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Ações de reciprocidade para além da cura religiosa: a “bodega” nos rumos de uma experiência de fundo rotativo

AGENTES DE CURA: TRAJETÓRIAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE CURADORES E BENZEDORES

4.3 Ações de reciprocidade para além da cura religiosa: a “bodega” nos rumos de uma experiência de fundo rotativo

As experiências que se inserem no plano das “reciprocidades” no meio rural surgem em diferentes expressões; podem ser mais visíveis e atuantes em certo período, ter menor visibilidade e destaque em outras situações. Em geral, estas experiências independem da interferência de organismos de representação social embora também existam na relação com os mesmos. Elas também podem ser entendidas como “coletividades” locais. Embora existam formas conhecidas de coletividade que são atribuídas a populações específicas, o cotidiano camponês está propício a uma diversidade de exemplos a esse respeito.

Para Mendras (1978) os historiadores assinalam que a sociedade camponesa organiza suas “coletividades locais", segundo modelos particulares que constituem a característica intrínseca de sua civilização. Eles têm demonstrado como a coletividade camponesa se reforçou e desenvolveu traços comunitários no decorrer da Idade Média, quando tentavam preservar a própria autonomia contra a feudalidade. Segundo Mendras entre essas “coletividades camponesas” figura o critério do interconhecimento.85

A referência ao critério

84José experimentou várias iniciativas para sustento da família. Quando uma atividade não dava certo ele logo

tentava outra. Ele acabou se especializando no trabalho com pele de boi, uma atividade que contribuiu muito na retomada sua vida. Ele repassou o ofício para a próxima geração de sua família e o ensinou a outras pessoas da sua convivência: Ele negociou com porco, com gado, com bode, ele vendia sola... Mas não tinha jeito. Mas graças a Deus, Jesus ensinou esse meio a ele melhorou ele e a família toda. Ave Maria! Aquilo era um filho de Deus. (Josefa, 90 anos).

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Mendras (1978) fundamenta a sua análise de interconhecimento em Marcel Maget, que acentuou a forma particular de regulamentação da sociedade aldeã em que se resume na afirmação até certo ponto comum neste âmbito: “Aqui todo mundo se conhece”, em sinônimo do habitat, ao mesmo tempo um território definido por

de “interconhecimento” implica que “aqui todo mundo se conhece”, que gera uma série de relações entre os camponeses que agem nas transparências, nas previsibilidades e nas estratégias de ações. O conhecimento é fundamental para que a partir dele se ergam as práticas recíprocas; para isto, basta um esforço inicial por parte de alguém do meio. A referência às “coletividades locais e relações de interconhecimentos” dialoga muito facilmente com o universo das práticas religiosas; elas se expressam em ações que podem evoluir para a construção de campos de “múltiplas ajudas” e mesmo constituir um campo de explicação para diversas “dádivas”. Neste aspecto, as carências mais latentes na comunidade tendem a ser enfrentadas por suas “coletividades” locais e neste percurso, geram-se as formas de organização que refletem regras ou normas camponesas.86

A “bodega” foi uma iniciativa que José Avelino encontrou como meio de suprir as necessidades das pessoas carentes de sua localidade. Quem pudesse comprava e pagava; quem não pudesse levava o produto, repondo posteriormente, de alguma forma. Funcionava de modo tal que, não evoluía, mas também não decrescia - só foi extinta após a morte do seu gestor.87 Em épocas difíceis, todos os necessitados “comiam” do local.

Chamou a atenção também em José, sua relação com o dinheiro no comércio que praticava com a família. O dinheiro dele circulava entre três mãos. Ele realizava seu comércio e passava para um filho, este realizava seu investimento e em seguida passava ao seu irmão que devolvia ao pai. Os próprios filhos se admiram como o “negócio” funcionava tão bem.88

O ofício desenvolvido com a pele bovina foi sua fonte de renda, mas também uma arte para ensinar à família e a outras pessoas da localidade - pessoas que atualmente fazem do aprendizado uma fonte de renda para sobrevivência no meio rural.

Por outro lado, ajudar aos necessitados era sua meta principal. José esteve sempre atento às épocas difíceis na comunidade. Para os romeiros, o amor que ele demonstrava para com os mais pobres já fazia parte do suposto merecimento dado por Deus, como relembram:

oposição aos vizinhos e um território construído servindo de residência, instrumento de trabalho e sociabilidades distintas. Wanderley (1982) compartilha do mesmo pensamento e aprofunda a questão nos estudos a respeito do campesinato brasileiro na atualidade.

86 Esse tipo de reciprocidade proporciona a criação de valores entre os camponeses que diferenciam da simples

troca de produto. A troca não cria nenhum valor em si mesmo. (SABOURIN, 2009). A reciprocidade cria um valor ético (MAUSS, 1950). Há uma relação mútua que promove uma nova relação.

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O local possuía os produtos básicos de que uma família rural precisaria: sabão, querosene para as lamparinas, rapadura, fósforo, sal, dentre outros. As pessoas se admiram porque não faltavam produtos neste local, mas também nunca aumentava. Se o próprio curador precisasse de algum produto da “bodega”, para uso pessoal, ele também colocava o dinheiro na caixinha. O que se destaca é que com essa iniciativa ele supria necessidades tanto da sua família como dos demais carentes da região.

Ele foi um homem de merecimento, viu? E, hoje mesmo, eu acho que ainda ele é. Eu acho que quando as pessoas trabalham com vida pras coisas de Deus, quando morrem é que têm merecimento. Viu? Eu penso assim, viu? Ele ajudava o povo, homem! Ele tinha uma barraquinha, homem! Vendia tudo e ficava sem nada. Vendia àqueles pobrezinhos que viviam passando fome. Ele foi um homem que trabalhava para ajudar o pobre e pra quem não tinha, pras coisas de Deus. Ele fez muita caridade. Ele foi um homem de Deus, né? E hoje é que ele é.

(Francisco, 86 anos)

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