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AGENTES DE CURA: TRAJETÓRIAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE CURADORES E BENZEDORES

4.7 Os Curadores Consagrados ou Almas Santas: Padre Ibiapina, Frei Damião e o Padre Cícero

4.7.1 Padre Ibiapina, o “Apóstolo da Caridade”

Entre esses padres do Povo, vêm os missionários errantes, dos quais Ibiapina, avultando por um tirocínio mais longo, e por uma ação mais pura, original, e brilhante, é, sem dúvida, o maior do Nordeste. Antes dele, não

temos à vista nenhum que se pareça. Não nos consta, depois, outro com tão ardente e exclusivista vocação, de apostolo e educador.

(MARIZ, 1980VIII, apud CARVALHO 2007:11).

Muito já se produziu a respeito da vida e obra do Padre Ibiapina.99 A constatação de padre “milagreiro” entre a população católica não é algo novo. De acordo com a documentação escrita, esse homem realizou muitos milagres, ainda em vida. Veras (2009) descreve um dos milagres ocorridos relacionado ao uso da “água das fontes de caldas”, publicado no Jornal a Voz da Religião no Cariri, em 20 de junho de 1868. Há muitas citações e referências, que infelizmente não aparecem nas publicações a seu respeito. Mas, prevalece a opinião entre os estudiosos “de” que sua função de milagreiro ocorre quando se entende que ele “atua no sentido de interceder junto a Jesus, tornando-se semelhante aos “Santos”; se constitui em provedor de curas e “milagres” entre as pessoas que a ele recorrem” (VERAS, 2009).

Ibiapina nasceu em 05 de Agosto de 1806, em Sobral, no Ceará e morreu na cidade paraibana de Solânea, em 1883, deixando uma vasta obra social. Seu processo de canonização tramita no Vaticano, tendo já recebido o título de “Servo de Deus”. José Antônio Pereira Ibiapina que num certo momento atendeu também por Pereirinha, provavelmente não imaginou que um dia seria também denominado de “Alma Santa”. Ibiapina possui uma trajetória histórica que envolve dois séculos de traços marcantes.

Sua história inicialmente foi marcada por fortes acontecimentos familiares. Desde criança Ibiapina mostrou-se disposto ao estudo e ingressou logo cedo no estudo do latim, mas, em 1819, aos 14 anos, em função da mudança de seu pai para o Crato (CE), ele teve que interromper a carreira escolástica. No ano de 1920 retomou os estudos do latim, na cidade de Vila Jardim; em 1823 seguiu da cidade de Fortaleza para o Seminário de Olinda. No Seminário ele permaneceu por pouco tempo, por não reconhecer “naquele Templo de Virtudes e Ciências” “a moralidade e religiosidade” que esperava. Deste feito, passou para o Convento de Madre Deus, também em Olinda, onde estudou Filosofia e deu continuidade a outros estudos já iniciados no Seminário até 1825.

A vida de Ibiapina se modifica com base nos acontecimentos cruciais vivenciados no interior de sua família. Em 1824, seu pai, que havia se envolvido com a República do

Equador100, foi vítima de pressões por milícias em Fortaleza; Ibiapina viu sua família entrar em ruínas, na pobreza e orfandade familiar.101

Com o falecimento de sua mãe em 1823 e do pai em 1825, Ibiapina abandona os estudos e assume a família na orfandade. (CARVALHO 2008:27, nota 20). Como chefe de família, decide transferir a família para Pernambuco; ali, encontrou o Convento da Madre Deus em abandono. Sua saída foi a de continuar os estudos no Seminário e morar no Convento de São Bento.

Ao retomar os estudos, Ibiapina tentou seguir dois cursos, mas viu-se sobrecarregado. Deixou o Seminário e optou pelo curso de Jurídico em Olinda, mas esta não foi uma invenção fácil, ele enfrentou sérias dificuldades em virtude de sua situação de pobreza. Todavia, apoiado pelos amigos, graças às suas excelentes qualidades pessoais e perseverança, conseguiu concluir o estudo.

Em 1832, ele obteve a carta de Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas pela Academia de Pernambuco. Neste mesmo ano, foi nomeado “lente substituto” dessa mesma faculdade. Foi eleito 1º deputado à Assembléia Geral pela Província no ano seguinte, Chefe de Polícia e Juiz de Direito da comarca de Santo Antônio de Quixeramobim. Esses acontecimentos significaram a recuperação de Ibiapina, após as tempestades políticas de 1824. Ibiapina vive uma época de prosperidade e felicidade (CAVALCANTE, 2008: 28).

Se por um lado Ibiapina crescia no alcance de cargos e funções de destaque, por outro, sua missão parecia ser mais nobre que os cargos nos quais se envolvia. Algo latente o fazia refletir profundamente sobre seu papel neste universo. Foi então que, se sentindo decepcionado com o “patriotismo egoísta” que permeava o ambiente aonde transitava, somado aos “maus atos públicos” com os quais se deparava, o Dr. Ibiapina deixou a vida pública (demitiu-se do cargo de Juiz em 1835) e se estabeleceu na modesta profissão de advogado em Recife. Posteriormente, ele foi convidado para a cidade do Brejo de Areia na Província da Paraíba e ocupou-se três anos nessa função. Concluído o trabalho em Areia voltou ao Recife onde se ocupou com a profissão de Advogado até 1850.

Em 1850, ele se retirou à solidão. Desfez-se de seus pertences e foi morar num sítio que possuía em Caxangá, nos arredores de Recife. Dedicou-se à vida espiritual e ao tratamento de asma, um mal de que sofria fazia tempo. Em 1853 vendeu essa pequena propriedade e foi morar em Recife, com suas duas irmãs. Nesse tempo freqüentava

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República do Equador corresponde a um movimento revolucionário, mas conhecido como Confederação do Equador. Neste se lutava contra o conservadorismo monárquico da Constituição de 1824.

assiduamente o Convento da Penha e dos Padres dos Capuchinhos. A aproximação franciscana com os Capuchinhos tornou-se decisiva para sua ordenação e rigorosa vida missionária.

Ibiapina permaneceu três anos em solidão. Em 03 de julho de 1853, recebeu seu “Sacro Presbiterato” pelas mãos do Bispo de Olinda no período de 1831-1864, Dom João da Purificação Marques Perdigão. Uma vez investido do caráter sacerdotal e com seus sonhos de criança alcançados dedicou-se às missões: tinha uma grande vocação que se completava por sua eloqüência e habilidade oratória Aos 48 anos de idade Ibiapina se entrega à carreira Apostólica. “A humildade, a caridade, e o amor de Deus, a relação com o próximo dimanava de suas palavras e de seus atos, como água cristalina que dimanam de fonte de vida; como essas águas puríssimas que destila a fonte de Caldas, de que Deus se tem servido para tantas e tão grande maravilha” (CARVALHO, 2008:33). De acordo com Carvalho, a referência às maravilhas de Deus pelas águas do Caldas indica que o texto foi escrito após as curas realizadas em 1868.

Na fase de Padre, Ibiapina ainda teve sua carreira interrompida pelo Bispo que o obrigou, sob pena de desobediência, a aceitar emprego de Vigário Geral do Bispado de Olinda. Ele permaneceu na função por dois anos.

É em 1860 que o fervoroso missionário inicia sua missão em Gravatá, onde pregou e realizou o mês mariano. Em seguida ele foi para Barra de Sant‟Ana e foi chamado à povoação de Pilões na Paraíba para a construção da Igreja de Pilões que já estava começada. (CARVALHO, 2008:38). De Pilões ele foi chamado para Arara-PB; sua entrada em Arara o colocou diante de uma grande oportunidade em que Dona Cândida Americana Hermógenes de Miranda Cunha, casada com Major Antônio da Cunha,que havia sido ferida pela cólera, resolveu converter-se à “penitência e a mortificação”, para se colocar a favor da caridade. Essa senhora demonstrou o desejo de estabelecer uma casa de caridade para a orfandade e doentes, e ofereceu a propriedade de Santa Fé. O missionário aceitou a doação102, que se tornou o local onde hoje é venerado e cultuado em agradecimentos e pedidos de proteção no Santuário que foi construído em sua homenagem.

Os religiosos que se dedicaram a pesquisar sobre a vida do padre Ibiapina afirmam que foi através da ação missionária que Ibiapina revelou a face da compreensão de um Deus

102 Padre Ibiapina desempenhou um trabalho brilhante nas províncias de Paraíba, Rio Grande do Norte,

Pernambuco, Ceará e Piaui durante o século XIX. O mesmo foi responsável pela construção de 23 casas de caridade, 21 cemitérios, 23 Igrejas ou Capelas, além de quatro reformas, 22 açudes, três hospitais, um canal, uma cacimba e uma estrada.

misericordioso, que se apieda pela miséria e situação de abandono de seu povo. Observem como procede este religioso:

O povo sertanejo vivia disperso, totalmente abandonado pelos poderes públicos e vítima de tantos cataclismos naturais. (...) Ibiapina propaga um Deus preocupado com a situação material do seu povo, que quer não o sofrimento, mas a vida, e tem compaixão de suas dores. Ele apresenta um Deus que faz sua a dor do povo. Sua vida é a misericórdia divina em ação, na sua palavra manifesta um Deus que exige a partilha, a reconciliação, como sinais da materialização do evangelho.103

Neste sentido, outros religiosos relatam sonhos que tiveram em que Ibiapina os convida para dar continuidade à sua missão. Assim ocorreu com Frei Dilson Batista Santiago104: ele afirma que recebeu uma mensagem do padre Ibiapina por meio de um sonho em que ele dizia: "Eu sou o Padre Ibiapina. Morri em conceito de santidade. Peço para você abraçar a minha causa". Frade Dilson Batista Santiago, um Capuchinho que, de acordo com registros fornecidos pelo atual responsável do Santuário, foi prefeito três vezes da cidade baiana de Itamaraju, localizada a 751 quilômetros de Salvador, ficou impressionado com a visão em sonho, embora não conhecesse, nem tivesse ouvido falar sobre Ibiapina, pois estudou e se ordenou na Europa.

De acordo com seu relato, a imagem forte daquele padre de olhos negros não saiu da mente do frade e o mesmo procurou o bispo de sua Diocese para procurar informações. Comovido com sua história, Frei Dílson passou a pesquisar sobre a vida de Ibiapina e depois testemunhou, segundo conta, mais um suposto "milagre" dentro de casa. Uma irmã sua o telefonou dizendo que estava passando por uma gravidez de risco. O filho estava desenganado pelos médicos. Pediu, então, a sua ajuda em orações. Se sentindo impotente diante do caso, ele orientou a irmã para que se compadecesse do Padre Ibiapina. A criança, desenganada pelos médicos, nasceu forte e sadia.

Na avaliação do frade Capuchinho, outro milagre teria ocorrido envolvendo uma religiosa que trabalha com ele na pastoral dos índios. Frei Dilson, segundo afirma, estava sendo ameaçado de morte por um fazendeiro da região. Numa aparição em sonho à religiosa,

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Notas fornecidas pelo Padre José Floren de palestra mencionada pelo Pe. Virgilio Bezerra de Almeida em 19 de Abril de 2010.

Ibiapina tranqüilizou-a, dizendo: "Não vai acontecer nada com o frade, eu estou ao lado dele, protegendo-o".105

Há uma série de acontecimentos extraordinários e milagres atribuídos a Ibiapina que foram registrados pelo Jornal a Voz da Religião no Cariri e que são resgatados nas publicações de quem escreve a esse respeito. Dele se originam comentários relevantes sobre suas missões, sobre a relação entre o catolicismo romanizado e suas pregações e sobre acontecimentos que o definiram como “Apóstolo da Caridade”. Veras (2009:11) registra um milagre datado de 20 de junho de 1868 com uma mulher de nome Luzia que, ao ver o Mestre Padre passando na porta de sua casa, recorreu para que ele a curasse. Ele respondera que não era médico de corpos, mas na insistência da mulher falou: “pois bem mulher, vá tomar três banhos na fonte de caldas ao sair do sol”. Luzia foi em companhia do marido que também sofria de hérnia e ambos ficaram bons.

“O apóstolo da caridade” associava suas práticas missionárias à vida dos santos, um fator que se tornou fundamental para o sucesso da comunicação entre Ibiapina e os que aderiam ao seu projeto, reelaborando-o conforme suas próprias experiências e interesses.

Os escritos do missionário não constituem uma obra sistematizada. Eles consistem de manuscritos dispersos, preservados por beatas e beatos que conviveram com “o padre mestre”, guardados principalmente nos arquivos da Casa de Caridade de Santa Fé. Parte destes manuscritos é composta de instruções morais, cartas do missionário à Casa de Caridade, orientações sobre práticas de confissão e comunhão. Textos contendo outras reflexões de sacerdotes e adaptações de temas bíblicos foram transcritos, compilados e impressos por Padre José Comblin (1984) sob a titulação de “Instruções Espirituais do Padre Ibiapina”.

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