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PARCELAS DA POPULAÇÃO SOCIALMENTE FRAGILIZADAS

3.1. Colocação do tema

Estado Democrático é, em geral, identificado singelamente como sendo aquele em que as decisões são adotadas pela maioria, o que não significa que a maioria possa massacrar a minoria. Isso não é democracia.

Um Estado que se pretenda qualificar como Democrático de Direito, com viés social, como o é o Estado Brasileiro plasmado pela Constituição de 1988 necessariamente há de contar com regras e princípios que proporcionem o respeito, o acolhimento, a proteção e a plena inclusão social das pessoas socialmente marginalizadas, as minorias e os grupos vulneráveis, mediante instrumentos e mecanismos previamente dispostos pelo ordenamento.

3.2. Minorias e grupos vulneráveis. Distinção

Colhe-se da história que pelo Tratado de Vestfália, de 1648, logrou-se obter fim do primeiro grande conflito europeu, a Guerra dos 30 anos.77 Além

disso, ainda por força desse vetusto documento do direito das gentes, ficou reconhecido e assegurado o direito de liberdade de escolha de religião por parte dos Estados e a liberdade de culto para certas minorias religiosas instaladas depois de 1624. Assim, esse Tratado é por muitos considerado o primeiro documento jurídico a garantir direitos a um grupo minoritário.

“Apesar da defesa da liberdade religiosa, as limitações morais colocadas sobre líderes entravam em conflito com direito soberano de ditar a fé do reino. O efeito disso foi a divisão da Europa em espaços católicos e protestantes, dentro dos quais minorias não-conformadas continuavam sendo problema”.78

77“Nos termos mais tradicionais, a Paz de Vestfália é concebida na área de Relações

Internacionais como uma revolução constitucional, pois, embora não tenham trazido uma metamorfose instantânea e as instituições políticas medievais ainda tenham permanecido por um bom tempo, tais tratados consolidaram o sistema moderno e trouxeram práticas subsequentes que definiram uma nova estrutura para a autoridade política.” JESUS, Diego Santos Vieira de. O baile do monstro: o mito da paz de vestfália na história das relações internacionais modernas. História [online], v. 29, n. 2, p. 221-232, 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-90742010000200012&script=sci_arttext>. Acesso em: 12 mar. 2015.

Apesar dessa primazia do Tratado de Vestfália, o primeiro e mais específico evento relacionado à proteção de minorias foi a Conferência da Paz (Paris 1919), cujo fruto principal, o Tratado de Versalhes, que selou acordo de paz entre países europeus logo após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Como se sabe, em decorrência deste Tratado, foi criada a Organização Internacional do trabalho – OIT, organismo responsável pela promulgação da Convenção nº 159, que versa sobre Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes79, cujo organismo contribuiu grandemente para a internacionalização do Direito do Trabalho. Pugnando sempre por uma justiça social nas relações de trabalho, tornou-se responsável pelo controle e formulação de normas referentes ao trabalho no âmbito internacional.

Por sua primeira parte o Tratado de Versalhes instituiu a Sociedade das Nações80, por cujo Pacto os signatários do documento assumiam obrigações tais como a de garantir critérios mínimos para as condições de trabalho81 e a de promover o respeito às minorias étnicas. Assim, ressalta Louis Henkin, "com base nos precedentes do século XIX, Estados dominantes pressionaram determinados Estados a aderir a ‘tratados de minorias’ garantidos pela Liga, nos quais os Estados-partes assumiam obrigações de respeitar direitos de minorias étnicas, nacionais ou religiosas determinadas”.82

Após a Segunda Guerra Mundial, instrumentos de proteção aos direitos humanos individuais, trouxeram à tona valores fundamentais, baseados nos

79CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção 159. Convenção Sobre

Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0129.htm>. Acesso em: 28 set. 2014. Ratificada pelo Brasil em 2 de maio de 1991.

80PACTO DA SOCIEDADE DAS NAÇÕES. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-

conteudos-de-apoio/legislacao/segurancapublica/PACTO_DA_SOCIEDADE_DAS_NACOES.pdf>. Acesso em: 18 maio 2015.

81Art.23. Sob a reserva e em conformidade com as disposições das Convenções internacionais

actualmente existentes ou que serão ulteriormente concluídas, os membros da Sociedade: 1.esforçar-se-ão por assegurar e manter condições de trabalho equitativas e humanas para o

homem, a mulher e a criança nos seus próprios territórios, assim como em todos os países aos quais se estendam suas relações de comércio e indústria e, com esse fim, por fundar e sustentar as organizações internacionais necessárias;

2.comprometem-se a garantir o tratamento equitativo das populações indígenas dos territórios submetidos à sua administração. PACTO DA SOCIEDADE DAS NAÇÕES, cit.

82Apud ARZABE, Patricia Helena Massa; GRACIANO, Potyguara Gildoassu. A Declaração

Universal dos Direitos Humanos - 50 anos. Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Centro

de Estudos. Disponível em:

<http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/direitos/tratado4.htm>. Acesso em: 22 mar. 2015.

princípios da não discriminação e da igualdade. O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, em 1966, constituiu o primeiro documento normativo da ONU a definir disposição específica sobre as minorias. Seu art. 27, assim dispõe: “Nos Estados em que existam minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não devem ser privadas do direito de ter, em comum com os outros membros do seu grupo, a sua própria vida cultural, de professar e de praticar a sua própria religião ou de utilizar a sua própria língua.”83

“O único instrumento autónomo das Nações Unidas especificamente dedicado aos direitos das minorias é a Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas. O texto da Declaração, ao estabelecer um equilíbrio entre, por um lado, os direitos das pessoas pertencentes a minorias de manter e desenvolver a sua própria identidade e as suas próprias características e, por outro, as correspondentes obrigações dos Estados, salvaguarda em última instância a integridade territorial e a independência política do conjunto da nação.84

Pois bem, para efeito de proteção, a Constituição de 1988 reconhece que as pessoas com deficiência formam um dos diversos grupos vulneráveis que merecem do Estado cuidado incomum e especial proteção.

Tendo nos referido, acima, a minorias e, agora, a grupos vulneráveis, é mister, então, que se faça distinção entre grupo vulnerável e minoria.

Em sentido amplo é correto afirmar que grupo vulnerável constitui gênero do qual minoria é espécie. Em sendo assim, ambos demandam especial atenção e proteção do Estado.

Grupo vulnerável em sentido amplo é aquele formado por pessoas que possuem um traço ou uma característica comum, de natureza social, física, econômica ou cultural que importe numa fragilidade, numa vulnerabilidade, a qual demande especial atenção com o fim de proteção. Por exemplo, podem ser considerados grupos vulneráveis – e assim, merecedores de especial atenção da sociedade e do Estado – os idosos, as crianças, as gestantes, os “moradores de

83OS DIREITOS das minorias. Lisboa: Gabinete de Documentação e Direito Comparado, 2008. p.

8. (Ficha Informativa sobre Direitos Humanos n. 18). Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos- humanos/Ficha_18.pdf>. Acesso em: 23 fev. 2014.

rua”, os “trabalhadores sem terra”, as pessoas com deficiência, os desempregados, e as minorias étnicas ou religiosas, tais como os indígenas, os ciganos etc.

Como se vê mesmo dos exemplos acima, as minorias também constituem grupos vulneráveis, embora em sentido estrito deles sejam distintos.

As minorias também formam grupo de pessoas com traços comuns especiais entre si. Trata-se de grupos que a) em geral, não constituem a maioria da população85 e b) que carregam traços culturais comuns (e diversos da maioria da população onde inseridos), tais como a etnia, a língua, a nacionalidade, a religião etc. Segundo o estudo sobre direitos de minoria do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, “não há uma definição internacionalmente pacífica sobre quais grupos constituem minorias. Sublinha-se frequentemente que a existência de uma minoria é uma questão de fato e que qualquer definição deve incluir tato fatores objetivos (como a existência de uma etnia, língua ou religião compartilhada) e fatores subjetivos (inclusive que os indivíduos devem identificar a si próprios como membros de uma minoria)”.86

Ao contrário do grupo vulnerável em sentido estrito, as minorias têm como característica marcante o desejo de manter os traços culturais que as distingue, ao contrário dos grupos vulneráveis, cujos integrantes se pudessem os abandonariam. Assim, por exemplo, o indígena (integrante de uma minoria) quer manter sua cultura, seus hábitos, sua língua e tudo fará para que isso aconteça, tendo o Estado o dever de atuar para que o indígena mantenha suas tradições; já o trabalhador desempregado, por exemplo, gostaria de não ter essa característica que o torna vulnerável e, logicamente, não busca preservá-la, ao contrário,

85Em geral, o termo “minoria” combina com o aspecto numérico desvantajoso. Porém, embora

essa seja a regra, ela comporta exceções, em que a “minoria” assim se caracteriza tão somente pelo fato de estar marginalizado das decisões políticas. Como exemplo, lembramos que embora os negros formassem o maior contingente humano da África do Sul durante a política do

apartheid, regime de segregação racial que foi implementado no país para garantir a hegemonia

branca, uma parcela menor da população, os brancos, de origem européia, colocaram em prática uma série de medidas discriminatórias contra a maioria negra. Tem-se, aí, um exemplo, embora raro, em que um contingente numericamente superior é considerado “minoria” por não deter o poder político, exercido por uma elite numericamente minoritária.

86YAMATO, Roberto Vilchez. A proteção das minorias na ordem internacional contemporânea:

uma breve releitura do sistema ONU. In: JABILUT, Liliana Lyra; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; MAGALHÃES, José Luiz Quadros de (Coords.). Direito à diferença. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 33.

esforça-se para superá-la, tendo o Estado, nesse caso, o dever de atuar para eliminá-la.

Como é fácil concluir, as pessoas com deficiência, conquanto não constituam a maioria da população, não podem ser classificadas como minorias, mas como grupo vulnerável, porque seus integrantes não ostentam uma característica cultural comum que os distinga no seio da população em geral, nem carregam o traço da solidariedade que caracteriza uma minoria étnica ou religiosa. A fragilidade que caracteriza esse segmento como Grupo Vulnerável reside nas múltiplas barreiras de ordem física, social ou ambiental a impedir ou dificultar a plena inclusão dessas pessoas em igualdade de oportunidades em face dos demais indivíduos da população. Sendo essa a vulnerabilidade desse grupo, essa é exatamente a razão pela qual a Constituição confere-lhe a especial proteção, consistente na imposição, ao Estado, do dever de atuar para remover tais barreiras.