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Devoção e Pregação expressando capacidades no Dom

A AQUISIÇÃO DO DOM DA CURA: O DOM VEM DE DEUS

5.4 Devoção e Pregação expressando capacidades no Dom

Cresci nessa devoção, nessa devoção me criei, rezando. Dois anos eu saí daqui pra rezar o mês de maio lá. (...) eu saía daqui toda noite. Naquela casinha de oração. Ele me chamava, pra fazer os gostos dele eu ia.

Olhe eu fiz promessa com nossa Senhora da Conceição, porque lá ele rezava. Com nossa Senhora da Conceição que se eu aprendesse o ofício “de cor” todo sábado eu rezava!

Todo sábado eu pra lá. Enquanto ele foi vivo eu rezei lá mais ele. E lá mesmo eu aprendi o ofício todinho “de cor”. Tenho essa devoção. Todo sábado eu tenho que rezar sozinha, no pezinho dessa mesa, fazer minha promessa não é? Tenho que pagar do jeito que fiz.

(Josefa, 90 anos)

Denomina-se “devoção” o ato de dedicar-se ou consagrar-se a alguém ou entidade. Faz referência a um sentimento religioso, um culto, uma prática religiosa, uma dedicação íntima, afeição, afeto ou objeto especial de veneração. (AURÉLIO, dicionário). O católico devoto é o praticante assíduo de algum ato religioso, por exemplo, a veneração a um santo, ou seja, a devoção trata de hábitos de cultos diários ou freqüentes.

Ser “devoto” é um traço marcante na identidade dos curadores. O curador José se assemelha aos ícones curadores (Frei Damião, Ibiapina e Padre Cícero) por desempenhar com sucesso o papel de e pregador e conselheiro. “Ele retirava as pessoas do mau caminho”, dizem os romeiros. Ele evitava atender pessoas “no mau caminho”, mas se o procurassem ele devia atendê-los, por fidelidade à sua missão e por entender que o assunto merecia sua atenção.

Ele era que nem um pregador, quando ele achava uma pessoa errada ele baixava a boca pra cima! (...) pregava assim,que nem os padres pregam, não sabe? A letra dele era pouquinha. Ele estudava era de cabeça aquilo que ele se soltava!

Acho que era Jesus que conversava na cabeça daquele homem! Ele dizia tanta coisa, importante pra gente ir pro bom caminho.

Eu ia lá muitas vezes. Muitas vezes. Muitas noites mesmo! Hoje me acho nessa situação, me acho cega, me acho sem muita saúde, mas eu nunca esqueço.

Sou não vou lá quase todo dia, ver esse daí [o novo curador] que tomou conta da devoção dele... Ele ta aí na frente, ta com força, mas não é como ele. Porque ele já era um homem velho, de idade. Mas tem esse aí que leva a devoção dele, e eu mesmo tenho muita fé. Só não vou lá assistir a devoção

dele porque não posso. Eu sou uma pessoa paralítica esperando só a minha hora!

Ave Maria ele dava conselhos demais. E tinha uma coisa ele tinha uma estrela abençoada por que todo mundo que ele dava conselho o povo tomava. Eu me lembro porque toda vida ele aconselhava os errados. Dizendo que não fizesse aquilo, aquilo não era bom. Como era que fazia como era que não. Assim.

(Josefa 90 anos)

Mesmo que cada história seja específica, a história desse curador se insere num panorama mais amplo que envolve alguns aspectos também presentes nos Beatos e Profetas na história do Catolicismo Popular, entre estes os “grandes” beatos Ibiapina, Cícero e Damião. Esse Catolicismo Popular se concretizou entre as camadas pobres de forma bastante especial, distante, mas não imune à influência da Igreja enquanto instituição e da hierarquia católica.

O papel do pregador no mundo rural associa-se ao surgimento dos grandes movimentos ou “guerras populares” que foram sustentadas pelas figuras míticas dotadas de grande capacidade de liderança e de mobilização, nas últimas décadas do século XIX e as quatro primeiras décadas do século XX; caracterizadas por uma série de movimentos como Canudos, Contestado, e Caldeirão (FERES, 1990:212).

Um traço considerado em comum é o fato de lavradores, (pequenos proprietários e trabalhadores rurais) reunirem-se em torno de um pregador: um leigo inspirado que percorre o interior organizando rezas e propagando a conversão dos pecadores e a preparação para novos tempos. O prestígio destes pregadores - que no Norte eram chamados de beatos e no sul de monges - em geral é grande e sua fama os precede nos lugares onde passam. O povo acorre para ouvir seus ensinamentos e para aconselhar-se ou receber as suas bênçãos. Em alguns casos, o pregador é também um rezador, “rezeiro”, ou “curador”: benze pessoas ou animais doentes, conhece orações fortes para abençoar plantações, receitas chás, e beberagens naturais contra doenças. Na medida do seu sucesso torna-se um “milagreiro”.

Em alguns casos, os monges proporcionavam um ajuntamento informal: o grupo se constituía por ocasião de onde o pregador acampava e durava pelo tempo do acampamento, conforme se deu com os monges do João Maria e José Maria ligados ao Contestado no Sul. Algo semelhante ocorreu entre os mais carismáticos do clero que também realizavam peregrinações pelo interior, conforme o caso do padre Mestre Ibiapina, o famoso sacerdote Cearense que realizou várias tentativas para congregações religiosas nacionais no Sertão nordestino, organizando comunidades permanentes de mulheres que faziam votos de castidade e prestavam serviço aos pobres. Em ambos os casos, tantos os leigos “incultos”, quanto os sacerdotes eram encarados com extrema desconfiança pela hierarquia. Essas

manifestações religiosas são classificadas como “Catolicismo Rústico” e foram abordadas sob o prisma do messianismo (FERES 1990:214, citando TEIXEIRA e QUEIROZ).

As “Santas Missões” (especialmente as do padre Ibiapina e frei Damião) eram relativamente raras no passado, mas marcavam profundamente a vida das populações interioranas. Foi através das missões que a maioria dos católicos, naquela época, pôde ter contato com a Igreja oficial.

Atuando como “beatos”, os curadores chegaram a ter uma estima especial diante da população; às vezes eram mais respeitados que o clero. Se o beato falava a linguagem do povo, o rezador acompanha o povo em seus momentos cruciais, entende seus anseios e sentimentos e fornece orientações e remédios. Frei Damião, apesar de representar um lado conservador da Igreja Católica, se situa entre estes dois mundos, da Instituição e do povo. Mesmo com sua linguagem conservadora ele se aproxima do contingente popular e ganha popularidade. Sua mensagem é recebida não como paradoxo, mas como algo que transforma o sofrimento em graça.

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