• Nenhum resultado encontrado

2. AS CONSTITUIÇÕES COMO GARANTIDORAS DOS VALORES SOCIAIS

2.2. O Estado Liberal

No final do século XVIII, com o advento da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), aquilo que se tinha como afirmação de valores meramente morais atingiu o patamar de documento escrito de definição dos fundamentos e pontos básicos de uma nova organização política, como a delimitação de poderes e de direitos do indivíduo perante o Estado e seu governante.

Num ambiente de muita agitação social, em que, a despeito de profundos conflitos de interesses, toda a sociedade desejava uma clara definição de regras que, eliminando o absolutismo inconsequente, o arbítrio, conferissem

32

Em seu art. 39 havia a previsão de que “sem julgamento leal de seus pares, de conformidade com a lei da terra, (law of the land)”, nenhum homem livre será detido ou despojado de seus bens, exilado ou prejudicado de qualquer maneira que seja. (apud FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 30).

33COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo:

Saraiva, 2012. p. 91.

previsibilidade e estabilidade ao sistema, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que dispunha que “uma sociedade em que a garantia dos direitos não está prevista nem a separação dos poderes está determinada, não possui Constituição”35, foi adotada como preâmbulo da primeira Constituição Francesa

escrita, de 1791. Pouco antes (1787), verificara-se a independência das colônias inglesas da América do Norte que, regidas por constituições escritas, se uniram para a viabilização de uma sociedade livre.

Embora representasse um expressivo avanço, esse estágio do constitucionalismo, que se apresentava como viabilizador de uma organização do Estado e que encerrava uma inegável limitação do poder e de seu exercício, através da previsão de direitos e garantias fundamentais, não previa e nem muito menos efetivava direitos sociais. Portanto, nesse contexto, os grupos hoje tidos como vulneráveis – cujo conceito adiante se verá –, entre eles o formado pelas pessoas com deficiência, ainda não constituíam objeto da preocupação protetiva do Estado.

Com esse perfil normativo construía-se um Estado liberal36, neutro no âmbito das relações sociais, em cujo contexto o indivíduo detinha uma parcela de autonomia na qual não competia ao Estado interferir. Cada qual tinha definida sua liberdade, esta, sim, assegurada. Poder-se-ia dizer, num exercício de ironia, que nesse estado liberal todos seriam livres para escolher sua moradia, no barraco ou no palácio; poderiam escolher sua profissão, singela ou sofisticada; poderiam se alimentar livremente, comendo pão, ou brioche, na falta daquele alimento básico. Esta postura do Estado em não interferir nas relações sociais tinha como objetivo a garantia da estabilidade necessária ao desenvolvimento do capitalismo e a consecução dos interesses econômicos, assumindo esse Estado liberal

35Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, art. 16.

36“O termo liberalismo ganhou destaque após a Revolução Francesa, em 1789. Em sua origem, o

liberalismo não se confunde com a democracia. De fato, nem todos os Estados originariamente liberais tornaram-se democráticos. Entretanto, os Estados democráticos existentes foram originariamente liberais. Assim, liberalismo e democracia não são interdependentes: um Estado liberal não é necessariamente democrático e um governo democrático se transforma necessariamente num Estado liberal. Isso porque, enquanto o ideal do primeiro é limitar o poder, o do segundo é distribuir o poder” (...) “Na formulação hoje mais corrente, o liberalismo é a doutrina do “Estado mínimo”. Ao contrário dos anarquistas, para quem o Estado é um mal absoluto e deve, pois, ser eliminado, para o liberal o Estado é sempre um mal, mas é necessário, devendo, portanto, existir, mas dentro dos limites mais restritos”. OLIVEIRA, Samuel Antonio Merbach de. Norberto Bobbio: teoria política e direitos humanos. Revista de Filosofia, v. 19, n. 25, p. 366, jul./dez. 2007.

“essencialmente características de abstenção: não atuar na ordem econômica nem afrontar os direitos e as liberdades individuais”.37

Com perspicácia, assevera Nelson Saldanha que “no plano institucional, o liberalismo significou a construção de um Estado em que o poder se fazia em função do consenso, e em que a divisão de poderes se tornava princípio obrigatório; o direito prevalecia em seu sentido formal e a ética social repudiava as intervenções governamentais”.38

Privilegiando a propriedade privada como um dos direitos mais importantes para o desenvolvimento e a realização humana e sua pouca intervenção nas relações privadas, o Estado liberal assistiu a precarização das classes trabalhadoras, que eram exploradas pelos detentores do poder econômico. Não por outra razão, foi um período marcado por doenças e extrema pobreza resultante de uma jornada de trabalho em que os trabalhadores eram expostos a péssimas condições, o que lhes afetava a saúde.39 Fábio Konder Comparato pontua que o resultado produzido foi a pauperização das massas proletárias:

"As declarações de direito norte-americanas, juntamente com a Declaração francesa de 1789, representaram a emancipação histórica do indivíduo perante os grupos sociais aos quais ele sempre se submeteu: a família, o clã, o estamento, as organizações religiosas. Mas, em contrapartida, a perda da proteção familiar, estamental ou religiosa tornou o indivíduo muito mais vulnerável às vicissitudes da vida. A sociedade liberal ofereceu-lhe, em troca, a segurança da legalidade, com a garantia da igualdade de todos perante a lei. Mas essa isonomia cedo revelou-se uma pomposa inutilidade para a legião crescente de trabalhadores, compelidos a se empregarem nas empresas capitalistas. Patrões e operários eram considerados, pela majestade da lei, como contratantes perfeitamente iguais em direitos, com inteira liberdade para estipular o salário e as demais condições de trabalho. (...) O resultado dessa atomização social,

37NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito: do Estado de direito liberal

ao Estado social e democrático de direito. Coimbra: Almedina, 2006. p. 73.

38SALDANHA, Nelson. Estado moderno e o constitucionalismo. São Paulo: Bushatsky, 1976.

p. 51-53.

39”Surge então o proletariado, grande massa que vivia em condições indignas, submetida a

jornadas excessivamente prolongadas com o agravante da exploração do trabalho de menores de tenra idade, com menos de nove anos, além do emprego exagerado da mão-de-obra feminina, razão pela qual não tardaria por advir forte reação por melhores condições de trabalho e de vida”. BELTRAN, Ari Possidonio. A autotutela nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 1996. p. 116.

como não poderia deixar de ser, foi a brutal pauperização das massas proletárias, já na primeira metade do século XIX."40

Como reação a esse perfil estatal, o Papa Leão XIII, em sua Encíclica

Rerum Novarum, de 1891, apontava deveres sociais do Estado e dos detentores

do poder econômico. Dizia que o “Estado deve servir o interesse comum. (...) Façam os governantes uso da autoridade protectora das leis e das instituições; lembrem-se os ricos e os patrões dos seus deveres; tratem os operários, cuja sorte está em jogo, dos seus interesses pelas vias legítimas”.41

Obviamente que se nem mesmo as classes, que com sua força de trabalho construíam faziam a riqueza dos detentores do poder econômico, eram reconhecidas em seus direitos, muito pouco poderiam esperar as pessoas infelicitadas por uma deficiência de qualquer natureza. No Estado Liberal à pessoa com deficiência, como a qualquer outra, restava o reconhecimento de poderia livremente ser ou não ser; de que estava livre para desenvolver-se, ou não, se assim o preferisse. Estamos a falar dos direitos humanos de primeira geração, relativamente aos quais ao Estado, para vê-los implementados, bastaria não turbá-los, não impedi-los. Eram os chamados direitos de defesa, que se caracterizavam, como anota Gilmar Ferreira Mendes, citando Vieira de Andrade, por impor ao Estado um dever de abstenção, um dever de não-interferência, de não-intromissão no espaço de autodeterminação do indivíduo42. Não custa

observar que nesse cenário de estado mínimo, a necessidade de recursos financeiros era infinitamente diminuta em relação ao atual papel do Estado. Logo, à tributação competia tão somente cumprir seu papel tradicional de instituir e arrecadar os tributos capazes de abastecer os cofres públicos com os recursos que possibilitassem ao Estado fazer face à sua modesta atuação – de defesa, meramente.

40COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva,

2004. p. 41.

41CARTA Encíclica. «rerum novarum» do Sumo Pontífice Papa Leão XII. Disponível em:

<http://w2.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum- novarum.html>.

42MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, op.

Mas mesmo esse Estado mínimo era um avança em comparação ao passado de arbítrio. Não há como se negar que a essa altura a sociedade já havia avançado num largo passo em direção à civilização e a uma vida livre da opressão. Os cidadãos não mais se achavam sob o jugo do autoritarismo, do voluntarismo dos governantes déspotas. Conquanto assim o fosse – os cidadãos livres da opressão, do despotismo –, nesse estágio longe se estava de um Estado que reconhecesse, para sua população em geral, uma plêiade de direitos básicos à saúde, à educação, à habitação, ao trabalho, à aposentadoria e outros. Todas as pessoas eram livres, inclusive para que se bastassem, ou não.

Nesse contexto, por óbvio, ainda não havia espaço para preocupação com a proteção de inclusão social de grupos vulneráveis. A pessoa com deficiência, sem uma proteção social específica – como, de resto, todas as demais pessoas – era apenas livre, como os demais. Anote-se que somente com a passagem do Estado Liberal para o Estado Social é que se verificou o surgimento dos chamados “grupos”. Fábio Konder Comparato assinala que o detentor dos direitos sociais deixou de ser o indivíduo considerado em abstrato, passando a ser o conjunto de grupos sociais oprimidos e marginalizados pela força do capital.43