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CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DE CURA: DO SOFRIMENTO À RESISTENCIA NO COTIDIANO

3.1 Problemas, doenças e soluções nos altares de cura

Na descrição metodológica deste trabalho explicamos que a sequência dos acontecimentos relatados é essencial para a compreensão do fenômeno da cura. O processo de descrição envolveu distintas gerações cujos ciclos de vidas caracterizam três grupos de análise.

A primeira geração corresponde às pessoas que vivenciaram as décadas de 50 e 60, período importante tanto em relação às mudanças políticas e econômicas, do país como à experiência do catolicismo em suas formas tradicionais de manifestação. A segunda geração situa-se nas décadas de 70 e 80, um período marcado pelo processo de abertura política, após o regime militar e introdução das mudanças sociais em vários campos da vida humana. A associação das gerações e suas respectivas épocas históricas são importantes uma vez que as mudanças sociais e políticas ocorridas interferem na dinâmica social e no processo compreensivo que destaca o papel desempenhado pela religião e explica o lugar que a mesma vai ocupando nas vidas das pessoas, em meio aos processos sócio-políticos mais amplos. O terceiro grupo é relacionado aos anos 90 até a entrada e primeira década do novo milênio. Esta época é diferenciada das anteriores, conforme são percebidas e relatadas, principalmente, pelos informantes que compõem as três gerações. São apontados fatores que consideram como “ganhos”: o desenvolvimento de alguns serviços públicos, das estradas, dos transportes, do salário, e mesmo das mudanças na alimentação. Porém, essas mesmas pessoas reclamam de perdas como as mudanças ocorridas com a devastação das matas, a violência no meio rural, as mudanças nas relações e valores da família, a migração das famílias, dentre outros.

Agrupei e classifiquei os males citados em três focos definidos como „situações problemas‟. Para este agrupamento, consideramos a frequência da colocação dos fatos, os

sujeitos envolvidos; os contextos específicos e as relações estabelecidas pelos segmentos diferenciados. Este agrupamento resultou numa classificação de três tipos de situação.

Primeira situação: tratamos dos problemas que vão desde a saúde da mulher à esfera conjugal, incluindo genericamente aspectos da relação e vivência da mulher e do homem introduzindo sinais caracterizadores de suas “obrigações” e/ou papéis na esfera doméstica; Incluo exemplos relacionados às dificuldades vividas pelos pais em relação à saúde, bem como á educação das crianças, abordando, por um lado, as dificuldades cotidianas que suas vivências impõem e, por outro, destacando a importância por eles depositada na pessoa dos “agentes de cura”.

Segunda situação: discutimos algumas situações identificadas como “problemas” da esfera espiritual que afligem diferentes pessoas etapas de idade variadas.66

Terceira situação: reunimos os problemas gerais. São os casos que envolvem tanto as questões relativas à saúde física das pessoas, quanto os aspectos sócio-culturais.

Parte dos casos apresentados são ocorrências dos anos 50 e 60, resgatados através da oralidade, a partir das pessoas que viveram ou conheceram a situação, por ter um vinculo de parentesco ou ser conhecedora do fato, na época do seu acontecimento. Entretanto, se os fatos resgatados do passado comunicam situações desconhecidas para o público das gerações subsequentes, por trazer em cena histórias vividas em período histórico distante e por pessoas específicas, eles não perdem sua importância para a análise contemporânea uma vez que situações semelhantes ocorrem atualmente.

Esses casos revelam situações que põem em questionamento o suposto “avanço” dos serviços públicos de saúde, sua extensão ao meio rural ou mesmo de sua abrangência aos centros urbanos, principalmente quando se trata de áreas periféricas do estado da Paraíba. Embora não seja este um foco presente nos objetivos desta pesquisa, este fator interfere no processo compreensivo da cura em suas distintas classificações. No entanto, os relatos trazidos pelos informantes revelam a continuidade do processo de busca da cura religiosa, mesmo num contexto de relativa assistência através dos serviços e postos de saúde e do acompanhamento dos agentes de saúde. Até mesmo onde há um Hospital Regional, as pessoas continuam recorrendo à cura religiosa. Chamam a atenção as situações e formas com que se dão essas recorrências.

Neste sentido, concluimos que a procura por cura religiosa se mantém a despeito da fraca e forte presença de infraestrutura de serviços de saúde. Não há uma superposição, a procura pode ser até simultânea. Os relatos citados são variados e às vezes densos. Neles é

66 Analisamos esta questão quando introduzimos questões referentes à mediunidade não desenvolvida no

possível observar o caráter das procuras e compreenderem os aspectos que caracterizam a dimensão plural de situações aparentemente tão específicas.

Os males mais citados são: nervosismo ou “doença dos nervos”; fraqueza pós- parto; abortos; violência doméstica; afecções distintas que incluem dores: dores de cabeça; dores de coluna; dores nos membros; dores de estômago; dores de dentes; febres e problemas intestinais, principalmente em crianças como febre, dor de dente, escabiose, doença de pele, dentre outras.

Identificamos também outros males caracterizados como: desavenças familiares, abandonos por traições conjugais; sujeição em terras de patrões; doenças especiais como bipolaridade; enfrentamentos de perigos; perseguição; carências econômicas, fome, atropelos financeiros; dentre outros. Predominam outros males do tipo: engasgos, paralisia e deficiências de membros, machucões corporais, hematomas, hemorragias, hérnias, doenças cardíacas, doenças venéreas, e alcoolismo em mulheres e em homens.

Entre os problemas citados são também relatadas mensagens sobre a previsão feita pelo curador a respeito de épocas futuras. Os conselhos recebidos de frei Damião, os caminhos seguidos para as romarias a Juazeiro – os idosos colocam esses relatos enquanto certa confirmação do que lhes foi dito no passado. Vejam a estruturação e informação contidas neste relato!

Agora cada um tem suas leis. Esse povo tá tudo indo para esse povo que tá curando. Esses crentes,... Esse pastor... O finado Zé Avelino (o curador) uma vez disse que ia sair nas portas com um rosário bonito uns homens curando. Cada um seguisse seu caminho. O povo fala dos crentes, de Nossa Senhora, cada um siga seu caminho.

Então: Ia sair um rosário de ouro. Pra que tantas voltas bonitas que o povo usa? Saem vendendo nas portas, não é?

O velho Ângelo Lopes dizia que a gente ... Me lembro como se fosse hoje, uma cuia de farinha era dez litros . Se vendia por litros. Custava seis tões. Pai morava onde morou Lucas Marcelino, mãe trabalhava em crochê e em bordado, quando ela veio do Sertão para morar ali. O rio era cheio de ponta a ponta. Se morresse um não se enterrava lá porque não se poderia passar o rio. E hoje? Quanto custa uma garrafa de farinha?

Um quilo! Ele dizia (o curador) que a gente via farinha na prateleira, dito e feito! Qual é o pobre hoje que pode fazer uma feira como já se fez? O aposento tá pouco pra despesas, agora quem ganhar bem ganha, porque um quilo de feijão por quatro real, cinco? Só Deus e mais ninguém!

(Maria Flor - 90 anos)

Assim como a romeira Maria Flor, outros informantes idosos se referem ao passado e falam a respeito dos acontecimentos pondo em ênfase a aquisição do benefício da aposentadoria concedida pelo FUNRURAL; colocando-a como algo bom, em suas vidas.

Entretanto, todos comentam que outros gastos foram anexados a esses benefícios tais como as despesas com taxas de iluminação e os aluguéis para quem reside no ambiente urbano. Quem mora na cidade, conforme eles relatam, “tem que comprar tudo” e os preços dos produtos aumentaram consideravelmente.

Fala-se ainda das despesas com a saúde, uma vez que as doenças também requerem tratamentos diferenciados. Dessa forma, da aposentadoria nada sobra para se guardar. Há informações de que parte desses idosos vive envolvida em dívidas. É como se no passado o dinheiro fosse escasso, mas na atualidade as demandas e as obrigações a ele submetidas são crescentes.

3.2 Vozes das mulheres do passado ao presente: entre angústias, perdas e formas de

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