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Força normativa da Constituição

2. AS CONSTITUIÇÕES COMO GARANTIDORAS DOS VALORES SOCIAIS

2.5. Força normativa da Constituição

O constitucionalismo, produzindo documento escrito63 de organização do Estado, dividindo e separando seus órgãos de poder, atribuindo-lhes competências próprias, conferindo e assegurando direitos fundamentais aos indivíduos em face do Estado e do governante, e, ao depois, também reconhecendo direitos difusos e coletivos e instituindo mecanismos para sua concretização, foi, sem dúvida, uma importante conquista da civilização. Afastou o arbítrio do governante, instaurando, inicialmente, um Estado liberal. Com ele surgiram as liberdades e suas garantias. Mas era preciso avançar e avançou-se. O passo seguinte nessa marcha evolutiva foi o reconhecimento de direitos sociais e a transformação do Estado em ente interventivo, realizador de serviços essenciais de caráter social, proporcionando-os às pessoas mais necessitadas dos serviços básicos os quais não poderiam prover sem a atuação do Estado,

62FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e mudança social. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

p. 182.

63Em geral, as Leis Fundamentais dos Estados Nacionais são escritas, embora se tenha o notório

isso com fundamento no reconhecimento da dignidade da pessoa humana como princípio-guia.

Chegado a esse estágio, a normatização constitucional não poderia, contudo, caracterizar-se apenas como uma promessa vazia, inconsequente e marcada pelo voluntarismo, como por muito tempo se verificou, vez que, em muitos aspectos, as Constituições Brasileiras anteriores à de 1988 pouco mais significaram que repositórios de boas intenções. Bem por isso, os direitos previstos pela e assegurados na Lei Fundamental precisariam ser instrumentalizados e, mais que isso, era preciso que fossem instituídas instâncias perante as quais tais direitos pudessem ser exigidos por seus respectivos titulares.

A despeito de hoje não haver dúvida de que a Constituição é dotada de normatividade jurídica – e densa normatividade, diga-se - nem sempre ela foi observada, e isso por vicissitudes de várias razões histórias.

No caso brasileiro, até o ciclo constitucional sepultado pela última Assembleia Constituinte64, as Constituições Brasileiras, todas de baixíssima eficácia normativa, praticamente se reduziram, no dizer de Faoro, “a uma promessa e a um painel decorativo65”, cuja situação levou Luís Roberto Barroso a

afirmar que no Brasil frequentemente se conviveu com “patologias crônicas, ligadas ao autoritarismo e à insinceridade constitucional”, e em que as Constituições, durante largos períodos, não passaram de “repositórios de promessas vagas e de exortações ao legislador infraconstitucional, sem aplicabilidade direta e imediata”.66

Essa realidade, porém, que longe estava de ser exclusividade brasileira, começou a mudar com o advento do chamado “Neoconstitucionalismo”, movimento que surgiu e tomou corpo logo após a 2.ª Grande Guerra Mundial.

641987/1988.

65Raymundo Faoro, citado por NEVES, Marcelo. Constitucionalização simbólica. In: CANOTILHO,

J. J.; MENDES, Gilmar Ferreira; STRECK, Lenio Luiz; SARLET, Ingo Wolfgang (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 70.

Surge, então, em meados do século XX, a ideia de força normativa da Constituição. Com base na teoria de Hans Kelsen67, a Constituição, documento

político fundamental do Estado, assume o relevante papel de documento jurídico, ápice do ordenamento jurídico do Estado, que comanda e sustenta todo o arcabouço normativo, dotado de caráter vinculativo e obrigatório.

Para Hans Kelsen:

“A Constituição material determina não apenas os órgãos e o processo de legislação, mas também, em certo grau, o conteúdo das leis futuras. A Constituição pode determinar negativamente que as leis não devem ter certo conteúdo, por exemplo, que o parlamento não pode aprovar qualquer estatuto que restrinja a liberdade religiosa. Desse modo negativo, não apenas o conteúdo dos estatutos mas o de todas as outras normas da ordem jurídica, bem como o das decisões judiciais e administrativas, pode ser determinado pela Constituição. A Constituição, porém, também tem atribuição de prescrever positivamente certo conteúdo dos futuros estatutos”.68

Com essa concepção, a Constituição vai deixando de ser vista apenas como um documento político, voluntarista, cuja concretização de suas propostas ficava condicionada à vontade e atuação política e discricionária do legislador ou administrador, e passa a ostentar o status de norma jurídica de observância obrigatória por todos e pelo Estado, de caráter vinculativo de suas disposições, irradiando validade a todo o sistema normativo, que com ela deve estar harmonizado.

Noutro dizer, a Constituição deixaria (como deixou) de ser aquela “mera folha de papel” à qual se referiu Ferdinand Lassalle em célebre conferência em 1862, à vista de, segundo ele, por serem as questões constitucionais de natureza política – e não jurídica – submetiam-se elas às injunções da realidade, resultantes da conjugação dos fatores reais do poder, representados pelo poder militar (Forças Armadas), poder social (latifundiários), poder econômico (capital e indústria) e poder intelectual (consciência e cultura gerais), vez que, não sendo documento jurídico, mas político, a Constituição estava submetida a tais forças da realidade, pouco lhe restando de eficácia jurídica.

67KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 181

e ss.

Porém, na célebre Aula Inaugural da Universidade de Freiburg-RFA, em 1959, Konrad Hesse, contrapondo-se ao pensamento de Lassalle, procura demonstrar a existência de uma “vontade de Constituição”, independente da realidade. A Constituição não seria conformada pela realidade social em que incidia, mas, ao contrário, seria o instrumento conformador, indutor, realizador da realidade desejada. Para Hesse, graças à pretensão de eficácia, a Constituição é que procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social, e adquire força normativa à medida que logra realizar essa pretensão de eficácia. E obtemperou:

“Mas, a força normativa da Constituição não reside, tão-somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente. Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter- se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência das principais responsáveis pela ordem constitucional – não só a vontade de poder, mas também a vontade de Constituição.”69

Por essa concepção, a Constituição Jurídica contém – e deve conter – uma força motriz própria capaz de motivar e ordenar a vida do Estado e moldar comportamentos dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, porque ela tem uma força normativa própria. É a Constituição que domina o Estado e os comportamentos sociais, a cuja força devem se subordinar o que Lassalle chamava de forças reais.

E, deveras, não há norma jurídica que seja desprovida de eficácia normativa. Mesmo aquelas classificadas pela doutrina como normas programáticas trazem em si uma carga grande de eficácia. Todas as normas constitucionais, qualquer que seja a classificação que se lhes dê, irradiam efeitos

69HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Sergio

Porto Alegre: Antônio Fabris Editor, 1991. p. 19. “A Constituição transforma-se em força ativa se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se fizerem presente na consciência em geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional”, Id. Ibid., p. 5.

jurídicos ora para frear o ímpeto do Estado potencialmente constritor, exigindo dele um não fazer, ora para impeli-lo, para impulsioná-lo, a um agir obrigatório no campo da legislação ou na seara do atuar por meio de políticas públicas. Bem por isso, calha a observação de Celso Antônio Bandeira de Mello de que “uma norma jurídica é desobedecida quer quando se faz o que ela proíbe, quer quando não se faz o que ela determina” e prossegue para afirmar que “sendo a Constituição um plexo de normas jurídicas – e normas de nível supremo –, é inevitável concluir-se que há violação da Constituição tanto quando se faz o que ela inadmite como quando se omite fazer o que ela impõe. E se omissão houver, ficará configurada a inconstitucionalidade”.70

Sob essa perspectiva, os constitucionalistas Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Júnior observam que as Constituições, outrora caracterizadas como “repositórios de divisão de competências e de definição de programas genéricos a entes públicos, foram sendo alçadas a um novo patamar, qual seja, o de documentos vinculantes dos poderes públicos, dotados de efetividade e de aplicabilidade”.71 E continuam os mestres asseverando que a Constituição passa

de um estágio de “sistema de princípios e regras aberto aos influxos da realidade para uma situação de onipresença na ordem jurídica, evocando um esforço constante dos tribunais para sua concretização”, máxime considerando-se o valor extraordinário que nesse cenário assumem os princípios, notadamente o da dignidade da pessoa humana, “tomado como pedra angular de todo o sistema”.72

Como se vê, inaugurou-se, então, uma nova realidade, de reconhecimento e extração da máxima eficácia das normas constitucionais, do que decorreu a necessidade de criação de instituições com atribuições específicas, dotadas, ademais, de instrumentos adequados e mecanismos eficientes, capazes de dar efetividade aos direitos reconhecidos, em cujo cenário, repise-se, ganhou preeminência o Poder Judiciário, como fiador da eficácia normativa da Constituição.

Na curta trajetória desse novo modelo em construção dinâmica, há que se registrar que nem sempre o Legislativo e o Executivo foram eficazes, e nem o Judiciário, suficientemente diligente. Ao contrário, ainda hoje, em vários pontos,

70BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, cit., p. 13. 71ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JR., Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, cit.,

p. 28.

constata-se um vácuo capaz de tornar a Lei Fundamental uma peça decorativa, de pouca eficácia normativa. Não raro, a respeito da fiel observância por parte dos gestores públicos aos princípios-guias da Carta Magna, sobram palavras consternadas e falsamente postas, mas falta sincera disposição de aplicarem os recursos para cumprir os desígnios constitucionais, resolvendo, assim - ou ao menos mitigando -, os graves problemas de desigualdades a que são submetidos incontáveis membros de grupos vulneráveis.

A respeito da máxima efetividade que deve ser conferida às normas constitucionais, papel que cabe a todos os Poderes da República, mas, atualmente, de forma altaneira ao Poder Judiciário, é que, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 45/DF, o Ministro Celso de Mello alertou para o fato de que mesmo aquelas normas constitucionais que pudessem ser tidas por alguns como meramente programáticas e que, por isso, durante muito tempo foram relegadas a um letárgico estado de espera, mesmo delas deve-se extrair a máxima efetividade. Disse o Ministro relator em seu erudito voto:

“Cabe assinalar, presente esse contexto - consoante já proclamou esta Suprema Corte - que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política "não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado" (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO)”.73

Especificamente no que toca ao tema que estamos a abordar neste trabalho, Flávia Piovesan, Beatriz Pereira da Silva e Heloisa Borges Pedrosa Campoli, no capitulo “A Proteção dos Direitos das Pessoas com Deficiência no Brasil”, contido na obra “Temas de Direitos Humanos”74, lamentam o fato de que

“passados anos da vigência desta Carta (de 1988), mesmo com a previsão

73Julgamento realizado em 29 de abril de 2004. Relator Ministro CELSO DE MELLO, ementa do V.

Acórdão publicada no Informativo n.º 345 do STF, disponível no endereço eletrônico SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo345.htm>. Acesso em: 16 mar. 2015.

especificada dos direitos das pessoas com deficiência, bem como dos instrumentos garantidores desses direitos, a violação subsiste e a concretização dos dispositivos constitucionais ainda constitui meta a ser alcançada”.75 As

mesmas autoras, apontando a falta de sensibilidade tanto do Poder Público quanto da sociedade para lidar com a realização dos direitos das pessoas com deficiência, asseveram que a eficácia normativa da Constituição depende o modo como ela é cumprida e observam:

“A Constituição, por si própria, é tão somente um instrumento, não tendo condições de conformar a realidade social a seu modelo. Para tanto faz-se fundamental a efetiva implantação de sua força normativa, pelos diversos atores sociais, o que compreende uma cultura vigilante e praticante da Constituição, por meio de uma cidadania popular ativa e combativa, bem como da atuação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, um dos principais responsáveis pelo cumprimento da Lei Maior”.76

Nesse cenário, é que, tendo em vista a positivação, pela Constituição de 1988, de valores tão fortemente prestigiados pelo constituinte, tais como o foram os albergados pelo princípio da Dignidade da Pessoa Humana, do qual decorre o dever do Estado de promover a proteção e a inclusão social da pessoa com deficiência, removendo-lhe todas as barreiras que possam obstar seu pleno desenvolvimento, mostraremos como a tributação se presta a ser poderoso instrumento nesse mister, sendo irrecusável a utilização desse instrumento pelo Estado, mercê de seu dever de atuar positivamente na direção indicada pela Carta Magna.

75PIOVESAN, Flávia. op. cit., p. 467. 76Id. Ibid., p. 468.