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O Estado democrático de Direito

2. AS CONSTITUIÇÕES COMO GARANTIDORAS DOS VALORES SOCIAIS

2.4. O Estado democrático de Direito

O Estado Democrático de Direito é aquele que, sendo de Direito, qualifica- se como “Democrático”. Lógico, portanto, que é preciso primeiro compreender o que seja um Estado de Direito para, em seguida, verificar como daí se parte para um Estado Democrático de Direito. E isso é fundamental para o tema que nos dispomos a tratar, qual seja a inclusão da pessoa com deficiência por meio da tributação.

Por Estado de Direito, segundo Carlos Ari Sundfeld, deve-se entender aquele “criado e regulado por uma Constituição (isto é, por norma jurídica superior às demais), onde o exercício do poder político seja dividido entre órgãos

50BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:

Zahar, 2005.

51ARAUJO, Luiz Alberto David. Em busca de um conceito de pessoa com deficiência. In: GUGEL,

Maria Aparecida; COSTA FILHO, Waldir Macieira da; RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes (Orgs.). Deficiência no Brasil: uma abordagem integral dos direitos das pessoas com deficiência. São Paulo: Ed. Obra Jurídica, 2014. p. 12.

independentes e harmônicos, que controlem uns aos outros, de modo que a lei produzida por um deles tenha de ser necessariamente observada pelos demais e que os cidadãos, sendo titulares de direitos, possam opô-los ao próprio Estado”52.

Caracteriza-se, pois, o Estado de Direito pela existência de uma Lei Fundamental suprema que comanda e confere validade a todo o ordenamento jurídico, o qual prevê a separação de poderes, a superioridade da lei e a garantia dos direitos individuais.

Porém nem todo Estado de Direito, seja ele de feições liberais, seja social, corresponde a um Estado Democrático. Este há de ser presidido pela igualdade social. A desigualdade social é um fator que pode prejudicar o funcionamento de um Estado Democrático justo. Nos dizeres de Oscar Vilhena Vieira, “a desigualdade profunda e duradoura gera a erosão da integridade do Estado de Direito” (...).53, sendo certo que os altos índices de desigualdades massacram os

que são menos favorecidos criando “um obstáculo sério à integridade do Estado de Direito”.54 E adverte o mestre paulista para o risco de subversão do Estado de

Direito pela ausência de um mínimo de igualdade social:

O resultado é que o Estado se torna negligente com os invisíveis, violento e arbitrário com os moralmente excluídos e dócil e amigável com os privilegiados que estão posicionados acima da lei. Assim, mesmo que se tenha um sistema jurídico adequado às diversas “máximas” relacionadas com a formalidade do Direito, a ausência de um mínimo de igualdade social e econômica inibe a reciprocidade, através da subversão do Estado de Direito.55

Por óbvio que para se qualificar como “Democrático” é preciso a participação do povo na vida e decisões do Estado. Para Sundfeld, Estado Democrático de Direito “é aquele onde o povo, sendo o destinatário do poder político, participa, de modo regular e baseado em sua livre convicção, do exercício desse poder”.56 Para José Afonso da Silva57 (citando Emílio Crosa) o

52SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 5. ed. 5. tir. São Paulo: Malheiros Ed.,

2014. p. 38.

53VIEIRA, Oscar Vilhena. A desigualdade e a subversão do Estado de Direito. SUR - Revista

Internacional de Direitos Humanos, ano 4, n. 6, p. 42, 2007. Sielo Brasil. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/sur/v4n6/a03v4n6.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2015.

54Id. Ibid., p.46. 55Id. Ibid., p.47.

56SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público, cit., p. 49.

Estado de Direito Democrático, por se fundar no princípio da soberania popular, “impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure, como veremos, na simples formação das instituições representativas, que constituem um estágio de evolução do Estado Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento”.

Ainda para o mestre das Arcadas, agora citando Elías Díaz, a concepção mais recente do Estado Democrático de Direito, identifica-se com “estado de legitimidade justa (ou Estado de Justiça material), fundante de uma sociedade democrática, qual seja a que instaure um processo de efetiva incorporação de todo o povo nos mecanismos de controle das decisões, e de sua real participação nos rendimentos da produção”.58 E desvela que o novo status atingido por nossa

sociedade – Estado Democrático de Direito, tal qual plasmado na nossa Carta política de 1988 – não é mera criação semântica, mas um conceito novo que implica não só a definição de direitos fundamentais e suas garantias, como também o estabelecimento de mecanismos aptos a torná-los operantes, efetivos, até mesmo a despeito da inércia do legislador infraconstitucional. Assevera José Afonso da Silva:

“A configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo. E aí se entremostra a extrema importância do art. 1.º da Constituição de 1988, quando afirma que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, não como mera promessa de organizar tal Estado, pois a Constituição aí já o está proclamando e fundando”.59

No caso do Estado brasileiro, criado pela Constituição de 1988, temos um Estado de Direito, que é Democrático, e mais: é também social, cuja marca é o dever que esse Estado Democrático de Direito tem de “atuar positivamente para gerar desenvolvimento e justiça social” (Sundfeld), o que implica que, impelido por essa formatação e à luz dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, esse Estado Social Democrático de Direito tem o dever de promover a

58SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 118. 59Id. Ibid., p. 119.

inclusão social da pessoa com deficiência, para o que a tributação é um dos eficazes instrumentos.

Como se vê, o Estado Democrático de Direito brasileiro moldado pelo constituinte da Carta de 1988 não se contenta com o abrir de perspectivas de realização de diversos direitos sociais, inseridos, vários deles, no rol dos direitos fundamentais, como, de resto, outras cartas o fizeram. Vai além. Oferece à cidadania instrumentos eficazes para a concretização desses direitos, caracterizadores de um Estado de Justiça Social, sempre tendo em vista a dignidade da pessoa humana, em torno de cujo valor fundante gira todo o ordenamento jurídico.

No mesmo rumo, pontua Oscar Vilhena Vieira que, em países de regimes democráticos como o Brasil, as novas “constituições normalmente trazem uma carta de direitos generosa que reconhece direitos civis, políticos e também uma gama extensa de direitos sociais. Elas também reconhecem os principais elementos institucionais do Estado de Direito e da democracia representativa. Mais do isso, essas constituições pós-autoritárias criam novas instituições, como o ombudsmen, as defensorias públicas, as comissões de direitos humanos e o ministério público para monitorar o respeito ao Estado de Direito e proteger os direitos constitucionais dos grupos e indivíduos vulneráveis.”60

Com acerto, Gilmar Ferreira Mendes observa que ainda nos faltando uma perspectiva de tempo que nos permita uma análise crítica conclusiva acerca da efetividade das normas do texto constitucional atual, não seria “prudente anteciparmos nenhum juízo crítico a seu respeito, embora possamos formular augúrios: que ela nos permita construir, com discernimento e firmeza, uma sociedade efetivamente justa e solidária, que tenha na dignidade da pessoa humana o seu referente fundamental”.61 Ainda que nos falte, deveras, essa

perspectiva de tempo, podemos, contudo, afirmar com convicção que muito se avançou.

Mas seja como for, podemos asseverar que a utilização da tributação em função extrafiscal qualifica-se como instrumento de ação afirmativa que tem

60VIEIRA, Oscar Vilhena. op. cit., p. 48.

61MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, op.

aptidão para provocar mudanças sociais tendentes à promoção da igualdade social das pessoas desafortunadas, dentre elas as pessoas com deficiência. A extrafiscalidade da tributação também tem o condão de plasmar as atitudes dos particulares fazendo-as convergir para a implementação dos objetivos de nossa República, vez que, na lição de Raimundo Bezerra Falcão, “o intervencionismo do Estado na economia e, por via consequência, nas relações sociais e na elevação geral do nível de vida, é o caminho menos cruento de ser palmilhado por aqueles que, de sã consciência e sem a venda da ganância desenfreada, efetivamente desejem nítida mudança social”.62

Certo é, em suma, que a tributação - guiada por rígidos princípios de raízes constitucionais -, sem perder sua função precípua de abastecer os cofres públicos para que o Estado alcance suas finalidades e realize seus objetivos fundamentais, cumpre, também, um relevante papel extrafiscal de servir como instrumento de inclusão da pessoa com deficiência.