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AGENTES DE CURA: TRAJETÓRIAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE CURADORES E BENZEDORES

4.4 A metáfora da passagem para outra vida

Entre os indígenas, um guerreiro não temia a morte. “Marcham alegres para a morte aqueles a quem está reservado o destino”.

(Cronista holandês Gaspar Barléu: apud KOK 2001).89

José Avelino pressentiu sua própria morte e tentou comunicá-la, mas não foi entendido. Os romeiros lamentam essas incompreensões e suas ausências naquele momento. Ouvi e registrei muitos comentários a respeito; geralmente eram carregados de emoções e acompanhados de choro.

Quando a gente chegou lá, ele sentado em cima de um saco de algodão e nós também. Ele disse: Olha Tel hoje eu andei a terra todinha, só não fui na terra na beira do rio – a terra da beira do rio era pertinho de minha casa, era só atravessar o rio eu não fui porque tava muito longe – mas andei as terras daqui todinha, porque hoje essa linha vai cair! - Eu ri com ele, a gente brincava muito: Mas seu Zé o Sr. não tá vendo que essa linha não vai cair! Ele disse: Vai Tel. Essa linha hoje ela cai! A linha da casa dele.

Eu olhava pra ele... Ele ria pra mim... De instante ficava aquele ar assim meio... Aquela cor roxa... Aí limpava! Daí ele rezou a minha cabeça, rezou a menina e nós ficamos conversando, ele contando as histórias todinhas da família, dos filhos, como iam ficar.

Eu disse: Seu Zé eu vou indo pra capela porque ta ficando tarde se não eu não passo mais na mata que fica escura, ai eu sai pra capela, que quando eu tava fechando a porta ele disse: Deixe aberta que eu vou pra ai.

Eu saí me despedi dele, pedi a benção.

Quando eu cheguei em casa, eu vim a pé, já um portador tinha avisado que ele tinha morrido.

(Maria das Neves, conhecida por „Tel‟, 73 anos)

Maria das Neves, que esteve com José no dia de sua morte, relatou-nos as conversas que tivera antes de sua partida. Observem que são histórias marcadas por analogias e

89 Kok se refere a Gaspar Barléu (1974): História dos Feitos recentemente praticados durante oito anos no

metáforas. Ele associou sua partida à queda da “linha da casa” comparando-a consigo mesmo.90 Da mesma forma em que anunciava sua sucessão.

Nesse mesmo dia ele disse: Quando eu morrer eu vou deixar aqui um sucessor, vocês não vão ficar a sós não! Porque eu deixo um sucessor e sempre eu estou do lado de vocês, eu estou pra defender vocês. - Onde eu estiver eu estou orando por vocês. – E eu acredito que ele está mesmo, porque quando eu estou muito aflita, eu rezo um “pai nosso” pela alma dele e aquilo em mim passa. É passageiro! Aí quando foi com um tempo apareceu Jacinto.

(Maria das Neves, 73 anos)

Há consenso na comunidade de que a morte de José Avelino não o separou do convívio com a comunidade. Eles se referem a uma presença enquanto “alma do bem” que continua atuante no local. Se a partida de José foi um motivo de insegurança e grande tristeza, na década de 60, a confiança de sua presença sobrevive nos sentimentos de que ele “atende” no local. E os mais religiosos identificam o atual curador (o neto de José Avelino) como seu real sucessor. “Eu sei que quando ele saiu daí (quando partiu) a gente quase endoidece, mas onde ele está”... (Severina)

Foi sempre subentendido que a ocasião de sua morte seria um momento de felicidade para ele. Isso se revela em algumas frases por ele pronunciadas em conversas com os mais próximos: “meninos o dia de mais alegria da minha vida é o dia que eu souber que aquele pai lá de cima vai me mandar buscar”. José Avelino descrevia a morte enquanto “meio” para uma vida plena.

Proibido pelosmédicos de se expor à chuva ou ao sol, no último dia de sua vida, José caminhou por toda área de sua propriedade e visitou vizinho, sob a luz do sol. Os que o convidaram para entrar contam que ele não costumava entrar nas casas das pessoas e apenas comunicou que estava a caminho da Igreja e destacou: “não, eu vou pra Igreja. Porque quando for de noite as mulheres irão, mas eu não vou!” Ele estava falando por mensagens e mais uma vez não fora entendido por seus pares. Registrei alguns comentários sobre este dia:

Aí quando foi na tardezinha, eu tava lá dentro, tem uma sobrinha minha sentada ali, no por do sol, disse: oh Madrinha, tio Zé Avelino ficou em ar de morrer e pai foi aqui em toda carreira para chamar João Araújo. (um genro dele).

Nesse tempo eu fumava. Só fiz pegar o cachimbo, a caixa de fósforos e o fumo, botei no bolso e fui. Chovendo, minha filha! O sítio era uma lagoa.

90 Denomina-se “linha” a parte central de uma casa que liga um extremo do telhado a outro. A linha representa a

Nesse tempo o caminho do Olho d‟ Água era por aqui. Era longe que só! Aí quando eu cheguei lá João Araújo tinha tirado a vela da mão dele naquele momento.

Mas essa menina eu vou te dizer: o homem estava com uma quentura tão quente do mundo que... Ele morreu com uma quentura tão grande que ninguém podia se encostar. Eu sei que ele morreu por volta das sete horas da noite, não dava sete horas ainda não. Uma seis horas mais ou menos. E quando o dia amanheceu a casa estava cheia de gente. Que não cabia. E no enterro dele... Quando o dia amanheceu ai que se estabeleceu a morte dele aí haja chegar gente, chegar gente, quando foi na hora do enterro dele, essa menina, só você vendo, na hora do enterro dele só você vendo!

Esse enterro parecia quando as pessoas acompanham a procissão do Senhor morto. O cemitério não acolheu todo mundo, deixando muita gente do lado de fora. Mas ele ficou. Todo mundo ficou com aquela devoção não sabe? (Josefa Barbosa, 90 anos)

Há um sentimento aparente comum que José Avelino partiu em profunda tranqüilidade. As pessoas confirmam que na ocasião de sua morte ele seguiu um ritual de despedida com conversas, orações e um canto o qual descrevo a seguir.

Bendito Louvado seja esta terra de meu Deus; bendita seja a casa que meu padrinho nasceu.

Meu padrinho estava dormindo, em seu bercinho de flor, desceu um anjo do céu o meu padrinho Cícero acordou. (bis)

Acorda Cícero acorda que é oito horas do dia, a casa Santa é longe vamos adorar Maria. (bis)

A beata da Penha por ser a mais milagrosa viu quando o anjo desceu, por ser a mais milagrosa. (bis)

A professora da Penha, com prazer e alegria de ver meu padrinho Cícero, filho da Virgem Maria. (bis)

Na escola de meu padrinho tinha 31 meninos o derradeiro foi Santo, por ser ministro divino. (bis)

A moça que souber ler procure sempre aprender, na hora de sua morte saber do seu abc.

Meu padrinho Cícero encomenda e torna recomendar quem for para o Juazeiro, precisa se confessar. (bis)

Se confessar na Matriz, comungar no Juazeiro, Nossa Senhora das Dores é a Guia dos Romeiros. (bis)

Quando chegou a notícia, padrinho Cícero morreu, o Sertão cobriu de luto e o Juazeiro entristeceu. (bis)

Chorava homem e mulher, sem ter mais consolação, quando ia pro enterro de padrinho Cícero Romão. (bis)

Chorava moça e menino, que faz cortar coração, cobrindo a cova de flores junto com o seu caixão. (bis)

Quando chegou lá no céu, meu padrinho Cícero Romão, cantando hino de glória logo estrondou um trovão. (bis)

(A cópia foi-nos fornecida por Zeuma, a esposa do atual curador)

A referência do canto que homenageia o padre Cícero e o Juazeiro se traduz no significado destes na vida de José, além de apontar para aspectos relevantes de sua crença ao

fazer deste o canto escolhido para sua partida. Antes de se recolher para “a morte” José dirigiu-se a uma romeira antiga do seu grupo. Dizem que ele falou: “minha hora está chegando”. Mas ela não entendeu e tornou a perguntar, mas ele apenas olhou, riu e reafirmou: “Nada Dona Chiquinha! Agora se Deus quiser vou andar de muletas”. E ela ainda sem entender, disse-lhe apenas: “Deus o livre Sr. José”. Pelo que se entendemos, essa visita fazia parte do ritual de despedida. Ele dirigiu-se ao seu quarto e disse apenas: “Minha hora já chegou!”.91

Ele dizia que ninguém se afastasse da Capela não; que a era de 60 ele não ia ver. Ele morreu em 64.

Quem tivesse merecimento... Ouvia as vozes dele dentro da Igreja. E quem não tiver o merecimento vai lá, mas não o “ouve”; Porque não tem o merecimento. Não é? Quem tiver o merecimento vai e escuta a voz dele lá! Ele me dizia, viu? É!?

Quando foi em 60 ele morreu. Aí todo mundo se afastou. Todo mundo se afastou! Só tinha fé quem visse ele lá!

Ele dizia isso como nós estamos conversando assim. Nós não estamos conversando assim? Do jeito que eu estou conversando com a senhora ele dizia pra eu! É! Não era outra coisa não. Era assim! Que do jeito que eu estou passando pra senhora aí... Ele passava pra eu. Era a mesma coisa, não era outra coisa diferente não. É!.... Aí foi tempo que Jacinto aí... E a gente vai lá... Não é?

(Francisco, 86 anos)

As pessoas normalmente se referem a mistérios na história de José. A forma como José se despediu da vida provocou interrogações entre os romeiros e dá origem a uma pergunta: O que representa a morte?

A morte é para a maioria dos vivos algo desconhecido e indesejado. Neste sentido, a consciência da própria morte poderá ser algo aceito ou traduzir-se em angústia, desespero. Nos ensinamentos desse curador, a morte tornou-se um meio de abertura para o transcendente.

No livro Confissões, Agostinho se “mostra” um pensador existencialista, pois reflete não sobre uma teoria, mas a partir da sua vida concreta. No livro quarto, antes da conversão, Agostinho faz a experiência da angústia diante da morte, pois perde o seu melhor amigo. Agostinho vive a angústia do medo de morrer como ele próprio afirma: “(…) dominava-me um pesadíssimo tédio de viver e um medo de morrer”.

91 Os filhos mais novos, os da segunda esposa, assistiram à sua morte. Dois deles entraram em aflição. Nesse

momento, os vizinhos que não esperavam por esse acontecimento, imaginavam ser uma brincadeira de irmãos, mas logo puderam constatar o ocorrido. Enquanto eles estavam aflitos, o futuro falecido pedia que se acalmassem e não se preocupassem. Exclamava: “Não se incomodem”.

O fato é que o homem é um ser limitado, finito e é isso que Agostinho reconhece e para ele isso se traduzia também em angústia. Ao remeter essa compreensão de Agostinho à história de José observamos que José não revela espanto perante a morte. Embora ele também fosse um conhecedor dos “limites” humanos, demonstra uma crença maior “nas formas de transfiguração”. Acreditar na possibilidade de “continuar existindo” a partir de um sucessor, não significaria também acreditar “na vida após a morte”? Pois, observamos que com sua saída há consciência de uma “ruptura”, mas com o seu neto atualmente predomina outra crença - a de sua continuidade.92 Nesse sentido, identificamos portas diferenciadas na análise, mas que possivelmente também podem se cruzar. Uma pela via dos estudos das comunidades indígenas sobre suas formas de relação com a morte, situação mais próxima do catolicismo popular; a outra no fenômeno da reencarnação conforme se configura na crença do espiritismo.93

Se para os índios era fundamental o morrer vinculado a um plano coletivo, para os jesuítas, o que contava na morte eram a aplicação da pena ou a recompensa no plano individual. Analisando a conquista do México, Todorov apud Kok (2001: 98) afirmou que “(...) a morte só é uma catástrofe numa perspectiva estritamente individual, ao passo que, do ponto de vista social, o benefício obtido da submissão à regra do grupo pesa mais do que a perda do indivíduo. Por isso, vemos os futuros sacrifícios aceitarem sua sorte, se não com alegria, pelo menos no campo de batalha: o sangue deles contribuirá para manter a sociedade viva”.

A interferência da morte e seu sentido para com o coletivo ocupam lugar na história de José. O estudo de Kok (2001) traça um quadro das disputas simbólicas em torno do sobrenatural na América portuguesa, a partir da chegada dos jesuítas em 1549. A autora se detém as diferentes concepções de morte que predominam entre Tupi-Guarani e Jesuítas, com a devida atenção às disputas pelo espaço simbólico, o impacto da concepção cristã de além, as formas de resistência indígena e o triunfo ambíguo da pedagogia Jesuíta. Neste suposto cruzamento de concepções e práticas “contraditórias” emerge um campo de tensões e disputas

92

Ou analisando de outro modo, algo que prevalecesse de encontro às práticas indígenas de relação entre mortos e vivos. É lícito afirmar que os índios acreditavam na realidade de uma substância para além do corpo físico, a que os europeus atribuíram o nome de alma. A crença indígena acredita na imortalidade da alma. É importante lembrar que a alma indígena não envolvia a idéia de desmaterialização absoluta, tão pouco suprimia todas as ligações entre a „alma‟ e os restos mortais. Nessa ótica, a morte representava uma fenda na pessoa, a partir da qual o corpo e a alma submetiam-se a intensos processos de transformação (KOK, 2001; FERNANDES, 1970).

93 A crença na reencarnação tem sido estudada por vários pesquisadores que compreendem a reencarnação como

forma de que a pessoa teria várias vidas sucessivas. A doutrina católica julga essa crença incompatível com a Fé Cristã, pois entende que “para os homens está estabelecido morrerem uma só vez e em seguida virá o Juízo” Conforme descrições bíblicas em (Heb 9,27), logo estes não poderiam ter mais de uma existência.

simbólicas que, de certa forma, refletem-se na história do nosso imaginário católico e com ênfase no universo religioso no meio rural.

A morte “natural” relacionada aos curadores não apresenta, em si, semelhanças às formas de “martírios” vividos pelos indígenas relatadas por Kok (2001), mas é possível referenciá-las na análise. Os romeiros falam em “satisfação”, conforto, vida plena, atribuindo a morte de José. “O sacrifício” de sua morte em José pode ser entendido como lições para os que ficam, ou forma de deixar sobrescrita sua mensagem que no mundo espiritual a morte não representa o fim, mas o começo de nova forma de vida. Nesses termos, nem ele nem aquele local sofreriam com seu desaparecimento físico.

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