inclusão social das minorias e de grupos de pessoas vulneráveis, especialmente aquelas com deficiência, não contam com imunidades ou com política pública via incentivos ou benefícios fiscais, mas se traduz basicamente em isenções previstas quanto ao imposto sobre produtos industrializados – IPI, imposto sobre operações financeiras – IOF e imposto sobre circulação de mercadorias e serviços – ICMS para a aquisição de veículos, isenção ao imposto sobre a propriedade de veículos automotores – IPVA e ao imposto sobre a renda – IR,

revelador de que o dever de proteção eficiente não é exclusivo da União, mas concorrente entre todos os entes da República Federativa do Brasil.

Recordemos o que dissemos no início que, no que toca ao tema desta dissertação, o artigo 1º, inciso I do texto Constitucional indica expressamente o vetor “dignidade da pessoa humana” que, à toda evidência, não se realiza sem um mínimo acesso aos bens dos quais as pessoas com deficiência necessitam para que desfrutem minimamente de uma vida digna, impondo-se ao Estado o dever de desenvolver política fiscal que as isente do pagamento de tributos na aquisição de equipamentos ou aparelhos que os auxiliem na inclusão social, o que certamente concorrerá para o fim dos preconceitos e para a outorga das mesmas oportunidades de emprego, de acesso à educação, saúde, lazer, transporte.

No ponto, verifica-se que os entes estatais têm feito uso de algumas isenções “extrafiscais” para que o tributo cumpra função reguladora alheia à justiça tributária, legitimadas para realizar uma medida teleológica de concretizar interesses nacionais, objetivos fundantes, tais como aqueles previstos no artigo 3º da Constituição da República.

Com esse desiderato constitucional, tais desonerações podem incidir sobre os três aspectos econômicos das pessoas com deficiência, quais sejam a renda, o patrimônio ou o consumo.

A fim de que verifiquemos quanto temos evoluído no tema, ou quanto ainda temos que caminhar, cabe lembrar, no que tange à “renda”, a louvável previsão de isenção do pagamento do imposto, constatada as hipóteses “incapacitantes”, previstas na Lei 7.713/1988, artigo 6º, incisos XIV e XXI, com redação modificada pelas Leis 8.541/1992 e 11.052/2004. Ponderamos, todavia, que uma proteção suficiente somente se aperfeiçoaria se fosse permitida a dedução de despesas com moradia, vestuário, higiene, transporte, o que hoje não ocorre, ante à incidência do imposto sobre despesas vitais à dignidade da pessoa com deficiência e de sua família.

À vista das repartições de competência tributárias, tem-se que, quanto ao “patrimônio”, fica a critério dos entes federativos prever isenção sobre os bens cuja propriedade está sujeita ao ITR, IPTU, IPVA, ITCMD e ITBI, sendo

constatada, aqui, acolá, isenção no caso específico de veículos automotores, o que é revelador de ausência de política fiscal para incluir as pessoas com deficiência.

Finalmente, em relação ao “consumo”, vislumbram-se respostas razoáveis dos entes tributantes no mister de proteger as pessoas com deficiência, ante à desoneração de impostos que incidem sobre etapa do processo produtivo e que seja repassado na formação do preço do bem ou mercadoria para o produtor final, do que se conclui das isenções previstas no âmbito do IPI (Lei 8.989/1995, art. 1º, inc. IV, parágrafos 1º a 6º, com redação alterada pelas Leis 10.690/2003 e 10.754/2003), IOF (modalidade “crédito” – Lei 8.383/1991, art. 72, inc. IV) e ICMS para a aquisição de veículos (Lei Complementar 24/1975, art. 1º; Convênio ICMS 35/1999).

É digna de reflexão a crítica do Professor Robson Maia Lins ao questionar a feição “extrafiscal” dessas isenções271, porque, de fato, ao que se verifica, as

normas isentivas são endereçadas aos produtores – não interferindo no comportamento dos consumidores finais –, cuja conclusão decorre da restrição da potência bruta em até 127 HP dos automóveis isentos destinado às pessoas com deficiência.

Além disso, quanto à isenção do ICMS e do IOF-Crédito, verifica-se a limitação do benefício apenas aos paraplégicos ou pessoas com deficiência física que as impossibilite o uso de modelos convencionais (excluindo outros deficientes – como os com cegueira, por exemplo – do benefício fiscal), criando, desse modo, odiosa discriminação no seio do grupo vulnerável, em inobservância gritante à função proposicional que informa a teoria das classes, não se podendo compadecer com relações de “sobrecidadania” e “subcidadania” no grupo de pessoas vulneráveis, especialmente, aquelas com deficiência: a lei tributária pode discriminar por motivo extrafiscal, desde que a distinção seja razoável e derivada de um finalidade objetiva e que se aplique a todas – repita-se, a todas – as pessoas da mesma classe ou categoria, afinal, a pessoa com deficiência tem o direito de receber do Estado proteção, independentemente da causa ou natureza

de sua “incapacidade” decorrente de um impedimento de longo prazo, seja natureza física, mental, intelectual ou sensorial.

Ademais, é eloquente a omissão legislativa em estender a desoneração fiscal para “acessórios que não seja equipamento original do veículo”, sobretudo porque se sabe que são necessárias adaptações especiais e específicas – que acrescem substancialmente o custo do bem – para justamente suprir a deficiência (v.g., a instalação de direção hidráulica para pessoas com neuropatia grave).

Finalmente, não tenho como deixar de lamentar uma postura desavergonhada, no âmbito dos Municípios, consistente em omissão legislativa que impõe uma alíquota única a todos os moradores locais, independentemente das condições pessoais de cada um, olvidando-se que pessoas com deficiência – que habitualmente dispõem de poucos recursos – são oneradas, sem qualquer compensação, com expressivas despesas para fazer frente a custos de adaptações em seus imóveis. A isenção de IPTU, nesse caso, ou mesmo uma redução de alíquota concorreria para a concretização do direito fundamental à moradia, inserido na ideia do mínimo existencial.

Finalmente, deve ser acatada a advertência do Professor Paulo de Barros Carvalho, segundo a qual “não basta o trabalho preliminar de conhecer a feição estática do ordenamento positivo. Torna-se imperioso pesquisarmos o lado pragmático da linguagem normativa, para saber se os utentes desses signos os estão empregando com os efeitos que a visão estática sugere. Eis que volto a afirmar: de nada adiantam direitos e garantias individuais, placidamente inscritos na Lei Maior, se os órgãos a quem compete efetivá-los não o fizerem com a dimensão que o bom uso jurídico requer”.272

Assim – insisto –, não se pode negar prescritividade ao Preâmbulo da Constituição Federal e nem deixar de extrair a máxima efetividade normativa da Carta da República cujos preceitos apontam para a imposição de políticas que promovam a remoção das desigualdades e a inclusão social por meio da tributação, mormente porque o direito tributário também desempenha função de

272CARVALHO, Paulo de Barros. A ‘Dignidade da Pessoa Humana’ na ordem jurídica brasileira e

garantir a redistribuição de bens e rendas, de forma a concorrer para a construção de uma sociedade mais justa e isonômica.

Bem por isso que não pode ser oposta à inclusão das pessoas com deficiência a carência da concretização jurídico-normativa da Constituição, porque a remoção das barreiras que impedem o pleno desenvolvimento dessas pessoas insere-se no contexto do “mínimo-existencial”, não se submetendo ao princípio da “reserva do possível”, entendida como a limitação orçamentária que resulta em uma indisponibilidade financeira para concretizar direitos ou como a uma pretensa “discricionariedade” concedida ao legislador para executar políticas públicas.

Deveras, quando estão envolvidas pessoas integrantes de grupos vulneráveis, tenho que não existe margem de discricionariedade para a execução