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As pessoas com deficiência na história

4. AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

4.2. As pessoas com deficiência na história

No dizer de Fernand Braudel, “a História é ciência do passado e do presente, um e outro inseparáveis”.97 O presente é explicado pelo passado; a

história explica o presente. E, olhando para a história dos povos civilizados percebe-se que o espaço conquistado atualmente pelas pessoas com deficiências é fruto de um intenso e árduo processo de transformação.

No decorrer da história da humanidade, a situação da pessoa com deficiência foi assinalada pela segregação e por sua total exclusão do convívio social.

Na Antiguidade, embora se encontrem registros de que havia, por parte de alguns povos, a aceitação do deficiente como um membro da família ou do grupo social, a prática mais comum em relação à pessoa com deficiência era o abandono ou o desprezo quando do nascimento. Nas cidades-estados, cuja economia se desenvolvia por atividades que demandavam higidez física, tais quais a agricultura, a pecuária e o artesanato, as pessoas com deficiência, que, ademais, não correspondiam aos ideais aristotélicos de eugenia e de perfeição individual, eram marginalizadas.

A produção era feita por indivíduos economicamente dependentes que tinham por senhores os donos destes bens. "Homem" era o senhor, seguindo os ideais aristotélicos de eugenia e de perfeição individual total de uma cultura clássica e classista, sendo que os demais indivíduos, não-senhores, eram considerados sub- humanos.98

A concepção sobre deficiência e a relação da sociedade com pessoas então consideradas portadoras de necessidades especiais passaram por mudanças ao longo da história. O tratamento dado às pessoas com deficiência, muitas vezes foi influenciado pela cultura religiosa, econômica ou política, dependendo da época, região ou país.

97Fernand Braudel, 1902/85 – historiador francês.

98ARANHA, Maria Salete Fábio. Integração social do deficiente: análise conceitual e metodológica.

Temas psicol. [online], v. 3, n. 2, p. 63-70, 1995. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-

“É sabido que em Esparta as crianças portadoras de deficiências físicas ou mentais eram consideradas sub-humanas, que legitimava sua eliminação ou abandono, prática perfeitamente coerente com os ideais atléticos e classistas, que serviam de base à organização sócio cultural do esporte de Esparta e da Magna Grécia”.99

Enquanto alguns países mostraram-se mais inclusivos em relação a elas, outros se comportaram de maneira segregadora. Voltando à Grécia antiga, há relatos de que se uma criança nascesse defeituosa era logo exterminada, pois não serviria para cumprir o fim social-econômico e nem se prestava às atividades de guerra.100

Essa postura excludente dos grupos vulneráveis, especialmente dos economicamente imprestáveis, e notadamente das pessoas com deficiência, foi se modificando, embora muito lentamente. Na Inglaterra, em 1531, pela medida normativa denominada “Lei dos Pobres”, se permitiu que “os juízes autorizassem velhos abandonados e pessoas portadoras de defeitos físicos sérios a pedirem esmolas”.101 Em 1723 foram criadas as “Workhouse destinadas a utilizar mão-de-

obra de deficientes. Esta medida, no entanto, não surtiu o efeito esperado uma vez que os postos lá reservados acabaram sendo ocupados por pobres e não por deficientes”.102

Inolvidável que ainda durante a Idade Média, em várias sociedades, as pessoas com deficiência eram humilhadas103 e exterminadas por serem vistas como seres que possuíam poderes especiais, como demônios, bruxos ou

99PESSOTI, Isaías. Deficiência mental: da superstição à ciência. 4. ed. São Paulo: T.A. Queiroz,

1984. p. 3.

100SCHMIDT, A. Uma perspectiva a da sociedade inclusiva. Escritos da Criança, Porto Alegre, n. 5,

p. 103-106, 1998.

101MELO, Sandro Nahmias. O direito ao trabalho da pessoa portadora de deficiência: o princípio

constitucional da igualdade: ação afirmativa. São Paulo: LTr, 2004. p. 32 apud BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti. Ações afirmativas e inserção de pessoas portadoras de deficiência no mercado de trabalho. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 100, p. 498, jan./dez. 2005.

102Id. Ibid., p. 498.

103Os deficientes sofriam humilhações em público, eram expostos como aberrações ou

abandonado à própria sorte. “Um exemplo deste fato foi o famoso desenho animado da Walt Disney, The Hunchback of Notre Dame de 1996, adaptação do livro Notre-Dame de Paris de 1831 do grande escritor e poeta francês Victor Hugo. Toda esta exclusão por parte de todos os membros da sociedade da época é facilmente observada na própria obra de Victor Hugo (1985): Abandonado pelos pais à porta da Catedral de Nossa Senhora, quando tinha quatro anos e devido a sua deformidade". KUTIANSKI, Felipe Augusto Tavares; BRAUER JUNIOR, André Geraldo. Da antiguidade a contemporaneidade: uma revisão histórica do preconceito aos deficientes físicos na sociedade. Cadernos da Escola de Educação e Humanidades, Curitiba, n. 5, p. 106-107, 2010.

divindades malignas104. Lembra Maria Salete Fábio Aranha, que “como fenômeno

metafísico e espiritual, a deficiência foi atribuída ora a desígnios divinos, ora à possessão do demônio. Por uma razão ou por outra, a atitude principal da sociedade com relação ao deficiente era de intolerância e de punição, representada por ações de aprisionamento, tortura, açoites e outros castigos severos”.105

A Inquisição (século XIII), alegadamente com o objetivo de combater a heresia, sacrificou milhares de pessoas que defendiam ideias contrárias à doutrina cristã, sacrificando também adivinhos, loucos alucinados e deficientes mentais. Para a Inquisição Católica e para a Reforma Protestante, “a concepção de deficiência variou em função das noções teológicas de pecado e de expiação, e da visão pessimista do homem, entendido como uma besta demoníaca quando lhe venham a faltar a razão ou a ajuda divina”.106

A doutrina Cristã teve grande importância para a abolição das práticas de extermínio de pessoas nascidas com deficiência, às quais possuíam alma (e, portanto, dignidade humana). Gradualmente as práticas desumanas foram cedendo espaço para o assistencialismo prestado pela igreja. A guarda e cuidado das pessoas com deficiência “passaram a ser assumidos pela família e pela Igreja, embora não haja qualquer evidência de esforços específicos e organizados de lhes prover de acolhimento, proteção, treinamento ou tratamento”.107

Inobstante essa postura da Igreja, os deficientes continuavam sendo ignorados pela sociedade e pelo Estado, dependentes da caridade de bons samaritanos.

A Idade Moderna é marcada pelo surgimento de aparelhos e instrumentos que visaram facilitar a vida dos deficientes, como, por exemplo, a cadeira de

104CARMO, Apolonio Abadio do. Deficiência física: a sociedade brasileira cria, "recupera" e

discrimina. 1989. Tese (Doutorado) - Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de

Educação, Campinas, 1989. p. 29. Disponível em:

<http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000036029&fd=y>. Acesso em: 23 abr. 2014.

105ARANHA, Maria Salete Fábio. op. cit., p. 65. 106Id. Ibid.

rodas e o sistema de comunicação braile108, este voltado para deficientes

visuais.109

No século XIX, o modo de produção capitalista continua a se fortalecer, mantendo o sistema de valores e de normas sociais. Torna-se necessária a estruturação de sistemas nacionais de ensino e de escolarização para todos, com o objetivo de formar cidadãos produtivos e a mão-de-obra necessária para a produção. A atitude de responsabilidade pública pelas necessidades do deficiente começa a desenvolver-se, embora existisse ainda a tendência de se manter a instituição fora do setor público, sob a iniciativa e sustentação do setor privado.110

O século XX foi palco de significativas transformações na vida social dos indivíduos, marcando muitas alterações na conduta das sociedades, o que influiu grandemente os comportamentos da sociedade e impulsionou o aperfeiçoamento dos ordenamentos, que se tornaram mais inclusivos. Com o progresso das Ciências, e o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, assistiu-se ao surgimento de muitos instrumentos de proteção aos direitos humanos, o que contribuiu sobremaneira para o avanço da inclusão social. Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a proteção internacional dos direitos humanos ganhou corpus juris próprio, no qual o indivíduo passa a ser qualificado como sujeito de direito. Em decorrência disso, observou-se a edição de leis em prol da pessoa com deficiência e a criação de organizações e entidades voltadas para os interesses desse grupo vulnerável.

As mudanças, desde então, se verificaram em grande velocidade e assumiram requintes de refinamento. Assim é que na Conferência Mundial sobre Educação Especial (1994), produziu-se a Declaração de Salamanca sobre Princípios, Política e Prática na área das Necessidades Educativas Especiais, com objetivo de combater atos discriminatórios e promover a educação inclusiva. Essa Declaração registra que: “escolas regulares que possuam tal orientação inclusiva constituem os meios mais eficazes de combater atitudes discriminatórias criando-se comunidades acolhedoras, construindo uma sociedade inclusiva e

108O sistema braille foi criado em 1825 pelo jovem francês Louis Braille.

109PEREIRA, Carine de Almeida. O deficiente físico no mercado de trabalho. 2005. Disponível em:

<http://www.avm.edu.br/monopdf/23/CARINE%20DE%20ALMEIDA%20PEREIRA.pdf>. Acesso em: 24 out. 2014.

alcançando educação para todos; além disso, tais escolas proveem uma educação efetiva à maioria das crianças e aprimoram a eficiência e, em última instância, o custo da eficácia de todo o sistema educacional”.111

Documento de remarcada importância, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2006, ratificada pelo Brasil em 2008, reconhece os princípios consagrados na Carta das Nações Unidas, de dignidade e direitos iguais para todos. Essa Convenção eleva a pessoa com deficiência à categoria de sujeito pleno de direito, passando a titularizar todos os direitos indispensáveis para assumir seu papel na sociedade, pois, “salvaguarda a integridade, liberdade e privacidade das pessoas com deficiência, garante os seus direitos sociais, políticos, económicos e culturais e salvaguarda os seus direitos específicos no que se refere à acessibilidade, autonomia, mobilidade, integração, habilitação e reabilitação, participação na sociedade e acesso a todos os bens e serviços”.112

Por óbvio, a produção desses documentos internacionais, conquanto revistam-se da maior importância, não resolvem, por si, o problema da falta de inclusão social da pessoa com deficiência. Basta que se observem os dados do Relatório Mundial sobre Deficiência, elaborado em 2011 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Banco Mundial, o qual estima que exista um bilhão de pessoas com alguma forma de deficiência113, muitas das quais ainda

sofrendo com discriminação, com serviços inadequados de reabilitação e com a falta de tratamento de saúde, cuja exclusão tem resultado “baixos avanços

111DECLARAÇÃO DE SALAMANCA. Sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das

Necessidades Educativas Especiais. Disponível em:

<http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf>. Acesso em: 28 set. 2014.

112ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Convenção das Nações Unidas Sobre os

Direitos das Pessoas com Deficiência. Disponível em:

<http://www.inr.pt/content/1/1187/convencao-sobre-os-direitos-das-pessoas-com-deficiencia>. Acesso em: 27 nov. 2014.

113MAIS de um bilhão de pessoas no mundo têm algum tipo de deficiência, informa relatório da

ONU. Disponível em: <http://onu.org.br/mais-de-um-bilhao-de-pessoas-no-mundo-tem-algum- tipo-de-deficiencia-informa-relatorio-da-onu>; ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Relatório Mundial sobre a Deficiência. Publicado pela Organização Mundial da Saúde em 2011 sob o título World Report on Disability. Disponível em: <http://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br/usr/share/documents/RELATORIO_MUNDIAL_CO MPLETO.pdf>. Acesso em: 18 maio 2015.

educacionais e menos oportunidades econômicas do que as pessoas sem deficiência.114

Como tivemos oportunidade de verificar, ao longo do tempo, o histórico da luta pelos direitos das pessoas com deficiência vem sendo de conquistas e de significativos avanços dos ordenamentos e das atitudes, mas, mesmo assim, ainda, nos dias de hoje, nos deparamos com notícias como: “soldados e policiais afegãos são rejeitados após mutilações em batalha”.115

Por fim, e apenas como arremate a este tópico, faço o registro de que algumas pessoas com deficiência se tornaram mundialmente conhecidas pela genialidade naquilo que faziam, como, por exemplo, Ludwig van Beethoven, cujos sintomas de surdez começavam a perturbá-lo desde cedo, a ponto de, depois de algum tempo somente poder escutar usando uma espécie de trombone acústico no ouvido. O Brasil muito se orgulha da obra de Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, que assim ficou conhecido devido sua deficiência física. Nem mesmo o fato de padecer de doenças degenerativas que lhe acarretaram a perda de todos os dedos dos pés e quase todos das mãos, e de apresentar deformidade por todo o corpo, impediu que o mestre barroco de Ouro Preto fosse considerado o maior expoente de nossa arte colonial.

114ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Mais de um bilhão de pessoas no mundo têm

algum tipo de deficiência, informa relatório da ONU, cit.

115“Mesmo pela estimativa mais conservadora, o Afeganistão tem 130 pessoas com deficiência

que serviram nas forças de segurança, dos quais 40 mil sofreram amputação de algum membro, segundo números do governo referentes aso que recebem pensões. O total é quase certamente muito maior, porque o governo não divulga número sobre ex-membros das Forças Armadas que se feriram gravemente (...). Em outro trecho: Outros, que recebem apoio, se veem marginalizados por uma sociedade que trata as pessoas deficientes como párias”. NORDLAND, Rod. Soldados e policiais afegãos são rejeitados após mutilações em batalha. [de: New York Times]. Folha de S. Paulo, 09 maio 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/05/1626593-soldados-e-policiais-afegaos-sao-